Gerontologia Sócio-Existencial

Resumo

 

O interesse crescente que se vem dispensando por toda parte no mundo moderno aos problemas sociais da velhice (gerontologia – ramo da ciência que estuda os fenômenos do envelhecimento humano), teve início, a partir do momento em que estatísticas hospitalares de diferentes países da Europa e dos USA passaram a acusar progressivo incremento, em seus estabelecimentos psiquiátricos, do número de pacientes de primeira admissão, acometidos de afecções mentais tidas por peculiares ao terço final da vida humana.

Descritores: 3ª idade; senilidade; senectude; demências; Alzheimer.

Dialética da Longevidade

Bastaria assinalar, para demonstrá-lo, que na Suécia, por exemplo, nação altamente desenvolvida do continente europeu, contam-se presentemente, para uma população de mais de oito milhões de habitantes, nada menos de 9.000 pacientes, diagnosticados de demência senil, em sentido estrito. Assinale-se, que tal proporção já existia naquele país, há mais de trinta anos, não tendo havido, pois, aumento efetivo de casos da espécie, na população total.

Vejamos o que se vem passando nos USA, segundo in­formes dados a conhecer pelo Instituto Nacional de Washington-DC. O número de casos clínicos, rotulados de “psicoses involutivas, pré-senis e senis”, chega a ser cerca de nove vezes maior, nos tempos atuais, do que se registrava no começo do século XX – período este, ao longo do qual, o número de pessoas de sessenta e cinco anos ou mais aumentou de quatro vezes no promédio da população. Daí que tais psicoses, em conjunto, estejam hoje contribuindo com – entre 30 a 40% do total de primeiras entradas, em alguns dos grandes hospitais públicos urbanos daquele país.

Há todo um elenco de fatores circunstanciais de natureza diversa e valor desigual, capazes de interferir ponderavelmente na apreciação objetiva de fatos dessa ordem. Pelo menos, dois desses fa­tores merecem ser destacados como possíveis causas-de-erro na interpretação dos fatos aludidos.

Referimo-nos, de um lado, a certas contingên­cias ecológicas e a outras tantas peculiaridades inerentes às grandes metrópoles mundiais – áreas urbanas densamente povoadas, condicionando tipos de mora­dia em prédios de habitação coletiva, de alto ou baixo padrão; luta competitiva intensa, com acentuado anonimato social e deficiente ou nulo controle-de-grupo; relações-de-vizinhança geralmente neutras ou hostis -, sem dúvida alguns fatores que propendem a precipitar compulsórias me­didas de internação em estabelecimentos psiquiátricos.

Releva considerar, por outro lado, a maior confiança atual das populações citadinas, de melhor nível cultural, nos meios, recursos e processos de diagnóstico, assistência e tratamento dos pacientes dessa categoria.

Como quer que seja, e ainda que não se possa dispor de dados censitários e bioestatísticos, precisos e completos com respeito à maioria dos países ditos “em desenvolvimento”, as circunstâncias apontadas não nos parecem, suficientes para explicar a ordem de grandeza do incremento observado. Este nada tem de aparente ou ilusório, antes vinculando-se a algo auspicioso: à questão crucial do aumento da longevidade nas civilizações contemporâneas.

Graças à melhoria das condições materiais de existência da humanidade atual e ao progresso extraordinário da Medicina e da Psicologia, pode-se afirmar que a duração média da vida humana vem sendo, de fato, consideravel­mente dilatada de ano para ano em nossos dias.

Pode-se objetar que essa duração média jamais deixou de aumentar da Antigüidade aos Tempos Modernos. Se para os romanos, a esperança de vida não ia além dos 18 anos, ao fim da Idade Média e, principalmente, ao início da Renascença, grande era a probabilidade de chegarem aos 25, notando-se que, dentre cem nascidos vivos, cerca de uma dezena alcan­çava os 60 anos de vida.

Carlos V, pai de Felipe II de Espanha, responsáveis ambos pela unificação e consolidação do grande Império Católico do Ocidente, era popularmente cognominado “o velho sábio”, apesar de contar apenas 42 anos de idade, quando veio a morrer, em 1380.

Em toda a Europa, até meados do século XVIII, bastante raros eram aqueles que chegavam a tornar-se octogenários, os quais, pertenciam às classes privilegiadas.

