O Portão do Eterno Presente

 

O Que Buscamos Está Diante de Nós

 

 “Na verdade, não há nenhum ensinamento real para você ficar remoendo. Mas, como você não acredita em si mesmo, você pega a sua bagagem e sai de casa em casa procurando o Zen, procurando o Tão, procurando mistérios, procurando o despertar, procurando Budas, procurando mestres, procurando professores. Você acha que essa é a busca suprema e faz disso sua religião. Mas isso é como correr às cegas. Quanto mais corre, mais longe você vai parar. Você só se cansa e, no fim, de que adianta?”

Mestre Zen Foyan

 

Às vezes conhecemos sábios que nunca foram a um lugar em especial, nunca tiveram uma prática espiritual sistemática, nem experiências místicas. É a generosa funcionaria da creche, o sábio que trabalha na biblioteca, a avó boazinha que todos adoram. Tais pessoas emanam sabedoria, proximidade, bondade e liberdade de coração. Elas não têm medo de abrir mão das coisas, de amar e de viver.


Quando falamos de caminho espiritual, a existência de tais pessoas coloca um questão: e as que praticam anos e anos, aprofundam sua sabedoria mas nunca têm uma experiência extraordinária de graça, satori ou despertar? Isso também é muito comum. Por quê?

Assim como é perigoso para uma cultura ignorar o processo de iniciação, podemos glamurizar essas historias e superestimar a sua importância, achando que soa uma necessidade na vida espiritual. Mas, estabelecendo como meta uma determinada experiência, corremos o risco de passar anos e anos buscando fora de nós uma coisa que sempre esteve dentro de nós. Ou de começar a duvidar de nós mesmos e das nossas experiências, insatisfeitos com o coração e a vida espiritual que temos.

Quando voltei para meu professor Ajahn Chah depois de um longo período de treinamentos intensivos nos mosteiros, eu lhe falei das minhas descobertas e experiências. Ele me ouviu com atenção e depois falou: “Agora você tem que abrir mão disso também, não é?”

Não podemos esquecer que o lugar para onde estamos indo é aqui, que qualquer prática é apenas uma forma de abrir o coração para o que está bem diante de nós. Onde estamos agora é o caminho e a meta.

… Quando lhe perguntaram sobre o caminho da prática, o Buda explicou que há quatro maneiras de vida espiritual se desenvolver. A Primeira é rapidamente e com prazer. Nesse caminho, o desabrochar vem naturalmente, como num parto difícil, acompanhado de alegria e arrebatamento. A Segunda é maneira rápida mas dolorosa. É nesse caminho que estão as experiências de quase-morte, os acidentes ou perdas insuportáveis. Ele atravessa um portão flamejante para nos ensinar a deixar tudo seguir seu curso. A Terceira forma de avanço espiritual é gradual e acompanhada de prazer. Nesse caso, o desabrochar ocorre aos longo dos anos, em geral com facilidade e prazer. O quarto caminho, o mais comum, é também lento e gradual, mas nele predomina o sofrimento. A dificuldade e a luta são um tema recorrente e é através delas que aos poucos aprendemos a despertar..

Nessa questão não temos escolha. Nós nos desenvolvemos de acordo com os padrões da nossa vida, chamados às vezes de “destino” ou “Karma”. Seja qual for a velocidade aparente, temos que nos entregar ao processo. Na verdade, não dá para medir o progresso. É como estar no meio do oceano num barquinho a remo. Remamos, mas há também uma corrente maior: podemos seguir sempre para o leste, mas sem saber que distância percorremos. É só no começo que surge a questão de distância e do tempo. Pouco importa a distância que achamos que percorremos.

É a disposição a nos abrir agora, radicalmente e repetidamente, que caracteriza essa jornada.

Seria mais exato acrescentar um Quinto caminho aos quatro caminhos de desenvolvimento espiritual descritos por Buda. É um caminho sem esforço, sem velocidade, sem jornada. Em vez de passar pelo portão, onde a idéia de jornada e esforço é uma ilusão. O lugar onde estamos indo é aqui.

Para melhor compreender esse caminho, é preciso perceber que há duas maneiras complementares de chegar ao despertar e à iluminação. Uma é o caminho do esforço; a outra, o caminho do não esforço. No caminho do esforço nós nos purificamos, lutamos para eliminar o que nos impede de estar presentes, ficamos tão concentrados no despertar e na iluminação que o resto desaparece. Finalmente, somos forçados a deixar para lá esse resto de sofreguidão, o desejo de atingir a iluminação. Nesse ultimo ato de desapego, tudo fica mais claro. Mas o caminho do não-esforço, não há luta. Nós nos abrimos à realidade do presente. A única exigência é manter o senso de naturalidade. É daí que vem a compreensão e a compaixão.

Na verdade, esses dois caminhos fazem parte da jornada de todos nós. Ambos nos levam ao desapego… o esforço com sabedoria é importante. Mas, por mais árduo que seja o caminho, por maior que seja o esforço, o despertar do coração acaba sendo um ato de graça, um vento de primavera que varre as preocupações e os medos e refresca o coração.

