O Autoconhecimento – cont.

Continuação…

 

Deveríamos controlar o nosso corpo, que fala e age (Tg 3:2) e controlar nossa mente consciente (Mt 5:28), com seu jogo de desejos, sensações, sentimentos e emoções (filosofia presente no Zen e também em quase todas as tradições religiosas).

As emoções são sentimentos conscientizados e os sentimentos são pensamentos não conscientizados (Cf. no Capítulo II). É importante notarmos que é possível controlar nosso corpo, pelo poder de nossa vontade interior e mudar nossos pensamentos, pensando no seu oposto, mas não podemos simplesmente mudar o que sentimos passando a “sentir” o sentimento oposto.

O controle das emoções é um objetivo alcançado apenas quando conseguimos controlar nossos desejos. O condicionamento é a raiz do desejo. O desejo é o tronco de onde brotam o apego e a repulsa, que quando são intelectualizados, ou conscientizados, dão origem a todas as emoções humanas (Cf. no próximo capítulo). O controle do desejo envolve a conscientização de todo o processo de condicionamento que o gerou, um processo longo e difícil que só termina às portas da auto-realização.

Assim, nossas reações emocionais, geralmente, são fruto de condicionamentos criados ao longo dessa vida, baseados num tipo de lógica limitada e errônea que é própria do corpo emocional (Kama). Esses condicionamentos são conclusões infantis subconscientes que governam a nossa vida consciente inundando-a de desejos, repulsas, ódios e paixões. Essas conclusões, provindas de quando éramos criança, uma criança que quis perfeição e felicidade absoluta, mas que só encontrou privação, insatisfação e frustração, geraram Imagens energéticas congeladas que ficaram registradas no nosso subconsciente. Vivem dentro de nós. São energias que fazem parte de nós. Esse congelamento gera um bloqueio na circulação de nossa energia vital (Prana), a qual fica congelada junto com a Imagem. Como resultado surgem sentimentos profundos de ansiedade e infelicidade, guardados desde a nossa infância e consumindo nossa energia vital.

Por exemplo, quando crianças podemos ter sido obrigados a agredir a quem amamos, como forma de chamar a atenção e conseguir uma demonstração de amor, nem que seja a atenção na hora da repreensão. Podemos ter sido obrigados a esconder os nossos erros para obtermos o amor e a admiração daqueles a quem amávamos. Com o tempo, passamos a ser sádicos e agressivos sem sabermos os por quês. Passamos a ser arrogantes e a mostrar a todos que nunca erramos, para podermos ser amados e admirados.

Levamos para a vida adulta atitudes infantis, Sombras disfarçadas com Máscaras. Uma Máscara de “bonzinho”, que esconde uma pessoa vingativa que acha que assim despertará o amor daquele que ele ama. Uma Máscara de perfeito e impecável que esconde uma Sombra arrogante que quer a admiração daqueles que ele ama. Só quando vemos e sentimos que esse mecanismo não funciona e traz apenas sofrimento, é que conseguimos vencer os nossos sentimentos mesquinhos e inferiores. Para isso é necessário coragem, sinceridade, humildade e submissão:

 

“A alma insincera e reticente expõe-se a grandes perigos na vida espiritual e o próprio Senhor não se comunica a essa alma num nível mais elevado, porque sabe que ela não tiraria proveito dessas graças especiais. … O orgulho mantém a alma nas trevas. Ela não sabe e não quer penetrar devidamente no fundo da sua miséria, esconde-se atrás de uma máscara evitando tudo que a possa curar. … O mais experiente confessor em nada poderá ajudar a uma alma de tal natureza… não progredirá na perfeição nem na vida espiritual”  31:32.

Santa Faustina Kowalska (1.905-1.938)

 

Facilmente nossas emoções se voltam contra nós, quando o medo se transforma em ansiedade, o desejo dá lugar à ganância, a amizade dá lugar à inveja e o amor à obsessão, ou o prazer se torna um vício. As emoções podem, então, ter conseqüências tantos úteis como patológicas. Por isso, ser indiferente a desejos e paixões (apatheia) e viver de acordo com a razão eram as metas dos estóicos (Cf. no Volume 1).