Foi somente a partir do século XIX e, particularmente, nestes últimos cento e poucos anos, que as chamadas expectativas-de-vida começaram a elevar-se vindo mesmo a duplicar em diversos países da Europa e dos USA. Assim, na Inglaterra, tomando-se apenas como base de estimativa o período compreendido entre 1910-42, verifica-se que o número de pessoas, de idade igual ou superior a sessenta anos, passou de dois milhões e quinhentos mil para seis milhões duzentos e cinqüenta mil.

A França, por sua vez, em cuja po­pulação total contavam-se, em 1930, não mais de 7% de sexagenários, possui hoje, na passagem dos séculos XX/XXI, nada menos de 12%, fora cerca de um milhão de octogenários, 2/3 dos quais pertencentes ao sexo feminino.

Em conseqüência, admite-se que as expectativas-de-vida, nos países citados, estejam agora em torno de 68 anos de idade, para os homens, e 77 para as mulheres, equiparando-se às da Suíça, Holanda e Escandinávia, especial­mente Suécia e Finlândia, que detinham o recorde, desde o longínquo 1960.

Igualmente nos USA, rigorosos informes censitários pe­riódicos vêm sendo efetuados, tem-se podido apurar que, a quota de sexagenários na população do país está aumen­tando, de ano para ano, em proporção que se estima não inferior a 400.000 por ano. Isso induz a admitir que, no momento atual, mais de vinte milhões de norte-americanos já estão indo além dos 60 anos de idade; mais de seis milhões atingindo à casa dos 70 anos; e nada menos de dois milhões tornando­-se octogenários.


Em 1850, com efeito, contavam-se naquele país, cerca de 5 adolescentes, de 20 anos ou menos, para cada adulto de 45 anos ou mais. Precisamente cento e cinqüenta anos depois, revelava-se essa proporção praticamente igualada. Tais fatos levam à inferência de que, as pessoas de mais de 60 anos de idade constituirão, pelo menos, a quarta parte do total da população norte-americana. E, por sua óbvia significação prospectiva: a proporção adolescente/adulto, já estará então praticamente in­vertida, isto é, haverá aí, aproximadamente, 2 indivíduos, maiores de 45 anos, para 1, menor de 20.

Desta forma, parece-nos mais que suficiente para justificar as apreen­sões do mundo moderno, frente às graves e prementes questões clínico-sociais ligadas ao problema geral da ancianidade.

Defrontamo-nos, efetivamente, e pela primeira vez, com qualquer coisa de novo em toda a História da Humanidade. Há uma urgência e dificuldade de equacionar ade­quadamente a sua problemática.

Não se ignora que, em algumas remotas civilizações orientais (chine­ses, hebreus etc.), os velhos – provavelmente por serem pouco numerosos, posto que as condições gerais de vida não favoreciam a longe­vidade – ocupavam posições destacadas no seio da família, cercados do respeito e veneração de todo o clã comunitário. Sabe-se igualmente, graças aos modernos antropólogos, que em certas comunidades primitivas atuais, de economia próspera e organização social estável e bem estruturada, prerrogativas especiais são também asseguradas aos anciãos, que alguns chamam de presbíteros. Por conta dos co­nhecimentos que possuem acerca das antigas tradições, das lendas e dos ritos, condição que lhes confere singular prestígio, como elemento de coesão interna, visando à preservação dos interesses tribais e sua proteção contra os malefícios de estranhas potências sobrenaturais.

Esse problema em referência passou a ser objeto de acurados estudos e indagações, de variada or­dem, estimulando os governantes das duas mais poderosas nações da terra, na Guerra Fria – ou, III Guerra Mundial: USA e União Soviética – à fundação de seus dois primeiros grandes Institutos de Gerontologia, logo colocados sob a orientação tecno-científica de importantes Organismos Internacionais (OMS, FAO, UNESCO etc.), co­-responsáveis em grande parte pelos destinos do mundo.

Portanto, razões materiais de monta, ligadas ao interesse imediato ou mediato das coletividades humanas, acham-se diretamente em jogo nessa conjuntura. É que o aumento progressivo da longevidade, fazen­do crescer paralelamente o número de velhos na estrutura das populações, tor­nará cada vez mais avultado o contingente de inativos em seus quadros sociais.