Meditar, rezar e ouvir é como abrir as portas e as janelas. Não dá para planejar a brisa. Como disse Suzuki Roshi: “Não dá para marcar um encontro com a iluminação”. Há uma frase que diz mais ou menos a mesma coisa: “Atingir a iluminação é um acidente. A prática espiritual só nos torna propensos a ele”.

Um mestre sufi conta que seu desabrochar foi um processo continuo e não numa única experiência de transformação:

“Eu me lembro, é claro, de varias descobertas e revelações, mas no geral minha vida espiritual tem sido um processo de anos e anos de abertura de consciência. Esse processo tem que ser respeitado e favorecido. Ele se intensifica quando dou atenção ao que está acontecendo dentro de mim, ao que está querendo se abrir. E a cada nova capacidade que percebo em mim, descubro também o que está impedindo que eu me abra. Percebo, por exemplo, que minha compaixão aumentou, mas percebo também que tenho dúvidas e resistências que me impedem de viver em compaixão. Identificar essas coisas é o passo seguinte ao processo de abertura.

Conhecemos a verdade, mas temos que superar o apego e as crenças que nos limitam. É preciso estar atento para que o processo de abertura não pare. Mas atingimos um ponto em que ele avança por si mesmo. Não há como voltar quando sabemos o que é repousar no Verdadeiro Ser, o que é confiar, embora às vezes a resistência volte. Sabendo que é isso que somos, a compreensão não desaparece.”

Em vez de buscar a iluminação como se ela fosse um estado distante, aprendemos a reconhecer que ela está, como o Zen nos ensina, “mais perto do que perto”. Na passagem sem portão, esse despertar natural é um direito de nascença.

“Em si mesma a mente é eterna, naturalmente em paz, imóvel. Repouse nesse estado natural. Inconstantes, as impressões sensoriais fazem com que a mente se esqueça de si mesma, fique iludida e confusa. Pois sua prática é enxergar esse processo e voltar à mente original”.

Ajhan Chah observa que, através da reflexão cuidadosa e da meditação aplicada, podemos enxergar essa realidade sempre que ficamos em silencio. Todas as experiências são sem eu, sem existência independente. Elas surgem e passam como o vento, de acordo com certas condições. Ele ensina que, nos momentos de silencio em que enxergamos essa verdade, saímos das condições que chamamos de “eu” e atingimos o saber eterno, incondicional. Assim, a prática é conhecer o mundo inconstante e não se perder nele.

Nesse ensinamento, a perspectiva da nossa experiência se inverte. A iluminação é o estado verdadeiro e a prática espiritual nos ajuda a desfazer a confusão e a viver na realidade do presente. Nós somos a meta.

Uma mestra de meditação budista fala que sua vida se transformou sem que houvesse um acontecimento notável ou satori: só um fluxo sem fim do próprio despertar.

“Cá estou eu, professora de centenas e centenas de alunos, inclusive de alguns que tiveram importantes experiências de abertura na meditação. Mas não foi esse meu caminho, por muito tempo, foi duro para mim aceitar que “nada acontecia”. Não sou uma pessoa de grandes expediências dramáticas. Há trinta anos eu me limito a praticar, sem sucumbir às minhas próprio idéias de desânimo ou sucesso. Às vezes, faço meses de treinamento intensivo, mas sem nenhuma  experiência espetacular. Nos dez primeiros anos foi difícil, mas pelo menos nunca caí no engodo de achar que era uma pessoa especial.

No entanto, alguma coisa mudou. O que mais me transformou foram as infindáveis horas de atenção total ao que estava fazendo. Eu percebi que jamais abandonaria os fardos interiores de uma só vez, mas muitas e muitas vezes. Aos poucos, fui largando o fardo dos julgamentos, do medo, da desconfiança em relação a mim mesma, da rigidez do corpo e da mente. Descobri que a rigidez e a avidez despontam automaticamente e, com essa descoberta, comecei a me abandonar, a me abrir, a apreciar a vida, a ter sossego. Os ensinamentos tradicionais começaram a fazer sentido: não há ir nem vir; desde os primórdios do ser, nada aconteceu nem vai acontecer. Essa descoberta foi uma confirmação do que eu já sabia. Fique menos séria, menos preocupada comigo mesma. Minha bondade ficou mais profunda e alguns amigos dizem que eu fui ficando cada vez mais igual a mim mesma. Dizem que houve uma grande mudança em mim, mas nenhum acontecimento especial a causou. Ele é o fruto das vezes sem conta que estive presente. É simples assim.”

É fácil cair no engodo de que existe uma meta, um estado, um lugar especial a ser atingido na vida espiritual. Às vezes, ouvindo relatos de experiências extraordinárias, criamos um idéia de como deveria ser a nossa vida, começamos a nos comparar com os outros.