Mas essa indiferença não significa negar o que se sente. O homem, com medo do pecado, se comporta negando seus reais sentimentos para se passar por bom e ser aceito pela sociedade, pelo seu Mestre ou pelo seu Deus. Usando a razão e o poder da vontade interior, quer se aproximar de Deus negando a si mesmo e assim deposita os seus reais sentimentos no subconsciente. Dessa forma cria um véu que encobre mais ainda o seu “Eu superior”, pois esconde no seu subconsciente (na Sombra), próximo ao consciente, coisas que nega a si mesmo sentir e por isso não consegue conscientizar.

Negar a existência dos nossos impulsos é negar aquilo que faz de nós seres humanos. Esconder essa nossa “parte feia” de nós mesmos também é causa de infelicidade, pois ela vai sempre achar uma maneira, velada ou não de se manifestar, nos causando mais sofrimento. Quanto mais a rejeitarmos e empurrarmos ao subconsciente mais energia (Prana) ela irá congelar e mais forte ela ficará, mostrando-se esporadicamente, mas cada vez mais violenta e abruptamente. Essa parte escondida que se manifesta de forma velada e incontrolada, tramando contra nossos planos de crescimento pessoal e se escondendo atrás de “uma pele de cordeiro”, é a nossa Sombra  agindo por trás de nossas Máscaras. Enquanto esta é a aparente e visível parte da persona, aquilo que achamos que somos, aquela é uma parte nossa reprimida, que desconhecemos e que se manifesta normalmente na forma de sonhos. Carl Gustav Jung (1.875-1.961), incluía na Sombra tudo o que não fosse manifestado e que, desprezado, habitasse nas profundezas do inconsciente.

Nossa parte mortal também tem as suas vontades que somente serão mudadas através da “conversa” consciente da nossa Vontade mais interna com essas vontades (mental inferior, emocional e física), mostrando, intelectualmente, seus equívocos. Essas vontades foram nomeadas por Freud como Pulsões. As categorias fundamentais das Pulsões são: Pulsão de Vida e Pulsão de Morte. Segundo ele, não somos livres pois estamos sob o julgo de nossas Pulsões. Elas são forças manipuladas pelo nosso Id e experimentadas pela consciência como uma incessante pressão interna à satisfação de necessidades. A necessidade do sexo e da autoconservação (Pulsão de Vida) e os desejos de morte e de aniquilamento (Pulsão de Morte).

Viver, comumente, significa dar conta dessas pressões, satisfazendo-as ou sublimando-as. Assim, seguimos na vida enxergando apenas o que queremos enxergar e usando a dissimulação para esconder nossos reais interesses. Nisso se baseia a nossa sociedade atual e quase todos os nossos relacionamentos sociais, afetivos e amorosos. Para se chegar ao ponto mais luminoso dentro de si mesmo, o homem tem de enfrentar a sua Sombra. No desconhecimento dela surge a Projeção.

Somos tudo aquilo de que temos medo. Toda afetação e indignação escondem o que temos na nossa Sombra, que por vezes se manifesta nos momentos críticos nos quais “perdemos a cabeça”. A mais trágica conseqüência de não conhecermos a nossa Sombra se dá quando, em fases muito estressantes de nossa vida, ela passa a se manifestar cada vez freqüentemente, até nos tornarmos “possuídos” por ela, meros marionetes guiados por esse nosso lado escuro. O conhecimento do que se oculta em nosso lado Sombra traz a verdadeira humildade e a verdadeira compaixão, pois passamos a ver no outro, conscientemente, tudo o que somos e que ocultávamos de nós mesmos.

 

“Um segredo para o progresso é a auto-análise. A introspecção é um espelho no qual se vê o recôndito da mente que, de outra forma, permaneceria oculto. Faça um diagnóstico de suas falhas e separe as boas tendências das más. Analise o que você é, o que deseja tornar-se e as fraquezas que estão impedindo [seu progresso]” 103:97.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952)

 

Assim vemos a complementaridade quântica agindo novamente nos conceitos milenares acerca dos opostos. Vimos no volume 1, que a filosofia egípcia, o Yoga, o Budismo e o Cristianismo, por exemplo, recomendam a busca do oposto como meio de se livrar do mal, enquanto o Taoísmo, o Tantra hindu e o Tantra budista (escola Vajrayana), por exemplo, recomendam que se veja em minúcias tudo o que queiramos combater, ampliando-o e observando-o. Somente assim o mal sumiria. O primeiro conceito vale para o corpo físico e o corpo mental (Manas), e o segundo conceito vale para o corpo emocional e o nosso Ego.