Isso acabará por alterar a dinâmica das relações internas de produção e consumo, onerando pesadamente a economia das insti­tuições previdenciárias e assistenciais, que disso se incumbem. Acresce que são aquelas nações européias, que, por seus mais altos padrões de cultura, desenvolvimento e organização social, ostentam as mais elevadas expec­tativas-de-vida, as que acusam os mais baixos índices do chamado crescimento vegetativo. Em muitas delas, essa diferença entre nascimentos e mortes continua a ser pouco significativa, senão mesmo diminuta ou nula. Isso decorre não somente de um aumento puro e simples da longevidade, mas também de um evidente decréscimo da natalidade.

Fenômeno inverso é o que vem sendo, por outro lado, observado em numerosos países da Ásia e, com menor intensidade, da África e da América Latina. Neles, apesar das notoriamente baixas expectati­vas-de-vida, a par dos altos índices de insalubridade geral e de mortalidade in­fantil ainda vigentes, continua a registrar-se, de ano para ano, acentuado cres­cimento demográfico, por força da incontrolável fertilidade da grande maioria de seus habitantes. Na índia, por exemplo, em cuja população contam-se apenas cerca de 3,6% de indivíduos de mais de 60 anos de idade, o crescimento demográ­fico se opera na razão de 12 milhões por ano, o que se confirmou, para aquele país, ao final do século XX, nada menos de 1 bilhão de habitantes.

 

Mais ainda: na China, a julgar pelo que a respeito nos tem sido dado conhecer, haverá, aproximada­mente à mesma época, um mínimo de 2 bilhões de chineses, o que não chega a espantar, se tivermos em conta que a população, deverá ser então equivalente à de toda Escandinávia, em conjunto. Não há dúvida de que em diversos países da África (Nigéria, Ghana, Quênia etc.), o problema demográ­fico apresenta-se menos agudo. É preciso não esquecer de que, no Egito, nasce, atualmente, uma criança, a cada minuto, e de que há certas zonas do oeste do Cameroun, em que a densidade demográfica é de cerca de 300 mil habi­tantes por quilômetro quadrado.

Igualmente na América Latina, e tomando apenas por ponto de referência o que sobre isso se sabe, acerca do nosso próprio país, pode-se dizer que o problema da longevidade não chega ainda a constituir maior preocupação, pois a proporção de velhos não vai além de 3%. Entre nós, a mortalidade infantil, chega a alcançar mais de 200 por 1.000 nascidos vivos, e as doenças infecto-parasitárias, continuam a figurar entre as principais causas de morte da população. Parece inquestionável que a duração média da vida humana também continue a aumentar, em nosso país, encontrando-se agora em torno dos 50 anos de idade, e que os índices de natalidade venham crescendo, à razão de aproximadamente 43 por 1.000 habitantes.

À base do que foi visto, e em se tendo em conta que o efetivo populacional do mundo, destes, uns 63% serão asiáticos, e mais ou menos 10% latino-americanos. Dos restantes, haverá, no máximo, 20% de europeus e norte-americanos em conjunto, a metade dos quais, já se encontrará então na faixa etária dos 60 anos.

Quer isso significar, evidentemente, que será assim mera questão de tempo o envelhecimento e perecimento gradativo das populações da Terra, a começar justamente por aquelas de civilização mais avançada e florescente, aca­bando, por estender-se às demais e por conduzir, finalmente, à lenta e completa extinção da vida humana em nosso planeta. Acrescentemos que os USA, como também os países do Oriente estão dizimando seus jovens-ainda-adolescentes em suas guerras.

Eis a sombria ameaça que paira sobre o porvir da Humanidade – perspectiva apocalíptica, dialeticamente armada, em nossos dias, pelo mais jubiloso evento das civilizações contemporâneas.

É verdade que se aprendeu a conhecer, através intenso trabalho de pesquisa, os limites de habitabilidade das diferentes re­giões da superfície terrestre. Não se desconhece, os males decorren­tes do crescimento demográfico desordenado e da conseqüente concentração de grandes massas humanas em espaços exíguos.

Dispõe-se, de recursos eficazes para prevenir e dar combate a certos fenômenos negativos, resultantes do superpovoamento de determinadas áreas ecológicas, inerentes aos grandes centros industriais urbanos – fome, poluição, contagiosidade, tensões emocio­nais e desajustamentos psico-sociais, de variada ordem, truculência, agressividade e evasões anormais e por aí vai.

