Conhecimento do Conhecimento (parte 4)

 

Conhecimento do Conhecimento (parte 1)
Conhecimento do Conhecimento (parte 2)
Conhecimento do Conhecimento (parte 3)

Considerações finais

Poderíamos ir bem mais longe, mostrando os pontos de contato entre a filosofia espinosana e o pensamento complexo e, em ambos os casos, a insistência na necessidade de mudar o modo de pensar (“corrigir o intelecto”) para compreender de outro modo a realidade.

A chamada idéia de progresso é um exemplo dessa necessidade. Entre vários outros autores, Jean-Pierre Vernant34 observa que essa idéia, tal como foi e ainda é entendida no Ocidente, nos convenceu de que virá um futuro que trará soluções para todos os nossos problemas e, mais ainda, acabará com os egoísmos nacionais e injustiças sociais. Sob esse ponto de vista, a idéia de progresso é uma impostura que pretende nos fazer crer na possibilidade de — no habitual estilo “ou/ou” — substituir homens só egoístas por outros só altruístas. O que nos pedem é, nada mais nada menos, que acreditemos na existência de seres humanos que são uma coisa ou outra: só justos ou só pecadores; só competitivos ou só cooperativos; só racionais ou só emocionais. O que nos pedem é que continuemos a nos auto-enganar com essa fantasia, para cuja criação e manutenção é indispensável a lógica binária. Ainda não aprendemos, com Espinosa e muitos outros, que o ser humano é por natureza passional e racional, sapiensdemens. e

A idéia de progresso (boa parte da qual é alimentada pelas mídias, pela sociologia, psicologia e ciência política convencionais) nos fez acreditar piamente que a ciência e a tecnologia são capazes de produzir seres humanos idealizados e unilateralizados. Vários modelos já foram propostos: o Homo sovieticus, o Homo economicus, o Homem da companhia e assim por diante. Volta e meia, um ou mais deles são declarados extintos e logo substituídos — sempre no tradicional estilo “ou/ou” — por outros, que só diferem dos anteriores em seus aspectos superficiais.

A origem da idéia de progresso remonta à Grécia antiga. Naquela época, porém, ela era diferente da atual. Para os gregos, como assinala Vernant, progresso significava sair da barbárie. Quanto a nós, em muitos casos tudo indica que estamos no caminho inverso. É o que mostram vários dos efeitos colaterais da tecnociência ou a ela ligados, dos quais convém lembrar alguns: a devastação do meio ambiente; o economicismo tecnocrático; o desemprego e a exclusão social; a fome no mundo; os autoritarismos disfarçados em democracia, cujos governantes são eleitos por populações alienadas e manipuladas pelo marketing eleitoral. E assim por diante. Nada disso, é claro, implica negar os benefícios da tecnociência. Meu objetivo é alertar para os desastres da utilização da lógica binária como pensamento único o que, entre outras coisas, a transformou num instrumento de auto-engano.

A prevalência dessa lógica nos levou a uma mentalidade predatória e a um comportamento sociopático, gerador de injustiças sociais e, no limite, incompatível com a preservação do mundo natural. Trata-se de um ideário (ou melhor, de uma ideologia) insustentável, apesar de toda a retórica que proclama o inverso. Como se sabe, as expressões “sustentabilidade”, “desenvolvimento sustentável” e suas variantes (“auto-sustentabilidade”, “crescimento sustentável” e assim por diante), de tanto serem usadas por indivíduos que desconhecem o seu significado — principalmente o seu significado político — transformaram-se em chavões, em meros slogans.

E não poderia deixar de ser assim, porque, como também é sabido, a grande maioria dos que usam essas expressões ignora que as idéias a que elas se referem são incompatíveis com a prevalência do pensamento linear-cartesiano como modelo de pensamento quase único em nossa cultura. Por outro lado, é preciso não esquecer que a retórica ecológica “alternativa”, também radical, apocalíptica e polarizadora, freqüentemente leva ao equívoco oposto.

