Entre Morte e Nascimento

“Não posso fazer idéia de um ser que sobreviva à morte do corpo”  18:75.

Albert Einstein (1.879-1.955)

“Traga luz ao quarto escuro e a escuridão desaparece, conheça a vida e a morte desaparece. Uma pessoa que está realmente viva apenas ri da própria possibilidade da morte. A morte é impossível, a morte não pode existir. Pela própria natureza das coisas, aquilo que é, permanecerá, permaneceu sempre. Aquilo que é, não pode desaparecer. Mas não teoricamente, você tem que chegar a esta experiência existencialmente”.

Mohan Chandra Rajneesh – Osho (1.931-1.990)

Crenças religiosas à parte, a morte, para muitos, não é mais misteriosa do que o oxidar em um ferro-velho. Para esses, a existência de algo após a morte é apenas uma forma psicológica de atenuar as ansiedades e estresses da vida diária, uma promessa de descanso merecido após uma intensa vida de “provações” e sofrimentos ou uma fuga psicológica à inevitabilidade da extinção pessoal. Essas pessoas querem crer nisso apenas para não mergulhar profundamente nos mistérios da vida e da razão da vida. Não mergulham porque psicologicamente não podem, ainda, ou porque não querem.

Mas qualquer um que já possa se deter nas questões existenciais, “quem sou”, “para que vim à vida”, “para onde minha consciência vai após a morte”, vai chegar a conclusões diversas. O materialista hoje se detém com uma questão existencial mais complexa ainda: o mundo subatômico não é material e muito menos real, mas tem uma probabilidade de existir. Todo o mundo material, ao contrário do que os nossos sentidos afirmam, é apenas uma “sopa energética quântica” constituída de enormes espaços vazios plenos de informação e energia.

“Partículas não são coisas materiais, são flutuações de energia e informação num enorme vazio… [e essas flutuações] são na realidade interseções de campos, são fantasmas matemáticos” (SOPHIA 3:10).

Deepak Chopra

O nosso corpo material é um fantasma matemático, dentro de uma realidade chamada de vazio quântico a qual a ciência apenas começa a investigar. Só isso já poderia fazer tremer quem teme o próprio aniquilamento e fazer o materialista puro concluir que ele não existe. Toda a Criação existe numa realidade energética vestida com uma aparência ilusória de materialidade.

Essa energia de alguma forma se auto-organiza, do caos surge a ordem, do simples surge o complexo. Essa energia criativa esconde em si atributos de inteligência, habilidade de se desenvolver e “aprender” com sua própria experiência. A realidade é inteligente e inteligência infere a existência de uma Consciência. A inteligência da Natureza está escondida de alguma forma no mundo quântico e a natureza íntima do homem também.

O ser humano não é o seu corpo físico, esse apenas um “fantasma matemático” que se dissolve, na morte, na realidade energética quântica, mas sim uma consciência individual que habita no vácuo quântico e é uno com o mesmo.

“Aprendemos que a morte em si não é um problema para o paciente, mas o medo de morrer nasce do sentimento de desesperança, de desamparo e isolamento que a acompanha”   79:273.

Elisabeth Kübler-Ross

psiquiatra

1. A CONSCIÊNCIA DO MORRER

Quais as atitudes das pessoas doentes, de seus parentes e dos profissionais que estão cuidando delas, ante a perspectiva da morte, levando em conta a realidade de que a humanidade teme a morte e tudo que a ela está relacionado? No inconsciente humano, a morte é impossível quando se trata de nossa própria morte, e assim é tratada como um acontecimento nefasto que não deve ser discutido nem comentado, mas sepultado no inconsciente junto com o seu medo associado.

Quando a morte é de um ente querido, o medo da própria morte dá lugar a sentimentos de aflição, vergonha e culpa, processos que encerram sempre algo de raiva. “A criança que, de raiva, deseja que a mãe morra porque esta não satisfez seus desejos… caso isso venha, de fato, a acontecer… tanto se culpa[rá] pelo desaparecimento dela, como se zanga[rá] porque ela a abandonou deixando de atender a seus rogos”  79:7.