Quanto, porém, ao problema da longevidade, devemos confessar-nos praticamente desarmados. Há, no mundo, presentemente, segundo as conclusões levadas à Assembléia Geral das Nações Unidas pelo sociólogo Tarek Schuman e seu grupo de trabalho, em fins do século XX, cerca de 200 milhões de pessoas com mais de 65 anos de idade. E o pior é que uma grande parte dessa população, tanto nas cidades quanto no campo, não dispõe de meios próprios e suficientes para assegurar sua subsistência, pertencendo ao que se entende por “velhice abandonada e desamparada”, vale dizer, condenada a viver seus últimos dias na solidão e na miséria.

Assim sendo, em suas custosas viagens pelos céus, venha o homem a tentar a ocupação de outro planeta perdido em algum canto do espaço cósmico, para aí constituir uma Nova Humanidade. Importa buscar alguma solução, dentro das normas e preceitos da dignidade humana e da coexistência social, capaz de preservar, a posteridade do Homem na Terra.

Quero chamar a atenção da capital da psicologia da senectude em termos de experiência humana vivida, ou seja, como particular modificação do modo de coexistência intersubjetiva, que define a estrutura fundamental do ser-no-mundo, como Dasein.

Nesse sentido recordemos à luz das especula­ções fenomenológicas e analítico-existenciais de Husserl, Heidegger, Jaspers, Sartre, Binswanger e seus seguidores, que a vida humana, em seu aqui-e-ago­ra, é, essencialmente, um Mit-Dasein, um “existir com”, e transcorre, funda­mentalmente, em uma ordem temporal irreversível. Viver é temporalizar. Existir no tempo. Transcender no tempo. Ou, como disse Ortega y Gasset – é futurizar.

Compreensão Existencial da Senectude

A Morte, ao contrário, é eternidade, cessação do devenir existencial, e assim, o reverso da temporalidade em que reside a essência mesma do existir.

Enquanto vivo, o homem se projeta para as suas possibilidades. É, assim, um ser-para-si, em constante transformação e renovação, sob a pers­pectiva de um futuro, que crê estar ainda à distância e que sempre se lhe afigura afastar-se.

Estar vivo significa, por conseqüência, ser capaz de transcender, de modificar, alterar e até mesmo anular, a qualquer tempo, todos os seus projetos anteriores, reformulando-os em direção a novos rumos até não raro, sur­preendentemente contrapostos.

Cada um é sempre aquilo que ele pode fazer ou vir a fazer de si mesmo (como o sentenciam Heidegger, Sartre, Jaspers). E esse poder-de-opção, essa liberdade de escolha – apesar de nem sempre vivenciada, sob a forma de de­cisão consciente e voluntária – torna-o, sem dúvida,  respon­sável pelo que ele é ou venha-a-ser.

Estar morto, ao contrário, é converter-se, definitivamente, em ser-para-ou­tros. Quer isso dizer que o ser-para-si degrada-se aí ao nível da coisa, do objeto inanimado e solidificado do ser-em-si.

Mas não é tudo. Enquanto vivo, pode o Homem, a qualquer momento, reencontrar-se, vale dizer, coincidir com a sua mesmidade; ou jamais chegar a fazê-Io, por isso que é ele um projeto, que se desloca livremente para o futuro. Somente, pois, a Morte, anulando de um golpe todas as suas possibilidades, obriga-o a ser, daí por diante, aquilo que “ele realmente foi”.

A partir de então – no dizer de Sartre – “a sorte está selada.”

Liberdade para a Morte

Não poucas vezes, temos ressaltado que o Homem é o único ser da natureza ciente do seu destino, como ser-para-a-morte, apto a discernir o Bem do Mal e, portanto, a decidir dos caminhos de sua con­duta, pela eleição ou rejeição dos valores positivos ou negativos que lhes cor­respondem.

Em suma – o Homem sabe que vai morrer. E, assim sendo, o escolher a vida importa em aceitá-Ia como responsabilidade, outorgando-se, com isso, o compromisso de construí-Ia, de edificá-Ia, na plenitude de sua lucidez e liber­dade.

Substancialmente diversa da existência animal, escravizada à uniformidade dos padrões naturais pré-determinados – mera repetição estereotipada e imu­tável de formas de comportamento, inerentes a cada espécie – a existência humana assemelha-se, antes, sob muitos aspectos, a uma obra-de-arte. Obra que cada qual realiza a seu modo, imprimindo-lhe a força de um estilo todo pessoal, de acordo com o significado que lhe empresta aos entes e às coisas do mundo que lhe é próprio, e ao sabor das diretrizes que se traçou, a partir de sua opção originária.