Esses e outros unilateralismos têm levado pessoas de boa fé a cair na armadilha do “ou/ou”, e a imaginar, por exemplo, que é possível substituir tout court a competição pela cooperação. Isso equivale a retirar da sociedade todos os pecadores e substitui-los pelos justos; descartar todos os egoístas e deixar só os altruístas; eliminar os maus Samaritanos substitui-los por bons Samaritanos; afastar todos os “falcões” e pôr em seu lugar somente “pombas” —  remover uma ficção e substitui-la por outra, enfim. Ao cair nesse tipo de cilada, alguns dos bem intencionados propositores da cultura de paz, por exemplo, têm adotado o mesmo maniqueísmo cultivado pelos que apóiam a cultura da guerra. (Nos EUA, na época da Segunda Guerra Mundial, “pacifista” era e ainda hoje é, em certas áreas,  uma expressão pejorativa, que significava e significa algo entre covarde e traidor). Essa espécie de maniqueísmo já havia sido denunciada por Espinosa.

Posturas assim revelam o desconhecimento daquilo que realmente é preciso questionar: a distorção da idéia de conatus. Em nossa cultura, a idéia espinosana de que todos os seres do Universo tendem naturalmente para autoconservação e a continuar a existir foi substituída pela mentalidade de salve-se quem puder. O conatus nos impulsiona a um modo de existir que, na prática, significa viver orientados pelo diálogo razão-paixões; viver em competição (o que não implica necessariamente guerras e violência generalizada), mas também em colaboração (o que não implica necessariamente ingenuidades e utopismos); viver, enfim, como seres humanos reais, na condição de Homo sapiens demens, e não alienados e deslumbrados com unilateralismos e idealizações.

Mas existe a possibilidade de que nosso condicionamento pelo pensamento linear-cartesiano já tenha se tornado irreversível. Talvez ele já tenha se entranhado irremediavelmente em nossa natureza. Essa hipótese mais do que nunca exige que saiamos da passividade e adotemos uma atitude como a que Espinosa aconselha em relação ao determinismo da Natureza: a contradição entre a liberdade (no caso, livrar-nos do pensamento linear) e a necessidade (no caso, o fato de estarmos condicionados por ele) só pode ser resolvida pela razão, que nos levará à compreensão de que se trata de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares.

Se é necessário pensar linearmente, é também preciso saber quando essa postura é desnecessária e, em tais circunstâncias, evitar o exagero da unilateralização por meio de um modo de pensar abrangente — o pensamento sistêmico. Trata-se, por conseguinte, de combinar os modelos linear e sistêmico e utilizar cada um de acordo com as necessidades do viver. É exatamente o que propõe o pensamento complexo/integrador que, apesar disso, não cai nas ilusões do relativismo absoluto.

Precisamos, como aconselha Espinosa, conceber os seres humanos como realmente são, não como gostaríamos que fossem. Como ele mostrou em vários pontos de sua obra — embora, é claro, não com essa terminologia —, os opostos simultaneamente antagônicos e complementares são parte integrante da nossa natureza. O “homem prático” e o “homem poético” são antagônicos, mas inseparáveis: convivem dentro de nós, e determinar qual é o mais manifesto ou mais latente é uma questão de estruturas cognitivas, momentos, contextos e interações. Dentro e fora de nós, a convivência mais ou menos pacífica entre o prático e o poético é algo que ainda não aprendemos a aceitar e pôr em prática, pelo menos com a intensidade e amplitude necessárias. Ainda não temos competência suficiente para tanto, e o preço que pagamos por essa deficiência é alto demais.

Surge, por fim, a questão: por que Espinosa é tão difícil, já não digo de entender, mas principalmente de aceitar? Basicamente, pelo mesmo motivo pelo qual é difícil entender e aceitar o pensamento complexo: por causa do nosso condicionamento pelo modelo mental linear, segundo o qual a causa é imediatamente anterior ao efeito ou está muito próxima dele — a causalidade simples.