Recorremos a eufemismos quando queremos falar sobre a morte com as crianças e corremos o risco de mais prejudicá-las que consolá-las. Afirmar que Deus levou a mamãe para o céu pode levar a um sentimento de raiva a tudo o que é divino e perder-se-á uma oportunidade de mostrá-la que morrer é um processo natural e normal, ao qual todos nós nos submeteremos um dia.

Quando alguém está gravemente enfermo, nossos mecanismos inconscientes de defesa nos levam a tratá-lo não mais como um ser humano, mas como um objeto, sem direito a opinar, sem sentimentos ou desejos. Os nossos sentimentos, opiniões e desejos passam a preponderar sobre os do doente e ele acaba perdendo o direito, inclusive, de ser ouvido. Em último caso até sedado será se tentar reagir contra o fato de que agora é um objeto.

Terá suas veias dissecadas, para infusões e/ou transfusões, será submetido a cirurgias, procedimentos e exames, e se reduzirá a um amontoado órgãos e tecidos que terão seus parâmetros medidos, ligado a monitores e máquinas num todo inseparável: agora é apenas mais um objeto de todo um complexo de tubos, conexões e aparelhos eletrônicos.

Tratar um doente como um objeto é uma defesa, uma busca pessoal pela desidentificação com o processo de morrer: “ainda bem que não fui eu”. Nós médicos aprendemos apenas a prolongar a vida, mas desconhecemos o amplo conceito físico, emocional, filosófico, mental e espiritual de vida. E assim negamos ao doente o simples direito de saber seu verdadeiro estado de saúde. Todavia, não deveríamos citar a possibilidade real de sua morte iminente nem lhe tirar a esperança de melhora e/ou cura. “Saber compartilhar uma notícia dolorosa com um paciente é uma arte. Quanto mais simples o modo de dar a notícia, mais fácil para o paciente ponderar depois, se não quiser ‘ouvi-la’ no momento” 79:41.

Quer tenham sido informados ou não, todos os doentes estão cientes da gravidade de seu estado de saúde, quer por palavras ditas explicitamente, quer por mensagens implícitas ou mudanças de comportamento dos familiares ou da equipe hospitalar.

A primeira reação, tanto do doente quanto dos familiares é a negação: “não, eu não, não pode ser”. Geralmente surge de duas formas sutilmente distintas. A primeira é uma forma ansiosa, que surge e faz o paciente, ou o familiar, buscar insistentemente alguém que desminta a notícia. A segunda forma pode surgir a qualquer momento, durante o evoluir da doença, como uma maneira de deixar o pensamento da morte de lado para que possam lutar pela vida. As duas formas são defesas temporárias, que surgem após notícias chocantes, enquanto se mobiliza outros mecanismos menos radicais, como a aceitação parcial.

Essa necessidade de negação “vai e volta”, intercalando momentos de fantásticas considerações sobre a vida ou a morte com assuntos mais atraentes e alegres. Conversam sobre a realidade de seu caso (ou do doente, quando é o familiar que nega) e de repente demonstram incapacidade de continuar encarando o fato de uma forma real. Esse mecanismo de aceitação parcial surge paulatinamente e prossegue até os últimos estágios da doença. Quem assiste o doente, se solícito, disponível e assíduo nas visitas, pode desencadear confiança suficiente para que ele lhe abra alma e compartilhe seus medos, anseios e solidão, às vezes com palavras, às vezes com gestos ou outras comunicações não-verbais.

Por vezes, uma tentativa velada de suicídio, na forma de desobediência a recomendações médicas, pode se alternar com uma negação total da doença, podendo, esse estado, degenerar em psicose. É fundamental deixarmos que o paciente se apegue à sua negação, enquanto for necessária à sua sobrevivência psíquica. Quando não conseguimos, é sinal de que nem nós conseguimos olhar dentro de nós mesmos e evidenciar nossa frustração ante a morte e a lida de seus aspectos emocionais.