Por que o Ego também? Ele tem que ser reforçado? O nosso Ego tem qualidades imprescindíveis para que possamos entrar em contato com nossas feridas emocionais da infância, com os nossos mecanismos de defesa (Máscaras) e com sentimentos reprimidos e escondidos no subconsciente (nossa Sombra). O nosso Ego é a parte nossa que pensa, discrimina, decide e age no mundo externo. Necessitamos ter um Ego forte, com coragem e força de vontade suficiente, para enfrentar a dura batalha que se tem pela frente. A doutrina do Caminho do Meio é imprescindível aqui: devemos fugir do Ego fraco, incapaz de ter autodomínio e encarar a própria vida e, ao mesmo tempo, devemos evitar o Ego demasiadamente forte que esconde a meta última (o “Eu superior”).

O Pathwork, divulgado por Eva Broch Pierrakos (1.915-1.979), trabalha a mudança do nosso corpo emocional (Kama) com o descongelamento dos nossos sentimentos aprisionados em Imagens. Da mesma forma, as viagens xamânicas buscam aquelas conclusões infantis errôneas (Imagens) registradas no subconsciente, trazendo-as ao consciente como um “pedaço de alma resgatado” que foi perdido devido a um trauma de infância. A energia vital (Prana) desbloqueada, e reincorporada ao “eu inferior”, é simbolizada pelo (ou fica contida no) cristal  que a pessoa recebe e passa a usar após o “resgate de alma” (Cf. no Volume 1 em “OS MILAGRES E A MAGIA”). Podemos escolher, temos o divino livre-arbítrio:

 

“Para mudar a vossa disposição ou vosso estado mental, mudai a vossa vibração. Para destruir uma desagradável ordem de vibração mental, ponde em movimento o Princípio de Polaridade e concentrai-vos sobre o pólo oposto ao que desejais suprimir. Destruí o desagradável mudando a sua polaridade”  13:123.

O Caibalion

 

“Quando surgirem pensamentos indesejáveis, estes podem vencer-se convivendo com os seus opostos, Os pensamentos indesejáveis, assim como os de agressão… são frutos da ignorância e sempre acabam em sofrimento infinito”  50:143.

Yoga Sutra II: 29,30

 

“Para contrair uma coisa, devemos, certamente, primeiro expandi-la. Para enfraquecê-la, devemos, certamente, primeiro fortalecê-la. Para derrotá-la, devemos, certamente, primeiro exaltá-la. … Essa é a chamada sabedoria sutil… Fiquem curvos e permanecerão retos. Fiquem vazios e permanecerão cheios. Fiquem gastos e permanecerão renovados”  51.

Tao Te Ching XXXVI

 

Para se atingir o nosso “Eu superior” todos os nossos princípios inferiores têm de estar harmonizados e para isso se faz necessário primeiro tomar consciência de suas freqüências, daquilo que o nosso corpo está “falando”, daquilo que a nossa mente consciente está “pensando” e daqueles nossos reais sentimentos. Esses sentimentos, na maioria das vezes, estão habitando na nossa Sombra, componente mental dos nossos sentimentos (Kama-Manas), e dessa forma estão escondidos do nosso consciente. Deve-se então buscar conscientizar o que o nosso subconsciente está “tramando”.

O alinhamento se dará automaticamente, e paulatinamente, quando virmos, conscientemente, que o nosso “eu inferior” está preso a falsos desejos. Ele está doente, pois se esqueceu de que o verdadeiro e primordial desejo era de se unir ao divino, e, assim esquecido, procura substituir esse desejo por outros alvos, ditos ilusórios. Daí advém o sofrimento, pelo distanciamento do “Eu superior” e de sua meta.

 

“As dificuldades não podem ser maiores que sua capacidade de vencê-las”  91:87.

