As Necessidades da Alma

SEGUNDO SAFRA

 

Simone Weil (1909-1943), esta pensadora francesa que morreu tão jovem, representa um dos fundamentos do pensamento clínico e teórico de Gilberto Safra, como Santo Agostinho e como Dostoievski.

As primeiras aulas do Prof. Gilberto sobre o pensamento de Simone Weil foram dadas no seu Laboratório de Estudos da Transicionalidade em 1999, ano em que ainda não filmávamos os seus cursos, mas deles fazíamos gravações em áudio. Pela importância deste curso, Gilberto nos solicitou agora que o divulgássemos no formato MP3, o que faremos na próxima semana, juntamente com os demais lançamentos de março das Edições Sobornost.

 

Enquanto isso, para que se possa já ter uma idéia de sua riqueza, explicito o conteúdo deste curso de 4 aulas, que se basearam na análise do livro de Simone Weil “As necessidades da alma”.

A primeira aula, que tem por título “Obrigação, ordem e respeito”, como se pode deduzir se volta para o tema das obrigações e do respeito que tanto as comunidades quanto as pessoas precisam ter para que o acontecer humano ocorra. Winnicott enfatizou também a importância do ambiente através da mãe-ambiente para a constituição do Self, mas seu tipo de formulação deu margem a uma interpretação excessivamente genética desta constituição do Self. Simone Weil foi além, focando os adoecimentos que se originam no coletivo, para além do meramente familiar, e que podem necessitar de intervenções a nível social para serem sanados. Como, por exemplo, o adoecimento proveniente da subjugação do homem ao ritmo das máquinas e do desenraizamento em seus diversos níveis, cultural, étnico, ético. Dessa forma Simone toca em alguns pontos caros a Gilberto para a constituição do que ele nomeará como condições ontológicas do homem (fundantes) que se discriminam dos fatos biográficos ou políticos dentro da temporalidade, que Gilberto denomina ônticos.

Por exemplo a idéia de Simone de que a imaginação é a extensão do corpo humano sobre o mundo irá acompanhar Gilberto na sua trajetória, quando ele nos diz, por exemplo, que a cama é também um colo, que o copo é também um o seio, etc.

Ainda nesta aula podemos ver a congruência entre Simone Weil e Lévinas, na medida em que o respeito significa aceitar a transcendência do rosto do Outro.

Da mesma forma, a noção do ser humano como ser paradoxal, tão cara a Gilberto e Winnicott, está presente em Simone, que vê a harmonia como incluindo os pares contraditórios. Nesta aula Gilberto conta alguns elementos da biografia de Simone, certamente uma personalidade abismal (conceito descrito no livro Hermenêutica da clínica contemporânea, de Gilberto Safra, 2006, Edições Sobornost) que, aos 16 anos, se comove profundamente com o que acontece do outro lado do mundo e deixa sua vida burguesa para ir viver e trabalhar como operária numa fábrica, relatando depois suas experiências e trocando seu saber com seus colegas de trabalho.

Como os russos, que Gilberto também preza muito, Simone vê um grande problema no discurso intelectual desvinculado da experiência, a fala que se torna abstrata, ideológica, perdendo as raízes do sofrimento concreto. Para ela, como para os russos e para Gilberto, a distância hierárquica entre os letrados e os iletrados é tão crítica e prejudicial como a distância entre as classes sociais, e talvez até mais.

Na segunda aula sobre Simone, intitulada “Liberdade, obediência, autoridade”, Gilberto acentua o quanto ela busca, através do que chama de “as necessidades da alma”, o que seriam as condições ontológicas para o acontecer humano que, na medida em que não são atendidas, provocam o adoecimento do homem.

Para Simone, por exemplo, desenraizamento é um termo que se aplica a todos os afastamentos do que seriam necessidades da alma.

Este olhar para o ontológico é sempre um olhar que não coloca o homem em categorias saturadas, mas que se dirige por certos princípios. Simone, como outros autores caros a Gilberto, se preocupa com o ethos humano e o que pode fraturá-lo. E se volta para a questão da ação humana frente ao mundo, que opera sob os parâmetros da escolha e da responsabilidade.

Nesta aula Gilberto faz sempre paralelos com a clínica, sobretudo a winnicottiana, desde que compreendida sem uma sistematicidade conceitual rígida. Nesta aula ele percorre o conceito de Liberdade, que significa escolha, criatividade e cuja origem está no gesto primeiro espontâneo do bebê. A escolha, no entanto, precisa ser feita entre uma gama finita de possibilidades para que a sensação do absoluto não nos jogue na agonia impensável. Gilberto nos lembra que há casos em que a não escolha é a única possibilidade que respeita o ethos humano: são os casos em que se trafega sob leis que desrespeitam o ethos humano e portanto impõem uma moral que não corresponde à ética fundada nas necessidades da alma.

Nesta aula Gilberto aborda ainda a questão da obediência ligada à liderança e à autoridade, sempre concebidas como símbolos e nunca literalmente, pois isso significaria a tirania. O que nos leva à questão da autoridade no setting clínico, que também é abordada, e certamente à questão da autoridade dos educadores.

A autoridade é sempre subordinada à ação criativa (Gilberto Safra). Em outras palavras, isso significa afirmar, seguindo o professor, que o lugar do analista é sempre o lugar do sonho do futuro do paciente, ou seja, que o analista porta o ethos do paciente.

Na terceira aula do curso (“A clínica como vocação”), ao estudar Simone Weil com seus alunos, consolida-se a posição de Gilberto de que o clínico deve ter, antes de tudo, uma postura que independe das paredes do consultório e mesmo durante um tratamento terapêutico o alcance do trabalho excede o que se costuma chamar de nível psíquico. A clínica safriana se ocupa do ethos humano e de suas fraturas que impedem o acontecer humano. Simone Weil contribui neste nível pois esta também é sua orientação. Apesar das suas simpatias pela revolução russa, volta desapontada de uma visita à Rússia soviética, porque lá reconhece que a vida dos operários junto às máquinas é uma ameaça à integridade deste ethos. A intervenção política que Simone propõe, ou que a clinica safriana propõe é mais ampla do que o que se compreende como político em sentido estrito, é mais ampla do que a melhoria das condições econômicas do povo, pois é uma intervenção que se orienta para todos os níveis em que o desenraizamento ocorre, impedindo o acontecer humano.

Da mesma forma, é uma clínica que não se detém numa visão do desenvolvimento humano e suas perturbações, pois acrescenta que o desenraizamento ou a fratura do ethos pode ocorrer em qualquer momento da vida, levando a agonias impensáveis, independente do que ocorreu nas primeiras etapas do desenvolvimento.

Safra adiciona que sim, é importante o estudo das etapas maturacionais para que se possa compreender os recursos que as pessoas dispõem para enfrentar fraturas que podem ser pessoais ou sociais e que ameaçam a integridade dos princípios que permitem a constituição da pessoa humana.

O estudo de Simone Weil é essencial para o clínico na medida em que este reverbera em si o sofrimento, a angústia do ser humano. Esta ressonância é parte da vocação do clínico. Isso sempre implica conceituar o ser humano como membro de uma comunidade, conceituar a palavra como ação que vai de encontro às necessidades do ser que está à nossa frente, seja no consultório, seja no interior de um táxi, como no exemplo que Gilberto nos conta nesta aula. Considera-se terapêutico, em sentido amplo, tudo que devolve uma face humana para uma agonia impensável, porque sem interlocução e nomeação possível através de palavras-atos ou de atos sem palavras.

Um exemplo deste último tipo se pode ver quando Safra nos relata o ato de pegar a única bala que seu pacientinho de 5 anos lhe oferece, como retribuição e expressão de simetria entre analista e paciente.

Na quarta e última aula deste curso (“Esperando por Deus”), baseada numa carta que Simone escreve a um padre que queria batizá-la, Gilberto explica que “esperar por Deus” implica não buscar, pois buscar é da ordem do desejo e esperar é da ordem da atenção. Esperar é atenção sustentada no tempo. Atenção é, para Simone, o fundante e não o desejo, que é sempre infinito.

Deus, para ela, é atenção sem distração. Esta posição é ao mesmo tempo espiritual, epistemológica e ética. A atenção permite que a verdade nos seja revelada, nos visite. A verdade nos visita corporalmente, experiencialmente. Coerente com este pensamento, durante sua vida, Simone nunca se deteve no conhecimento intelectual, mas buscou experienciar a vida operária, por exemplo, para que a verdade desta condição se revelasse a ela. Da mesma forma, a morte é o momento em que a verdade, ou o sentido de uma vida se revela.

A atenção tem a ver com a descriação do eu (eliminando a gordura egóica), para que se possa receber a verdade da situação. O que nos remete diretamente à situação clínica, como uma possibilidade de realmente estar com o paciente e recebê-lo em comunidade de destino. Finalmente Simone agrega a obediência, que, nas palavras de Gilberto, “é a posição decorrente da atenção, frente à experiência do real, frente à experiência da verdade.”

A atenção possibilita que se apreenda o impulso que nos visita, revelando a verdade de uma situação ou circunstância e que se pratique a contemplação que sacraliza aquilo em que se põe atenção.

Ainda nesta aula, o Prof. Gilberto nos mostra este encontro entre a poesia e o sagrado nestes momentos em que a verdade transcendente se revela. Muito importante para quem acompanha o pensamento de Gilberto é a explicitação que ele faz nesta aula sobre a diferença entre o significado de transcendente para Simone Weil, para Adélia Prado e para Lévinas. Para Simone, mais do que a transcendência estar no rosto do outro, ela exige que se sofra na corporeidade a dor do outro. Só assim a transcendência se revela e nos colocamos em comunidade de destino com o outro. Já para Adélia a transcendência é imanente a tudo que existe, ou seja, também aos animais, à natureza e às coisas, e nossa comunidade de destino é com todos estes entes.

Sonia Novinsky
sonia@sobornost.com.br
www.sobornost.com.br  
 

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