Quando não é mais possível negar o fato de que se vai morrer, sentimentos de raiva, revolta, ressentimento e inveja surgem: “por que eu?” Enquanto o estágio de negação é relativamente fácil de se lidar, a raiva do doente faz com que reajamos devolvendo-a para ele. Para o doente, a família não presta, o médico é incompetente, a enfermagem idem, etc., e todos à volta reagem com raiva, pesar, culpa, humilhação ou choro, isolando-se do convívio com o doente, o que traz mais raiva a ele. Poucos se colocam no lugar dele e se vêem capazes de constatar que aquela raiva e revolta não são para com os outros e sim para a situação em que ele próprio se encontra. Em geral se assume a raiva do doente como pessoal quando em geral não tem nada a ver com as pessoas sobre a qual ela é despejada.

É de suma importância tolerar a raiva, racional ou não, do paciente. Suportá-la sabendo que somente o fato dele tê-la extravasado contribuirá, e muito, para sua estabilidade emocional e aceitação final da morte. Deixar que o paciente seja hostil e exigente, sem ressentimentos pessoais, compreendendo-o e não o julgando. Deixá-lo dar vazão à sua revolta. Somente assim pode-se fugir do ciclo vicioso de raiva e ressentimento e deixar fluir o processo do morrer.

Por um tempo curto, pode surgir, então, um estágio intermediário de barganha e súplica: “não me deixe morrer, se for bonzinho será que terei alguma chance?” É mais uma forma de não aceitação, uma esperança que embute uma negação velada. Embora já estivesse presente desde as fases de negação e raiva, agora a esperança começa a tomar forma consciente, e perdurará até o final. A maioria das barganhas é feita com Deus e, geralmente, é mantida em segredo ou dita nas entrelinhas a um padre ou pastor. Podem estar associadas a culpas escondidas e incluir um pedido de tempo extra para fazer coisas que não fez e agora está arrependido.

Mas, em geral, à raiva se segue um grande sentimento de perda, que invariavelmente leva a um estado de depressão. Essa depressão é de dois tipos: associada a perdas passadas (falhas cometidas, oportunidades perdidas ou incapacidades associadas ao seu estado de saúde) ou associada a perdas iminentes. A primeira é uma depressão reativa e a segunda uma depressão preparatória à perda iminente de todos os objetos amados. E como são diferentes devem ter abordagens diferentes.

À depressão reativa, palavras de encorajamento ou de elogio podem fazer ressurgir a autoconfiança e a auto-estima. Uma paciente que se sente menos mulher porque perdeu um seio, pode melhorar psicologicamente com palavras que realcem alguma característica feminina sua, e, assim, se sentir ainda mulher. Já quando a depressão é preparatória, não cabe encorajamento, mas fazer com que o paciente fique à vontade para manifestar seu pesar pela perda iminente. Esse estado é mais silencioso e há pouca, ou nenhuma, necessidade de palavras.

Essa depressão silenciosa é necessária, e até benéfica, para que o paciente possa aceitar a morte e morrer em paz. Só os que conseguiram superar suas angústias e ansiedades são capazes de alcançar este estágio, um estágio incompreendido pelos familiares que ficam angustiados, e muitas vezes revoltados, com o paciente.

“Um paciente que tiver tido o tempo necessário… e tiver recebido alguma ajuda para superar… [suas angústias e raivas], atingirá um estágio em que não mais sentirá depressão nem raiva quanto a seu ‘destino’. Terá podido externar seus sentimentos, sua inveja… e sua raiva… Terá lamentado a perda iminente de pessoas e lugares queridos e contemplará seu fim próximo… Sentirá… necessidade de cochilar… a intervalos curtos… Não é um sono de fuga… de desânimo resignado e sem esperança… [mas] uma necessidade gradual e crescente de aumentar as horas de sono… 79:117 É como se a dor tivesse desvanecido, a luta tivesse cessado e fosse chegado o momento do ‘repouso derradeiro antes da longa viagem’”  79:118.

