Extraído de Azevedo, Cláudio; A Caminho no Ser: Uma Visão Transpessoal
da Psicologia no Yoga S?tra de Pat?ñjal?, Editora Órion, Fortaleza, 2.007
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Como todas as tradições sapienciais, a filosofia Yoga estuda a mente e faz com que o praticante investigue as causas de sua insatisfação e sofrimento. Essas causas constituem a base do Yoga S?tra de Pat?ñjal?: a filosofia dos kle?as YS II:3. Embora não seja exclusiva do Yoga S?tra, essa filosofia foi exposta nele de uma forma muito elegante.
A parte II do Yoga S?tra se detém, em seus 28 primeiros sutras, na análise das causas da infelicidade e do sofrimento humano, e no modo como elas podem ser atenuadas e eliminadas. O Yoga S?tra chama esta infelicidade de du?kha, que, embora seja comumente traduzido como ‘sofrimento’ ou ‘dor’, inclui as suas formas sutis de ‘amargura’ ou ‘insatisfação’. É um estado mental em que se experimenta um sentimento de limitação das possibilidades de agir e entender 2:138.
Esse conceito, amplamente discutido na filosofia budista, é exposto no Yoga S?tra quando ele afirma que todas as experiências mundanas são fonte direta ou indireta de du?kha, pois a vida é, inerentemente, sujeita a mudanças (pari??ma), fonte permanente de ansiedades (t?pa), hábitos (sa?sk?ra) e conflitos (gu?av?tti-virodha?) YS II:15.
Somos totalmente inconscientes das mudanças que ocorrem tanto no mundo externo quanto no interno. Estamos tão envolvidos nas ilusões da existência que seguimos vivendo de acordo com nossos hábitos, inconscientemente ansiosos ante a perspectiva de mudanças e sentindo os conflitos entre nossos anseios, nossa natureza mental e a impermanência do mundo: nunca queremos o que já temos, mas sim o que não temos ou o que perdemos.
A maioria da Humanidade está em sofrimento intenso, enfrentando muitos momentos em que se sente incapaz de qualquer ação devido ao excesso de dificuldades que está enfrentando, dificuldades estas criadas por si mesmo (adhy?tmika du?kha), por outros (adhibhautika du?kha), ou pela Natureza (adhidaivika du?kha). Aflição, medo, angústia, exasperação, depressão, profunda irritação, cólera, furor e raiva. Estresse… Hipertensão arterial, coronariopatias, tremores, sudorese excessiva, frio ou calor, perda da fala com paralisia momentânea, distúrbios emocionais e até surtos psicóticos, já são endêmicos na humanidade.
Assim, du?kha pode se refletir como uma profunda depressão, uma tristeza clinicamente visível ou uma sombria melancolia, mas na maioria das vezes é simplesmente uma discreta e quase imperceptível amargura ou insatisfação. A vida ‘normalmente’ vivida é amarga e o primeiro passo no caminho da libertação é o despertar para essa amargura, da qual, na maior parte do tempo, somos inteiramente ignorantes, tanto da sua existência em nós quanto das suas causas.
“Não importa qual forma tome, contudo, du?kha certamente ocorrerá sempre que nossas ações se originarem de avidy?” 2:139.
T. K. V. Desikachar
Prosseguimos na vida procurando a satisfação em nossos sentidos (preya), na ‘possibilidade de aquisição’ (moda) ou na obtenção (promoda) de alguma coisa, ignorando que há uma forma de conquistar a libertação de todo o sentimento de sofrimento, infelicidade e limitação: a busca por um estado que os hindus chamam ?reya. A ignorância geral da causa dessa infelicidade e o desconhecimento tanto do que seja a realidade quanto de quem somos nós na verdade, no Yoga S?tra é denominado avidy?.
Avidy? YS II:5 é tomar o não-eterno (anitya) como eterno (nitya), o impuro (a?uci) como puro (?uci), o não-Eu (an?tma) como o Eu (?tman). Tanto a moderna física quanto o Yoga e todas as Tradições Sapienciais 1:48-52 afirmam a mesma coisa: aquilo que percebemos com os nossos sentidos não é a realidade, mas uma ilusão (m?y?), causada por um véu que se interpõe entre nós e a coisa percebida.
A distinção entre o que é ilusório e o que é real é a solução para a extinção do sofrimento e para isso devemos descobrir o que não muda dentro do que muda, o permanente no impermanente. Tudo o que for impermanente não pode ser considerado real e não pode ser fonte de apegos. Assim, todas as alegrias provenientes de coisas impermanentes são, na realidade, também impermanentes e fontes inexoráveis de dor. Por isso, também é avidy? tomar como agradáveis (sukha) todas as dolorosas (du?kha) fontes impermanentes de alegria.