Sri Sri A’nandamu’rti (1.921-1.990)

 

Dessa forma, conscientemente harmonizados, estaríamos em condições de penetrar e conhecer a nossa mente superconsciente, o nosso elo com o divino existente dentro de nós mesmos. Jung (1.875-1.961) chamava de processo de “individuação” a essa aproximação do consciente com o inconsciente, que faria do ser uma “totalidade”, autônoma e indivisível 19:76.

Analisar-se, reconhecer os próprios erros trazendo-os à consciência junto com as razões que os motivaram, é a forma de psicanálise sutil embutida no sacramento de Penitência da Igreja Católica (Cf. no Volume 1). Da mesma forma, a psicoterapia seria uma forma de reforçar a conscientização plena do ser, ajudando no processo de “individuação”. A verdadeira função dos terapeutas é ajudar o paciente a se conectar com o seu Espírito, observar os seus corpos e se conscientizar de seus atos, emoções e pensamentos. Fazer com que o nosso daemon (sábio), ou “Eu superior”, se aproxime, ao mesmo tempo em que nos aproximamos dele. Dessa forma, modificando nossa persona modifica-se o “Eu”. Para Jung todos os efeitos seriam recíprocos e nenhum elemento agiria sobre outro sem que ele próprio fosse modificado 19:63.

 

“Vencer-se a si mesmo é a maior vitória”  17:66.

Sidarta Gautama, O BUDA (563-483 a.C.)

 

 “O maior de todos os inimigos do homem é ele próprio”  100:67.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952)

 

“O valor do homem é determinado, em primeira linha, pelo grau e pelo sentido em que ele se libertou do seu Ego”  18:82.

Albert Einstein (1.879-1.955)

 

“Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo?” (IC I, 3:3). “Só com renhido e longo combate interior aprende o homem a dominar-se plenamente e pôr em Deus todo o seu afeto” (IC II, 9:3). Para o Bushido a verdadeira batalha é a batalha consigo mesmo (Cf. no Volume 1). Para o samurai, o medo pode existir, mas a coragem deve ser mais forte, para que o sofrimento sentido seja transmutado em ensinamentos para a vida. Não é uma coragem comum, mas uma mescla de destemor, bondade e inteligência:

 

“O coração do Aikido é: verdadeira vitória é vitória sobre si, dia de instantânea vitória! Verdadeira vitória significa infinita coragem, vitória sobre si simboliza incansáveis esforços e dia de instantânea vitória representa o glorioso momento do triunfo no aqui e no agora. … A verdadeira vitória … é atingir e eliminar o espírito da dúvida e do conflito que existe dentro de você 39:15. [Só assim] … você estará hábil a integrar os fatores interno e externo da prática, limpe seu caminho de obstáculos e purifique seus sentidos”.

Morihei Ueshiba (1.883-1.969)

Fundador do Aikido

 

“Tanto mais aproveita o homem, e mais copiosa graça merece, quanto mais se vence a si mesmo…” (IC I, 25:3). É uma dura batalha, com várias guerras. É dificílimo reconhecer que aquilo que achávamos que éramos, desde a nossa infância, não o somos em realidade. Toda a nossa personalidade é uma falsidade, construída por nós mesmos para podermos sobreviver e conviver com nossos semelhantes, nesse nosso mundo material. Debaixo dessa fachada está “um monte de tralha”, a nossa cruz, guardada por nós mesmos, que nos afasta daquilo que realmente somos. Como conseguir renunciar a nós mesmos (Mt 16:24), renunciar àquilo que passamos a nossa vida inteira a acreditar? Que nos sobrará, então, depois?

Coragem suprema e confiança absoluta em Deus nos faltam. Não saber o que fazer é fruto do que o hindu chama de “ignorância”. Romper com a ignorância é relativamente fácil quando se busca o autoconhecimento, mas o grande desafio é romper com os condicionamentos, hábitos e apegos, para que se consiga a harmonia interna. Aqui o poder da vontade da persona é que fará a diferença. É esse poder da vontade do Ego consciente quem decidirá se seremos vencedores na batalha entre o “eu inferior” e o “Eu superior”. “Ao vencedor darei de comer do fruto da árvore da vida, que se acha no paraíso de Deus” (Ap 2:7).

