Mitos e Ritos

Tempos de Transformação, Tempos de Reconstrução, Tempos de Reencantamento

O Parto da Mãe Terra e o Nosso Parto de Cada Dia

O rito expressa um mito, encarnando-o. O mito é o coração do rito, sua estrutura significativa. Rito e mito são duas faces de uma mesma realidade, essencialmente humana.

Roberto Crema
Roberto Crema

Quanto mais fundo mergulhamos na transformação, mais próximos estaremos da ordem Mítica, de onde emana o rito. Há uma clara e generalizada tendência no mundo contemporâneo de  resgatar o valor do mito e do rito, que conformam todas as grandes Tradições Sapienciais da Humanidade. Estamos vivenciando um processo de demolição rumo à reconstrução, movimento que alguns denominam de reencantamento do mundo. Tornar-se Sujeito do próprio mito: Tarefa Alquímica da Individuação.

Como afirma Stanley Krippner, criador do conceito de mitologia pessoal, juntamente com Feinstein, em seu significado mais tradicional, um mito é uma história ou crença organizadora que inclui alguns princípios básicos orientadores. Para este autor, as mitologias culturais desempenhavam quatro funções: ajudar os membros de uma comunidade a compreender e explicar a natureza de um modo compreensível; oferecer um modo de condução nas mais diversas etapas da existência; estabelecer papéis sociais facilitadores nas relações pessoais congeniais e satisfatórios padrões de trabalho. Finalmente, permitir a participação do ser humano na maravilha e na perplexidade do cosmo.

Os primeiros teóricos da antropologia, naturalmente modelados pelo paradigma racionalista positivista, tenderam a uma abordagem reducionista, frente ao vazio e complexo universo da mitologia. Segundo Aldo Natal e Terrin, que buscou contribuir para o desenvolvimento de uma antropologia da alteridade, em sua obra Antropologia e horizontes do Sagradoculturas e religiões, afirma que o intelectualismo de Frazer e de Tylor reduziu a conceção do ritual a um mero erro de interpretação científica. Para Frazer, um ato mágico ou ritual é realizado pela crença equivocada de que sua ação provoca os efeitos desejados, pela ação do mago ou feiticeiro, numa relação linear causal. Tylor, em sua concepção animista, influenciado pela perspectiva psicológica, destacou o aspecto catártico do ritual mágico-religioso. Radcliffe-Brown e o seu projeto de uma ciência natural da sociedade – inspirado em Durkheim e Spencer, considerava o totemismo um protótipo de religião como uma concepção do universo na forma de ordem social ou moral, onde os grupos expressam sentimentos de solidariedade, através de rituais simbólicos.

No seu enfoque funcionalista, Malinowski focaliza o ritual como exercendo uma função de integração social, contribuindo para a autoconservação da cultura e da sociedade, sobretudo diante de conflitos e de questões incontroláveis. Na sua visão, crenças e ritos, aparentemente irracionais, adquirem sentido quando são desvelados seus usos. Como afirma Adam Kuper, a fnução da magia é a de ritualizar o otimismo do homem, fortalecer a sua fé na vitória da esperança sobre o medo. Malinowsky considerava o mito como uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, satisfazendo profundas necessidades, exprimindo, enaltecendo e codificando a crença, garantindo a eficácia ritualistica e oferecendo regras práticas e orientadoras da conduta humana. Enfim, uma realidade viva, codificadora da religião e portadora de uma sabedoria prática. Por outro lado, Evans-Pritchard, que estudou a feitiçaria dos azandes, desenvolveu uma noção dos rituais de bruxaria como formas explicativas dos infortúnios, demonstrando sua racionalidade e seu aspecto místico, pressupondo a existência de forças suprassensíveis.

Claude Lévi-Strauss, em sua antropologia estrutural, discordando do funcionalismo e transcendendo a abordagem empírica, adota um enfoque universalista, considerando que o mito representa a mente que o cria, resistindo à história, numa perene condição. Do ponto de vista linguístico, Lévi-Strauss afirma que o mito é a linguagem funcionando em um nível especialmente alto. Na sua abordagem estruturalista, o ritual tem uma função articuladora entre a periodicidade biológica e de estação e o passado que liga, ao longo das gerações, os mortos e os vivos. Indicando a complexidade de culturas pré-industriais, este autor sustenta que a ciência não pode escapar inteiramente de ser mítica. O que escrevemos sobre o mito é um mito…

Terrin se refere à crítica geral de P. Winchin aos antropólogos, sobretudo a Evans-Pritchard, por sobreporem às culturas estrangeiras padrões de racionalidade próprios de suas culturas, considerando-os padrões universais, numa atitude de etnocentrismo. Citando C. Geertz e V. Turner, aponta para uma antropologia interpretativa, colocando a questão fundamental de uma hermenêutica do compreender, já que o ritual não pode ser comparado com uma racionalidade científico-instrumental, devendo ser compreendido em nível artístico e poético, por constituir uma ação simbólica e dramática. Aponta para uma tese fenomenológica, que não seria outra coisa senão a verdadeira alma de que nasce a possibilidade de conjugar antropologia e experiência religiosa (…), porque nesta visão esconde-se aquele horizonte ‘holístico’ dos significados que respeita acima de tudo e, principalmente, o mundo da experiência.