É que ao Homem, e só ao Homem, assiste, afinal, a liberdade de ser ou deixar-de-ser. O direito à morte constitui, pois, a primeira de suas prerrogativas específicas.

Ainda que, como negação absoluta de todas as nossas possibilidades, a morte representa  uma possibilidade livre de ser. Somente ao Homem pertence o privilégio de optar, a qualquer momento, pela solução extrema e radical ao seu alcance, para todos os problemas e conflitos da existência.

Essa faculdade de fazer coagular, instantaneamente, quando bem o deseje, o fluxo temporal de sua existência, impõe ao Homem a responsabilidade de honrar seu compromisso, isto é, de continuar existindo, apesar do quanto ser-lhe-ia bem mais penosa essa decisão que a de lançar-se repentinamente fora do tempo, truncando o curso de todos os seus projetos existenciais, e convertendo então em nada mais que um torso ina­cabado aquela obra-de-arte, que vinha sendo a sua vida.

Aí está, ao que me parece, o singular significado da tese liberdade para a morte, que Nietzsche desenvolve em seu Zaratustra (Vom freien Tode), e em que volta a insistir, em seu – Crepúsculo dos ídolos. Neste, afirma Nietzsche “por amor mesmo à vida”, a morte deve ser, livre e serenamente, escolhida e buscada por quem já esteja seguro dela, à época precisa e desejada, sem in­terferência de acasos, “com lucidez e alegria”.

Torna-se evidente, que o ser-para-a-morte (sein-­zum-Tode) de Heidegger, de que deriva e a que se atém a sua denominada angústia existencial, redunda na tese mesma de seu incom­preendido inspirador, ainda que sem aquelas explicitações radicais, para cuja formulação far-se-ia necessário dispor não apenas da força do gênio, o que a ambos não faltava, mas sim, também, da profunda sinceridade, e extraordinária coragem moral, com que o autor de Zaratustra arrostava as mais ousadas e perigosas conseqüências de suas ilações.

Senectude como novo Modo-de-Existir

Chegamos ao núcleo da questão crucial que nos ocupa. É que, de fato, para quem tenha escolhido a vida, sabendo, que em seu avançar incessante para o porvir, estará a caminho do nada imprescritível, a entrada na velhice é já um começo de “entrega”, de capi­tulação, diante da grande e inexorável realidade, que se aproxima.

Inútil é agora tentar aturdir-se no turbilhão das agitações cotidianas, deixar-se empolgar pela adoração dos falsos ídolos, dissolver-se, en­fim, no anonimato da existência inautêntica. A pre­sença invisível do nada, de onde viemos e para onde vamos, faz-se sentir, em torno, e cada vez mais nítida e constante, no Lebenswelt (HusserI) da senectude. Por isso, o mundo do ancião, com as coisas reais, os objetos ideais e os valores – em uma palavra, os entes, que o povoam e o constituem – passou a sofrer agora toda uma singular transformação em sua própria estrutura ontológica fun­damental.

É que, para viver, o Homem teve que negar o nada, manipular as coisas e utilizá-Ias, isto é, alimentar-se, vestir-se, proteger-se das agressões da natureza e do próximo, criar, inventar, descobrir o ser dos objetos, ocupar-se e preocupar­-se continuamente. Por isso, o Homem é um ser essencialmente angustiado. Sua angústia é, a um só tempo, afã de viver, de continuar sendo, e terror de deixar-de-ser. Cada obstáculo que surge, cada problema vital que se lhe apre­senta sugere-lhe a imagem do nada e é vivido então como ameaça à integridade e continuidade do ser. É ao que alude Kierkegaard, quando assinala que a an­gústia humana está vinculada ao modo de como “o eu vive a realidade”. Daí que, para afirmar o ser, esteja o Homem condenado a manter-se em permanente apreensão e inquietude – estado de tensão, alerta e vigilância assídua, que define a condição do ser-no-mundo, como cuidado (Sorge).

A vida não é, está bem claro, algo estático e tranqüilo, como a superfície de um lago. A vida é algo que flui, ininterruptamente, sempre em busca de si mesma e em direção a um futuro, que se contém em germe no presente, e que nele se antecipa preceden­do-se a si própria.