… Quando transpomos a passagem sem portão, chegamos ao fim da busca. Já percorremos muitos caminhos na tentativa de atingir a iluminação ou de ser alguma coisa especial. Finalmente, entramos no portão do eterno presente e descobrimos que não estamos indo a lugar algum. Aqui é o lugar, o único lugar de perfeita paciência, paz, liberdade e compaixão…

Uma mística cristã, com uma vida espiritual ativa há trinta anos, conta a sua historia:

” Sempre fui inspirada por místicos como Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Quando passei uma temporada num convento, depois do fracasso de um relacionamento e de problemas de família, li seus escritos vezes sem fim. Eu tinha uma idéia romântica de que estava atravessando a noite sem fim. Só que ela não teve um fim, não houve uma grande experiência, não houve uma iluminação mística no final. Quando saí do convento e me tornei assistente social, mantive a prática de orações e contemplação, mas minha viada continuou comum e escura por muitos anos. Agora percebo que eu estava deprimida e solitária – nada de muito místico.

Então, há dez anos, fiz um retiro com o Padre Bede Griffiths, um velho monge católico que tem um ashram na Índia. Ele usava roupas de cor laranja, tinha os cabelos brancos e uma profunda alegria irradiava do seu ser como narcisos brilhando depois de um longo inverno. Conversamos e ele me disse que eu havia criado uma historia, uma imagem ideal da jornada espiritual. Então ele segurou meu rosto nas mãos e, com muito amor, disse: “Por que não sero seu eu que é único? É só isso que Deus quer de você”. E eu chorei e dancei e ri de tudo o que eu sempre tentei ser. Minha vida de oração e contemplação continuou como sempre, mas eu não estou deprimida e passei a gostar da minha vida. Não tive nenhuma grande experiência, mas quando comecei a gostar de mim, tudo mudou.”

A perfeição sagrada que buscamos está aqui. Esteve sempre. Julian da Noruega situa essa perfeição no centro de suas orações. “E tudo vai dar certo, o curso das coisas está certo.” Reconhecer a perfeição das “coisas como elas são” é uma abertura radical do coração, uma reverencia à sagrada plenitude que é base de tudo. Essa perfeição está sempre conosco e podemos despertar para ela em qualquer situação.

Cabe perguntar: “Por que nunca tive uma amostra da iluminação ou da perfeição? A verdade é que isso deve ter acontecido, só que nós não percebemos. É como o ar invisível que nos envolve e sustenta a vida.

Ajahn Buddhadasa, cujo mosteiro ficava numa floresta da Malásia, chamou os alunos para o frescor das arvores. Então, ensinou-os a procurar o Nirvana nas coisas mais simples, em momentos do cotidiano. Disse ele: “O Nirvana é o frescor do abandono, o prazer de experimentar sem sofreguidão nem resistência à vida.”

Conhecemos o abandono – nós nos abandonamos todas as noites quando vamos dormir. Esse abandono, como uma boa noite de sono, é delicioso. Abrindo-nos assim, conseguimos viver na realidade de nossa plenitude. Quem se abandona um pouco tem um pouco de paz, quem se abandona mas tem uma paz maior. Ao transpor a passagem sem portão, começamos a valorizar os momentos de plenitude. Começamos a confiar no ritmo natural do mundo assim como confiamos no sono e na maneira da respiração se respirar.

“Eu é que preciso me amar. Ninguém pode fazer com que eu me sinta pleno. Só eu posso dar esse amor. Agora eu sei que a plenitude está no meu alcance e ao alcance de todos os seres em toda parte. Esse saber me permite viver com uma nova tranqüilidade e bondade em relação a mim mesmo e aos outros…”

A prática espiritual não nos dá conhecimento, mas afeta a nossa maneira de amar. Amamos o que nos é dado, amamos em meio a tudo, amamos nós mesmos e os outros? Enxergamos a luz que o sol nos dá todo os dias? Se não, o que fazer – no corpo, no coração e na mente – para nos abrir, para não abandonar, para repousar na perfeição natural? O portão está aberto: o que buscamos está diante de nós. É assim hoje e todos os dias.

O professor de meditação Larry Rosenberg foi praticar na Coréia com o Mestre Zen Seung Sahn. Nessa viagem, foi visitar outros templos e outros mestres e, numa estrada remota, descobriu um santuário budista de elegância na base de uma montanha. Junto a ele havia uma placa – “Caminho para o mais Belo Buda de Toda a Coréia” – e uma seta apontando para um caminho de mil degraus montanha acima. Larry resolveu subir os degraus e, finalmente, chegou ao topo. A paisagem era de tirar o fôlego e havia um templo de pedra tão elegante quanto o da estrada. Só que o altar, no lugar do Buda, não havia nada, só o espaço vazio a maravilhosa paisagem. Quando chegou mais perto, viu uma placa sobre o altar: “Se você não consegue enxergar o Buda aqui, é melhor descer e praticar mais um pouco.”

 

Jack Kornfield

Texto extraído do Livro “Depois do Êxtase, lave a roupa suja”

Editora Cultrix

 

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