  É a fase mais difícil para os familiares, pois não mais se deseja visitas ou conversas verbais, e eles necessitam de ajuda, compreensão e apoio mais do que o próprio paciente. Esse, às vésperas da morte, encontra uma certa paz e aceitação. Seu círculo de interesses diminui e não deseja ser importunado com notícias ou problemas externos. As conversas passam a ser não-verbais. Nessa fase de isolamento, consideram sua mortalidade e sua imortalidade como coisas gêmeas, encarando a morte sem perder as esperanças.

Há pacientes que lutam até o fim, mas sempre chega a hora em que dizem: “não posso mais”. Deixam de lutar e a luta acaba. É imprescindível que possamos distinguir quando um paciente está “desistindo” cedo demais e quando ele já se encontra no estágio de aceitação natural da morte, para não fazermos de sua morte uma última e penosa experiência: saber quando já é tarde demais e que se deve deixar o paciente permanecer em seu estágio final de aceitação e separação gradativa (decatexia), onde não há mais diálogo. Nessa fase, a dor cessa, a mente entra num estado de torpor, a necessidade de alimentação se torna mínima e a consciência do meio ambiente quase desaparece na escuridão.

Então surge o momento da terapia do silêncio. “Aqueles que tiverem a força e o amor para ficar ao lado de um paciente moribundo, com o silêncio que vai além das palavras, saberão que tal momento não é assustador nem doloroso, mas um cessar em paz do funcionamento do corpo” 79:282. Toma-se consciência de nossa finitude humana.

Todas essas fases (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação) têm duração variável, e todos, se houver tempo suficiente, experimentarão todas elas, muitas vezes coexistindo lado a lado. O único sentimento que persiste em todos os estágios é a esperança, e, como tal, não deve ser nunca retirada do paciente. Todos os doentes sempre deixarão aberta a possibilidade de um milagre até nas fases finais da decatexia, e é esse sentimento que os sustentará psicologicamente até o evento terminal. Quando um paciente não dá mais sinal de esperança, geralmente é prenúncio de morte iminente.

Deveríamos manter com eles uma esperança firme, não imposta, até que eles finalmente desistam dela, sem desespero, num estágio de aceitação final. Deveríamos ter a sensibilidade suficiente para não demonstrar desesperança, enquanto a esperança for fundamental para o paciente, ou nos agarrarmos à esperança quando o doente não mais precisar dela e estiver pronto para morrer. Muitos pacientes retardam a sua passagem, pois sentem que seus entes queridos ainda não são capazes de aceitar o fato.

Nunca desprezar ou abandonar um paciente à solidão, apenas porque está fora de possibilidades terapêuticas, mas continuar tratando dele até o fim, da melhor maneira que pudermos, e aproveitar para ouvi-lo compartilhar conosco suas idéias sobre a vida e sobre a morte e o morrer, quando estiver pronto para falar sobre elas. Ouvi-lo dividir suas preocupações e medos e vê-lo reagir com alívio e esperança, quanto à continuidade da vida na sua ausência.

Aliás, as reações dos familiares e daqueles que estão em contato com o doente contribuem em muito para as reações desse último. Da mesma forma que o doente, os familiares passam por fases similares de negação, culpa, raiva (ressentimento), pesar, solidão, angústia, rejeição, depressão e aceitação. O médico, a enfermeira ou o terapeuta “podem ser de grande valia nos momentos finais do moribundo, se souberem entender os conflitos da família nesta hora e ajudar[em] a escolher uma pessoa mais tranqüila para ficar ao lado do agonizante… É o momento da terapia do silêncio para com o paciente, e de disponibilidade para com os parentes” 79:282.

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