Quer isso dizer que o vir-a-ser está sempre antes do é, e lhe dá origem. O que é, tão pronto o seja, deixou de ser, já não é mais. Isso nos leva agora a en­tender mais claramente, o sentido daquela tão conhecida proposição de Heidegger, segundo a qual – “o presente é o futuro sido”.

Fundamentos Ontológicos da Senectude

Tais são, em suas grandes linhas, alguns dos temas car­deais da moderna Ontologia Existencial, que nos auxiliarão, a levantar um ponto do véu, que encobre a problemática da senectude, deixando-nos entrever, em sua maior profundidade e transcendência, al­guns aspectos essenciais, característicos, do modo-de-ser-no-mundo dos anciãos.

Embora compreendendo haver chegado à última etapa de sua trajetória, o Homem recebe o advento da velhice, não como prenúncio consciente do aniquilamento irrecorrível, mas como uma nova modalidade de existência, a que, ainda assim, precisa e se esforça por ajustar-se. Não ignora por seu estado orgânico, psíquico, e, sobretudo, pela mudança de atitude dos que o cercam, a proximidade em que se encontra de sua extinção biológica inapelável. Percebe a cada passo, que o seu mundo se estreita e se esvazia.

Já se foram, um a um, os antigos companheiros, os parentes mais idosos, os amigos mais queridos. E grande já é o séquito de fantasmas, o cortejo de espectros, amáveis ou terríveis, que o envolvem e o acompanham. Sente, dia a dia, que o seu horizonte, outrora amplo e distante, limita-se, mais e mais à sua frente, como para advertir-lhe de que já não poderá estar longe aquela outra limitação, derradeira radical e definitiva – o sempre adiado amplexo dos horizontes, de que nos fala Jaspers. Sabe que algo de ameaçador o vem esprei­tando de mais perto, em cada curva, aos caprichos do acaso ou da fortuna ­um monstro, que se chamará carcinoma, trombose cerebral, infarto, ou não importa que outro nome tenha, mas que, a qualquer momento, acabará por interceptar-lhe a caminhada.

Dir-se-ia que o corredor em que agora penetrou é como a boca de um túnel, em suave declive; a princípio, espaçoso e ainda algo iluminado, mas que se vai afunilando, imperceptivelmente, rumo ao desfiladeiro e, tornando-se então cada vez mais íngreme e escuro, à medida que se precipita em direção ao abismo.

Morrerá só, como nasceu, no dizer de Pascal. E essa solidão, que constitui uma necessidade existencial da velhice, é já, um começo de morte. Porque expressa a quebra da coexistência e da comunicação, que alimentam a tensão vital recíproca entre o eu e a comunidade.

O ancião é sempre, e antes de tudo, um solitário.

Não encontrando entre os que lhe cercam quem comungue dos anseios e aspirações do mundo arcaico a que pertence, é um insulado em meio da mul­tidão. Os jovens emudecem à sua presença. Sentem-se embargados ou inibidos diante dele. Ouvem-no, às vezes, por curiosidade, consideração, respei­to ou complacência. Mas, no fundo, não o compreendem. E, de resto, nada têm a dizer-lhe. Falam uma linguagem que não é mais a sua. Impossível, assim, tentar estabelecer qualquer verdadeiro intercâmbio espiritual entre seres que se expri­mem em idiomas tão diversos.

O fenômeno da comunicação repousa justamente naquela ressonância empática recíproca, que está a base do encontro (o Begeg­nung, de Binswanger) e que constitui o fundamento unitário, pré-reflexivo, da compreensão categorial entre dois seres humanos, ligados pelo mesmo aconteci­mento, nas mais diversas conjunturas da existência. Sem essa receptividade afe­tiva mútua, a mais animada conversação logo se descolora. E descamba, in­sensivelmente, para o monólogo enfadonho, ou se transmuda, de repente, em um amistoso “diálogo de surdos”. A comunicação é assim, algo essencial, tanto ao em-si, como ao tu e eu da coexistência interumana no cotidiano.

O ancião está só ante o nada. E, por isso, são cada vez mais escassas as suas possibilidades de comunicação com o próximo. A razão pela qual não é levado ao desespero supremo, de que nos fala Kierkegaard, reside unicamente nesta peculiaridade, que é a carência de antecipação, ou seja, a perda da capaci­dade de futurizar a existência, dado psicológico que vale por uma verdadeira característica fenomenológica da ancianidade.

Isso, entretanto, ao mesmo tempo, que preserva e defende a sua persona­lidade, na medida em que lhe tolda a visão prospectiva das coisas e lhe ameni­za a angústia de avançar para o aniquilamento irrecorrível, aumenta e acentua, mais ainda, a sua solidão, posto que o afasta do presente, criando-lhe, por com­pensação, a necessidade de uma temporalização retrospectiva da existência.

Eis aí por que se pode dizer que o ancião vive de reminiscências. Sua exis­tência atual transcorre sob a forma de sucessivos flasch-backs. Os acontecimentos presentes ressentem-se de significação prospectiva e, por isso, lhe servem apenas de estímulo e pretexto às suas constantes e reiteradas memori­zações.

O memorialismo literário é próprio da senectude.

Claro está que a tarefa de reconstituir o passado só pode ser empreendida por quem tenha, afinal, algum passado a evocar. Para o ancião, a vida adquiriu a significação de uma obra já quase concluída. Daí que as autobiografias dos homens ilustres só venham a ser escritas, como é de todo natural, na idade avançada, contingência que seria por si só suficiente para comprometer sua importância, como documento psicológico.

Encarnando atitu­de notadamente pessimista em uma injusta generalização, ao insinuar que a velhice, debilitando o processo mnêmico, faria periclitar a fidelidade das reconstituições. Tal observa­ção caberia aos casos de velhice patológica e, ainda assim, diria respeito ao relato dos acontecimentos mais recentes. O passado re­moto pode conservar-se intacto, durante longo tempo, mesmo na demência fran­ca, e, nessas condições, ser reproduzido com relativa precisão.

Nos estados demenciais senis, o que ocorre é a preterização do presente, por efeito de sua dessubstanciação subjetiva. Ao passo que, no ancião mentalmente sadio, o que se observa é antes a presentificação do passado, alte­ração da dinâmica do tempo, relacionada à frustração do vir-a-ser existencial, e que o leva então a refugiar-se no acontecido, em detrimento da hora atual. Há nele uma tendência irreprimível a voltar-se sobre si mesmo e a rever o caminho percorrido, em uma tentativa desesperada de evadir-se para um tempo que lhe poderia ter sido, sob certos aspectos, bem pior que o atual, como às vezes, aliás friamente o reconhece, mas em que lhe sobravam ilusões e esperanças e, sobretudo, em que sabia poder contar com um futuro à sua frente.

Eis aqui o prisma, através do qual se filtra a caracterologia dos anciãos ­essa íntima e amarga “certeza de não se ter um amanhã” – fato que, por sinal, não escapara à argúcia de um observador fino e atilado, como o grande Ramón y Cajal, que a ele detidamente se refere em suas – Charlas de Café e em seu ­El Mundo, visto a Ios Ochenta Años.

O que sabe, que não tem mais futuro em um mundo que prosseguirá tendo o seu futuro, que continuará a existir para os outros, apenas para os outros, equivale a estar virtualmente morto. Esta é, também, exatamente, uma das idéias diretrizes do pensamento de Sartre, acerca da psicologia da morte, tema que desenvolve, com penetrante lógica, em seu célebre – L'Etre et le Néant, e que vem a explorar, de ângulos agudíssimos, ao limite máximo do patético, em duas de suas mais famosas e inquietantes criações literárias – Le Mur e Morts sans Sépulture.

O Homem sabe que vai morrer, mas procede como se fosse eterno. Vive sob a ficção da imortalidade. E, por isso, leva a vida demasiado a sério. Luta, com paixão, por pequenas ou grandes coisas. Regozija-se ou exas­pera-se, ao infinito, com os seus triunfos ou derrotas. Bate-se, com ardor, até o supremo sacrifício, por uma idéia boa ou má, por uma causa qualquer, heróica ou vã, que se lhe apresente. Corre, enfim, com ansiedade, em busca do amor, do prazer, da riqueza, do poder, do prestígio, da liberdade. Até que, súbito, estaca, diante da parede, onde termina a vida. É como se lhe chegasse, neste instante, a revelação estarrecedora de que não era imortal. E compreende então que a sua vida não passara de uma espera sem sentido.

 

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