Esse condicionamento nos leva a atribuir uma autoria a tudo o que existe ou acontece. É o nosso ânimo “criacionista”, digamos assim. A compulsão de determinar quem fez o que, quem produziu o que — e separar o produtor do produto — nos induz a ver o mundo de um modo simplista e rudimentar: se o produtor for bem sucedido, será premiado; se fracassar ou errar, será punido. “Ou/ou”. Essa mentalidade de vitória/derrota, lucros/perdas, virtude/pecado permeia toda a nossa cultura, e os avaliadores desses méritos ou deméritos estão sempre fora do processo. São instâncias “transcendentes” (os deuses, os governos, o “mercado”), que vigiam, fiscalizam e julgam sem participar diretamente.

Convém acrescentar que a idéia de criação não existe no pensamento grego. O Deus de Aristóteles, por exemplo, não é criador. Já o Deus do cristianismo é criador e  separado de suas criaturas: ou o Criador ou as criaturas. Estas, por sua vez, também têm suas criações e, como vimos, podem ser punidas ou recompensadas por elas, sempre a critério da instância transcendente. Portanto, o poder reside no poder de julgar, e quem julga precisa estar “de fora”. Ou seja, é conveniente para o observador não fazer parte do processo que observa.

Mesmo que pudesse ser julgado por suas criações, o Deus do cristianismo não poderia ser punido nem recompensado, pois é onipotente. Guardadas as proporções devidas, esse raciocínio também vale para as instituições humanas poderosas, das quais algumas já foram citadas: os governos — em especial as ditaduras e as pseudodemocracias, o que é quase a mesma coisa — e o “mercado”.  É claro que uma estrutura de poder como essa só é possível mediante a hegemonia de uma lógica fragmentadora e polarizadora como o pensamento linear/binário.

Conhecer e julgar separando sempre os efeitos das causas equivale, em muitos casos, a acreditar que os fins justificam os meios,  pois o que interessa são os resultados, a bottom line. Porém, como mostra Espinosa, o produtor é responsável pelo produto sim — mas não na qualidade de alguém que “fabrica” algo alienado, separado dele. É responsável porque não se separa do produto, e por isso mantém com ele uma relação ampla e profunda de atenção, participação e cuidado. Esse é o sentido espinosano do que chamamos de responsabilidade. Nessa ordem de idéias, os fins (os resultados, os produtos) nem sempre justificam os meios. Costumamos legitimar algumas de nossas ações com o argumento de que “a causa é nobre”. No entanto, a nobreza de uma causa surge ao longo do processo, não no resultado — do mesmo modo que a verdade surge ao longo do processo do conhecimento, não em seu término: “O caminho se faz ao andar”.

Espinosa e o pensamento complexo são difíceis de entender porque propõem a compreensão da totalidade e suas relações com as partes. Para entendê-las, é preciso compreender que o produtor produz o produto, que por sua vez produz o produtor, isto é, que a Natureza é autoprodutora. Ela não produz o que é possível, mas o que é necessário à sua essência, e é assim que também se auto-regula. Não há supérfluos, acidentais ou possíveis: há o necessário.

Infelizmente, porém, estamos condicionados a desconhecer a circularidade e a proclamar nossa suposta condição de indivíduos “lógicos”, “racionais”, “realistas e “pragmáticos”. Entretanto, como resultado do unilateralismo dessa “lógica”, dessa “racionalidade” e desse “pragmatismo”, tornamo-nos cada vez mais incapazes de entender o que é diálogo, cidadania, cultura de paz, responsabilidade sócio-ambiental, economia solidária e, por último porém nunca menos importante, o que é democracia realmente participativa.

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© Mariotti, H., outubro, 2004

 

HUMBERTO MARIOTTI. Médico, psicoterapeuta e ensaísta. Coordenador do Grupo de Estudos Contemporâneos (Complexidade, Pensamento Sistêmico e Cultura) da Associação Palas Athena (São Paulo). Professor da Business School São Paulo (São Paulo).

 

E-mail: homariot@uol.com.br

Site: www.geocities.com/pluriversu

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