Para o zoroastrismo, esse poder da vontade humana é representado pelo fogo. Boas palavras, boas ações e bons pensamentos abririam caminho para que o bem vença definitivamente o mal. Orfeu dizia ser duro e escarpado o caminho que levava até Deus e que Ele só podia ser visto com os olhos do espírito, que precisavam ser abertos às custas de grande trabalho e de grandes dores (Cf. no Volume 1).

Entra, o buscador, na terceira morada citada por Santa Teresa d’Ávila (1.515-1.582), onde as primeiras dificuldades são vencidas e ele vive muitos anos no caminho da virtude, mantendo sempre a retidão do corpo e da alma, sendo correto na administração da casa, correto no falar e até no vestir 92:56. Emprega bem a sua vida e as suas posses, mas tem consciência de viver, ainda, em mundo finito. Sente que sua busca ainda não chegou ao fim e se inquieta vendo os anos se passarem nessa “normalidade”.

Mas essa “normalidade” de nosso ser é apenas aparente, fruto de uma repressão inconsciente, e muito mais sutil, de nossos desejos, que se depositam energeticamente num recôndito mais profundo de nossa Sombra. É nesse estágio de nosso autoconhecimento que sincronicidades ressurgem, de forma a arrancá-los de lá. Surge um prejuízo material, ou uma ocasião de aumentar a fortuna (sem precisarmos disso para sobreviver). Pode surgir até um detrimento da honra. Nessa hora a Sombra vem à consciência na forma sutil de uma inquietação na mente ou de uma angústia no coração. Construímos uma outra Máscara de santidade, “canonizando” o modo de proceder e queremos que os outros também assim procedam.

O verdadeiro buscador deve identificar esses momentos e verificar se são, ou não, senhores de suas paixões. Deve reconhecer sua pequenez (ter humildade) e que ainda não conhece a si mesmo totalmente, pois com os veículos inferiores ainda por equilibrar, exigindo serem satisfeitos, o “Eu superior” ainda sente os seus apelos.

Ter humildade é aceitar as próprias limitações e não se espantar com a própria imperfeição. O orgulhoso não olha para suas faltas nem se perdoa o menor defeito, por isso oculta de si mesmo o que não pode suportar para não se envergonhar de si próprio. O humilde tira proveito de suas próprias faltas, pois aceita a própria fragilidade e imperfeição.

 

“É bom cair se, pela repreensão de um homem justo, o que cai se levanta, deixando cair ao solo seu pecado…”  60:104.

São Bernardo de Claraval (1.090-1.153)

monge cisterciense

 

De grande valia é ter como companhia e aconselhamento pessoas que já ultrapassaram esses estágios, que podem ser filósofos, terapeutas, psicólogos, monges, sacerdotes, rabinos, líderes espirituais, ou até as obras inspiradoras de grandes santos. É de enorme valor para o nosso autoconhecimento. Mas não há razão para que queiramos seguir o caminho de outros nem razão para que todos sigam o nosso caminho, porque ele é individual. Não devemos desviar o olhar de nosso interior para o interior dos outros. Esqueçamos as faltas alheias e nos concentremos nas nossas, procurando viver no silêncio interior e exterior.

Esse “eu inferior”, na medida que se torna consciente de seus impulsos, não mais os nega, não mais os impulsiona ao subconsciente, para se acumularem e atuarem inconscientemente, influenciando e até dominando a consciência. Dessa forma, o “eu inferior” começa a se conhecer e, conscientemente, decidir o que realmente deve fazer. Ele toma controle de si próprio, conscientemente, cedendo às ações do “Eu”, o qual segue trabalhando e transmutando as tendências negativas do “eu” em características positivas: “Bem aventurada a alma que ouve em si a voz do Senhor e recebe de seus lábios palavras de consolação” (IC III, 1:1).

Esse processo é, para muitos, altamente doloroso e outros o consideram impossível de ser realizado. Mas devemos, com humildade, prosseguir na caminhada, identificando cada aspecto negativo nosso, pois só podemos combater aquilo que estamos conscientes da existência. Esse combate não é repressão, mas trazer à luz da consciência os aspectos negativos, usando o intelecto para descobrir seus mecanismos e ver se há sentido ou não nele. Aqui entrará a nossa escolha, pois uma vez identificado quando surge um aspecto negativo, ele não mais atuará automaticamente, mas sim, será barrado pela nossa consciência antes de entrar em ação, e ela decidirá se ele deve se manifestar ou não.