“As alegrias que brotam do mundo dos sentidos encerram germes de futuras tristezas que vêm e vão; por isso… não é nelas que o sábio busca sua felicidade”. BG 5:22
Faz parte da natureza material humana a impermanência e a impessoalidade, ou seja, não existe uma individualidade eterna e imutável: o ‘eu’, como concebe a nossa visão, não existe. Assim, avidy? é a ausência da percepção de nossa verdadeira natureza. Confundimos o conhecido com o Conhecedor YS II:17 e por isso tomamos o ‘eu’, nossa persona, como o verdadeiro ‘Eu’, num processo de auto-identificação (asmit?) YS II:6. É dessa ilusão do ‘eu’ que surge o ego autoconsciente (aha?k?ra) e nasce o aprisionante desejo do ‘meu’ (mameti), pois tudo aquilo que é possuído toma posse de seu possuidor.
Esses desejos pessoais (k?ma), totalmente identificados com o ego (o ‘eu’), sempre ocasionam pensamentos (v?ttis) e ações (karma) que geram frutos agradáveis ou desagradáveis. É a repetição dessas ações que origina nossas tendências, impressões subliminares, hábitos ou potencialidades (sa?sk?ras). K?ma, v?ttis, karma e sa?sk?ra se unem em um ciclo vicioso onde nossos desejos, pensamentos e ações retro-alimentam nossas tendências, que, por sua vez, dita novamente nossos desejos e ações, gerando uma força que dirige a mente (citta) e turva a percepção do Eu. A palavra sânscrita para essa força produtora de nossos desejos, impulsos e instintos é v?san? YS IV:8.
Assim, todos os desejos, ações, tendências e potencialidades, frutos de nossa auto-identificação (asmit?), são produtores de apegos e repulsas, se os frutos da ação (karma) resultam agradáveis ou desagradáveis respectivamente. V?san? é a força que nos faz buscar os prazeres dos sentidos (r?ga – paixão YS II:7) e fugir das sensações que causam dor (dve?a – aversão YS II:8), fontes de nossas insatisfações. R?ga e dve?a são também causas de aflição (obstruções à nossa felicidade – kle?as), assim como avidy? e asmit?, pois assim como todo fruto desagradável, todo fruto agradável de uma ação (karma) também gera insatisfação quando não obtido, quando obtido e perdido ou pela antevisão de perdê-lo. Essas são as maiores fontes de nossos medos (bhaya) e ansiedades (t?pa).
Por fim, v?san? abrange um nível mais profundo de desejo e apego: o desejo da própria existência (abhinive?a) YS II:9. Esse desejo de auto-existência tem uma força própria (svarasav?h?) e constante que é inerente à vida e que se expressa nesse desejo de existir. Somente quando se extinguir em mim o desejo aos prazeres dos sentidos, o desejo de existir e até o desejo de não existir (também um desejo egóico), é que a minha auto-identificação egóica e a minha ignorância cessarão: desaparecerão minhas causas de aflição (ou kle?as).
A filosofia Ved?nta fala de três espécies de v?san?s: o desejo pelas coisas do mundo (loka-v?san?), o desejo pelo próprio corpo (deha-v?san?) e o desejo pelas Escrituras (??stra-v?san?) VC:273. Onde houver desejos por objetos materiais, e até espirituais, estará presente a auto-identificação (asmit?). Seria a ‘cadeia de ferro’ que prende aquele que aspira pela libertação do círculo vicioso (sa?s?ra) (sa?sk?ra, k?ma e karma). de nossas tendências, desejos e ações
Nesse contexto, o primeiro passo na lida de nossos hábitos e vícios começa justamente a nível físico-sensorial, pois a dependência física aos peptídeos emocionais que se produzem, a cada vez que sentimos prazer ou dor, e os mecanismos neuronais e sinápticos criados pelas inúmeras repetições de padrões de comportamento e ação, nos mantêm subjugados e aprisionados mentalmente. Aliás, a matéria não é exatamente aquilo que percebemos, pois ela é uma vibração energética, uma vibração mental provinda da Consciência.
“A matéria é essencialmente criativa; matéria é atividade. A atividade criativa que se observa na matéria inorgânica se torna mais evidente na matéria viva” 3:76.
Paramahansa Hariharananda
BIBLIOGRAFIA
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As referências bibliográficas acham-se assim indicadas: xx:yy, onde ‘xx’ é o número da referência contido na BIBLIOGRAFIA (no final do livro) e ‘yy’ é a página onde se encontra.
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Quando precedendo ‘xx’ estiver escrito YS, a obra referenciada é o Yoga S?tra de Pat?ñjal?, BG quando for Bhagavad G?t?, VC quando for o Viveka Ch?d?mani, TB quando for o Tattvabodha? e SS quando a obra referenciada for o ?iva S?tra (obra de referência no ?ivaísmo de Cachemira). Nesses casos ‘xx’ é o capítulo e ‘yy’ é o s?tra.
- Azevedo, Cláudio; Yoga e as Tradições Sapienciais, Órion Edições, 2ª Edição, Fortaleza, 2.006;
- Desikachar, T. K. V.; o Coração do Yoga, Editora Jaboticaba, São Paulo, 2007.
- Hariharananda, Paramahansa; Kriya Yoga; Lótus do Saber, Rio de Janeiro, 2.006;