Para Mircea Eliade, o mito é modelo exemplar, que narra uma história sagrada, ou seja, um acontecimento primordial, que teve lugar na origem do Tempo. É uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares. Sendo solidária da ontologia, só fala das realidades, do que realmente ocorreu e plenamente se manifestou. Trata-se de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Narrando uma ontologia sagrada, a triunfante realização e manifestação de uma plenitude do ser, o mito torna-se o paradigma de todas as atividades humanas, para Eliade. A função mais importante do mito é ‘fixar’ os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação, etc.. Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repetindo as suas ações, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, ou de uma atividade social, econômica, cultural, militar, etc..

Joseph Campbell considera o mito uma poética da vida, que nos ajuda a colocar a mente em congtato com a experiência de estar vivo. Ao invés de ser uma busca de sentido é uma experiência de vida. Na sua visão. são quatro as funções do mito: a mística, o espanto diante do mistério; a cosmológica, como forma de compreensão do mundo, da qual se ocupa a ciência; a sociológica, como suporte e validação de uma ordem social específica e a pedagógica, como orientação nas diversas etapas da existência. A mitologia vem da consciência da morte; de que a vida se alimenta da vida e do deslumbramento diante da experiência vital. é a música da imaginação, inspoirada nas energias do corpo. Para Campbell, mitologia é uma metáfora transparente à transcendência, sendo os mitos metáforas da potencialidade espiritual do ser humano. Os mesmos poderes que animam a nossa vida animam a vida do mundo. Nesta concepção, os deuses são personificações de um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para o ser humano e para o universo. Há uma mitologia da natureza e uma mitologia estritamente sociológica, que diz respeito a uma sociedade em particular. Mitos e sosnhos vêm do mesmo lugar: da tomada de consciência de uma espécie tal que precisa encontrar expressão numa forma simbólica (…). Quando a Terra é avistada da Lua, não são visíveis, nela, as divisões em nações ou Estados. Isso pode ser i símbolo da mitoilogia futura, vaticinava Campbell.

Carl Gustav Jung inicia sua autobiografia afirmando: Fiz desta tarefa das tarefas de monha vida, a de descobrir o meu mito, o mito pelo quall eu estou vivendo. Este paradigmático pesquisador da alma desvelou uma dimensão impessoal da psique, o inconsciente coletivo, habitado por arquétipos, matrizes arcaicas e virtualidades energéticas, dotado de uma estrutura mitológica e, portanto, fonte básica da mitologia universal. Assim como Mircea Eliade acreditava na existência de uma unidade fundamental das experiências religiosas. Jung postulava uma espécie de unidade fundamental do inconsciente coletivo. Em sua abordagem simbólica, o sonho é um mito pessoal, enquanto o mito é um sonho coletivo.

Rollo May afirma que cada um de nós tem seu próprio mito, em torno do qual moldamos nossa vida. Este mito integra e nos dá a capacidade para viver o passado e o futuro, sem negligenciar nenhum momento do presente. O mito faz uma ponte sobre a lacuna entre o consciente e o inconsciente. Assim, é possível falar de alguma unidade, na imensa variedade da interioridade humana. Para May, o mito exerce uma função regressiva, constelando conteúdos reprimidos, anseios arcaicos, desejos e medos, e uma função progressiva, rompendo os limites de um sentido maior, que não estava presente antes, consistindo num modo de se resolverem problemas num nível superior de integração. A abordagem psicanalítica, redutora causal, sabota esta última função, apenas acentuando os aspectos regressivos da vivência mítica.

Como o paradigma do racionalismo científico é, inerentemente, analítico, houve uma hipertrofia da utilização deste método de decomposição e de fracionamento sistemático do todo em suas partes e de redução dos fenômenos ao seu aspecto causal. Este caminho diabólico – de diábolos: o que divide – precisa ser complementado pelo simbólico – de symbolos: função do sabrado, que vincula e indaga pelo sentido. Portanto, a unidade aberta do mito e do rito, para ser compreendida de forma abrangente e plena, precisa ser submetida a esta dupla metodologia, da fragmentação analítica  e da revinculação simbólica.

Como afirma Joseph Campbell, o segredo do símbolo, mitológico e espiritual, é que deve ser transparente à transcendência. Neste enfoque, que integra a perspectiva antropológica com a histórica e a psicológica, um deus é uma personificação de uma energia natural, advinda do mundo externo ou de nossa natureza interior. Quando procede de nosso interior, a sua emergência se dá como a imagem de um sonho e, posteriormente, do mito. Assim, quanto mais fundo mergulhamos, mais próximos estaremos da ordem mítica, de onde emana o rito. Quanto mais superficial o mergulho, mais estaremos vinculados à ordem do mental, do racionalismo lógico.

Há uma clara e generalizada tendência, no mundo contemporâneo, de resgatar o valor do mito e do rito, que conformam todas as grandes tradições sapienciais. Alguns denominam este movimento de reencantamento do mundo. Neste sentido, a arte-ciência da hermenêutica é fundamental, no seu aspecto mais amplo e inclusivo pois é a interpretação que nos possibilita o dom da liberdade. Em outras palavras, não somos livres com relação ao que nos acontece; a nossa liberdade consiste naquilo que fazemos com o que nos acontece. Apenas alguém capaz de interpretar, de forma vasta e plural, é capaz de superar os obstáculos e sofrimentos existenciais, fornecendo-lhe um sentido e uma orientação, tornando-se Sujeito da própria existência.

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