Essa capacidade de alcançar as profundezas de nosso ser é uma graça espiritual conhecida pelo ascetismo cristão medieval como “compunção”: “o reconhecimento clarividente e a aceitação madura de nossas próprias limitações… [que] penetra através das ilusões que temos sobre nós mesmos, põe de lado e varre as dissimulações e sonhos vãos que alimentamos a respeito de nossa pessoa, de maneira a nos vermos tais quais somos” 60:108 (Thomas Merton – monge beneditino).

A própria controvérsia sobre a existência da reencarnação envolve muitos aspectos dessa busca. Para muitos, a doutrina da reencarnação dá ao homem um tempo muito amplo para se decidir a procurar por Deus, embora muitos outros não utilizem a sua atual e “única” vida para essa busca. Entregam-se aos prazeres ilusórios dos sentidos, esquecendo-se dos prazeres reais do espírito. “Agora é o tempo favorável, agora é o dia da salvação” (II Cor 6:2). Se não cuidarmos de nós mesmos agora, no preciosíssimo tempo presente, quem cuidará de nós amanhã? No momento presente se encontra a nossa felicidade e podemos nos sintonizar nele a qualquer momento, se assim desejarmos, até no momento de nossa morte! Esse conceito é visto com muitos detalhes no budismo tibetano Vajrayana que busca a iluminação nessa vida, nem que seja no momento da morte. O Bhagavad Gita (2:72) diz o mesmo. A própria Igreja Católica visa a isso no Sacramento da unção dos enfermos dada na proximidade da morte, a Extrema Unção, e o evangelho demonstra esse princípio quando Cristo diz que um dos malfeitores, crucificado a seu lado, ainda hoje estaria com ele no paraíso (Lc 23:43).

A cada sucesso nosso advém uma recompensa pessoal. Só o fato de se reconhecer um pensamento equivocado, perceber a sua inconsistência e assim assistir à sua pulverização, antes que ele provoque qualquer alteração emocional ou física, traz um contentamento incomparavelmente superior do que os advindos das distrações e prazeres da vida. Além do mais, quando se cede e se experimenta novamente algum prazer advindo de um pensamento equivocado, não se consegue mais se ver livre da dor do remorso que sempre se faz acompanhar.

Esses e outros consolos e contentamentos são o incentivo para que aceleremos o passo, pois sempre vêm acompanhados de amor e fortaleza que nos fazem crescer em virtude. Mas nunca devemos nos esquecer de prosseguir com humildade, pois ainda estamos muito longe do final, de atingirmos o Infinito. Sempre que houver despeito ante as condições adversas haverá também, interiormente, alguma falta de humildade. Mas aqui cabe uma advertência contida em todas as tradições religiosas: “Perderam-se alguns imprudentes… porque quiseram fazer mais do que podiam, não ponderando a fraqueza das suas forças e seguindo mais o impulso do coração que os ditames da razão” (IC III, 7:2). É como se fôssemos um corpo que suportasse apenas 1 Ampère de carga e buscássemos avidamente a Suprema Energia de milhões e milhões de Ampères. Se esse empreendimento for realizado de uma forma precipitada e sem orientação, “no melhor dos casos haverá considerável perda de tempo e, no pior, a consciência se desintegrará numa psicose” 22.57.

Só Deus dá a completa graça Dele mesmo, quando, quanto e a quem Ele quiser dar: “A uns, porém falo coisas comuns, a outros, mais particulares; a alguns revelo-me docemente em sinais e figuras, a outros descubro os meus mistérios com muita luz. A mesma voz fala em todos os livros, mas não ensina a todos da mesma maneira; pois sou Eu o que interiormente ensina a Verdade… distribuindo a cada um segundo Me apraz” (IC III, 43:4).

A verdadeira essência humana, sempre em contato com o divino, está em constante estado de harmonia, serenidade e alegria, conhecido como bem-aventurança. Quando a nossa persona decidir, então, trilhar esse caminho de autoconhecimento e autotransformação, ela começará, realmente, a buscar a sua bem-aventurança. Ela entrará na “Senda da Santidade” (Cf. em “A SENDA INICIÁTICA” no Volume 3).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *