Casoba, não sei se te contei. Se não contei, conto agora. Estive em São Paulo neste fim de semana. Sim, fui cuidar de meus negócios. Encontrei o Brandão no vôo de volta e ele me perguntou onde eu estivera, e se tinha ido a congresso, ou curso, ou coisa que o valha. Conclusão: o prego só pensa com o martelo na cabeça. A questão da Unimed é típica.
Os médicos parecem os passageiros do Titanic quando souberam que o navio iria a pique: enlouquecidos. Não enxergam um palmo à frente do nariz. Falam, e falam, e falam. E a gente espreme, e espreme, e espreme o falatório e não sai nada. Nada se aproveita. E quando aparece alguém fazendo, ou melhor, pensando e fazendo alguma coisa séria eles tiram sarro. Só vale pensar com o martelo na cabeça. Quer dizer: são pregos. Os de branco são pregos. Outro dia encontrei o Perdigão no Antonio Prudente. A mesma coisa. Perguntou se eu largara a medicina. Mal sabe ele que opero com a Manu. Que cansei de seus atrasos. Disse também que soubera que eu estava “vendendo Amway” num ar de deboche. Outro prego. Bem que diz o outro ditado: chapéu de otário é marreta. Um ditado é irmão do outro. Ou seja: o prego e o otário têm a mesma cabeça, que coincidentemente é a mesma da nossa classe médica.Em suma: quando a coisa não vai bem ou se toma uma atitude ou se fica calado e agüenta o tranco. E outro ditado: jumento bom não relincha. Dizia o Lacativa quando apertava os residentes e eles punham-se a reclamar. Se queixam-se, são jumentos ruins, imprestáveis. Não suportam a carga. E o semblante se lhes decai. Andam praguejando, ou fazendo coisas menos dizíveis para compensar as perdas. Oportunidade é o que não falta. Refiro-me aos médicos, não aos residentes.
Mas não te escrevo para falar mais uma vez dessa lenga-lenga. Escrevo para te falar da paisagem. O vôo de ida saiu de madrugada, três da matina. Chegamos ao Rio com o sol, o tempo claro e límpido. Nenhuma nuvem, Casoba. A baía de Guanabara com a ponte a lhe cortar as águas parecia uma pintura a óleo com relevos quase imperceptíveis da textura da tinta.O Pão de Açúcar e o Morro da Urca ligados pelo tênue fio dos bondinhos foi um deslumbramento indizível, de tirar o fôlego. A verdura da vegetação da floresta da Tijuca parecia um tapete felpudo de veludo. O recorte das orlas com os pequeninos edifícios à beira-mar denotavam a presença da mão humana que não deturpou a beleza das linhas, das formas, dos ângulos e reentrâncias.. e os morros com as favelas feias e pálidas que escondem a violência e a controvérsia da raça decaída. Tudo isso visto à luz amarela e viva, quase densa, do sol. Não consegui pensar nesta luz sem massa, sem peso. Einstein provou isso em sua Teoria Especial da Relatividade em 1905: a luz tem massa, e sua trajetória muda pela força da gravidade de um corpo próximo. Que gênio! E mais: o próprio espaço deforma-se à presença do corpo denso. Ah! aquela luz perecia mesmo ter algo de palpável, de miasmático, de etéreo. “Quando a Terra saiu das mãos de seu Criador era extraordinariamente bela. Variada era sua superfície, contendo montanhas, colinas e planícies, entrecortadas por majestosos rios e formosos lagos;…A hoste angélica olhava este cenário com deleite, e regozijava-se com as obras maravilhosas de Deus”, escreveu Ellen White, profunda estudiosa dos assuntos essenciais. E eu apreciando o quadro quase estupefato…! Depois, no trajeto após a decolagem em direção ao sul, a Lagoa, a Pedra da Gávea, o Morro Dois Irmãos e, da sua banda sul, a Rocinha, enorme, assustadora, uma cidade dentro de outra! Um misto de aterrorizado e contemplativo me assaltou. Depois, a Barra. Um deslumbramento, Casoba!
O avião margeou o litoral em direção sul durante cerca de meia hora até que começou a sobrevoar uma grande cidade litorânea. Eu já vislumbrara de longe uma cidade enorme, que ficava mais para dentro, no interior: “São Paulo…”, pensei. Esta outra, à beira-mar à mesma “altura”, devia ser Santos. A aeronave persistiu em direção sul até que fez uma acentuada curva para a direita em direção à cidade enorme do interior. De cima a distância entre elas era muito pequena e havia muitos rios e águas represadas entre elas. Aquela paisagem da vista das duas cidades juntas, ao mesmo tempo, era soberba! Uma aula de geografia ao vivo e a cores! E pensei no Armstrong, o Neil Armstrong, que voltou meio “doido” da viajem à lua. Afinal, foi o primeiro homem a pisar um outro mundo. Consta que o senhor Armstrong, quando retornou, passou a se comportar de modo estranho, até que se separou de sua mulher, comprou um rancho e lá foi viver sozinho. Não mais tolerava viver com a pequenez do dia-a-dia das pessoas. Não era mais um sujeito comum, do mundo, da rotina, da gana, da ira… As coisas do mundo não mais faziam sentido para ele. Estivera mais perto do resto do Universo do que ninguém jamais estivera. A visão sublime o tornou crente da presença de Deus em tudo. Como Saulo, em direção a Damasco, no encalço dos cristãos: “E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por quê me persegues? E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões. E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer.” Recalcitrar contra os aguilhões… Era difícil para Saulo não acompanhar o mundo…! E o Senhor lhe mudou o nome e o destino. O que terá havido com o sr. Armstrong lá em cima, Casoba?
Sobrevoamos a megalópole por cerca de quinze minutos. Prédios e prédios e prédios. E enormes avenidas e estradas. Trevos, alamedas, parques. Em breve pude ver a goiabeira com goiabas em plena selva de concreto. Colhi-a e comi. O gosto era típico. Em breve, pessoas. Também lá havia pessoas. Em que pese, dentro dos carros estão pessoas. No metropolitano viajam pessoas. Na selva de cimento, dentro de cada aposento, estão as pessoas! Duro é para elas recalcitrar contra os aguilhões! E quando Ananias argumentou que aquele homem não era de confiança, o Senhor disse: “Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o Meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos d'Israel. E Eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome.”
Por tudo isso, ao chegar em Sampa estava no auge, Casoba. Simpatizo com as coisas de Deus, menos com as coisas do mundo. Mas, como disse o próprio Cristo renascido após estar morto, duro é para mim recalcitrar contra os aguilhões. Mas disse também: “O homem pela fé viverá”. Só a divindade pode compreender assim a fraqueza extrema da raça decaída. E fazer a justiça e a misericórdia andarem juntas.
O mais foram meus encontros de negócios. Mas isso só falo com quem sair do nível do rasteiro. São questões essenciais. Assim como Deus.