Jung Responde a Jó

 

 

Dilema Bíblico
Jung responde a Jó

A figura de Jó – personagem bíblico que sofre várias provas nas mãos de Deus – simboliza a frágil condição humana diante do poder divino. A história foi profundamente analisada pelo psiquiatra C. G. Jung no livro Resposta a Jó.

Por Paulo Urban
Paulo Urban é psiquiatra, psicoterapeuta junguiano e acupunturista. E-mail: paulourban@ig.com.br

Ilustração: Christiane S. Messias

Certo dia, havendo os anjos apresentado-se diante do Senhor, e dentre eles Satanás, dirigiu-lhe Javé a palavra, fazendo-o notar seu servo Jó, homem íntegro, afastado do mal e incapaz de blasfemar. “Porventura Jó teme debalde a Deus?”, indagou Satanás, considerando que, cercado de bens como vivia, seria mesmo de se esperar que o abastado Jó nunca protestasse. Bastaria que Javé lhe tirasse a família, o conforto, a saúde, e o fiel logo estaria cuspindo em Sua cara. “Pois bem, responde-lhe o Senhor, tudo o que ele tem está em teu poder; somente não estendas tua mão sobre ele próprio.” E Satanás dali se foi (Jo 1, 12), autorizado a desgraçar o pobre homem.

Escrito em prosa no séc. 6 a.C., esse é o prólogo do Livro de Jó do Antigo Testamento, de autor desconhecido, cujo estranho enredo vive a inquietar-nos.

O demônio arruina Jó completamente. Incita os sabeus e os caldeus a roubarem-lhe os bois e os camelos e a matarem seus escravos. Num incêndio, queima seu rebanho e seus pastores e, não satisfeito, o anjo maldito levanta um furacão no deserto, levando deste mundo os dez filhos de Jó. Este, resignado, não profere palavra contra Deus.

Satanás volta a ter com Javé, mantêm-se os mútuos desafios, e o Diabo obtém nova chancela divina para continuar atazanando Jó. Javé, dizendo-se seguro da integridade do representante de seu povo, negocia: “Pois bem, ele está em teu poder, poupa-lhe apenas sua vida” (Jo, 2, 6). E Satanás se exalta; faz arder em Jó, corpo inteiro, a lepra maligna. Mesmo assim, Jó não ofende seu Senhor. Mas, desta vez, senta-se para se coçar com um caco de telha, e solta impropérios, amaldiçoando o dia em que nasceu.

Nesse ponto o texto estende-se sob forma de hinos que confrontam a fala de Jó à de quatro amigos que vêm visitá-lo com intuito de ensinar-lhe a moral, criticá-lo, explicar-lhe o porquê de seus reveses. Elifaz de Teemã diz que só os ímpios são castigados, e Jó lhe responde que seu castigo é bem maior do que seus pecados. Baldad de Chua lembra que Javé é sempre justo, com o que concorda Jó, ressalvando que Ele não aflige só os maus. Sofar de Naama fala que Javé é o único sábio a ver toda injustiça, ao que Jó repete ser desproporcional o seu castigo. Sofar replica que a alegria dos ímpios é breve, mas Jó aponta a prosperidade de vários deles. Acusado de arrogância, apela para o testemunho de Deus. Eliú de Buz discursa exaustivamente, diz que só o sofrimento purifica o homem, até ser interrompido pela aparição do próprio Javé, saído de uma tempestade.

Javé defende Jó, proclama sua inocência diante de seus quatro amigos, e repreende-os. Também interroga Jó sobre os mistérios da Criação; abusa de ironias, e cobra do infeliz uma resposta. Pasmo, Jó diz que se arrepende em nome do pó ao qual retornará, pede perdão e se retrata. Javé, sentindo-se vitorioso sobre Satanás, restitui então a Jó, em dobro, todos os seus bens; dá-lhe ainda novos filhos e para compensá-lo(!?), o faz viver por mais 140 anos.

Mas que Deus é esse? Ao contrário dos deuses gregos, Javé não tem genealogia. Criador absoluto do universo, antes Dele, só havia o Nada. O Zeus grego, pai da 3a geração divina, ao contrário, tem família: é filho de Cronos e neto de Urano. Por sinal, Zeus nada quer da humanidade; vez por outra fecunda uma mortal, cobra lá seus sacrifícios, joga seus raios sobre este ou aquele que o afronte, mas vive distante dos homens, regendo o mundo por instintos, lá do Olimpo.

Javé, por sua vez, é afetivo. Ciumento, faz da humanidade uma de suas maiores preocupações; decide o que é melhor para o seu povo e, via de regra, assume um comportamento neurótico. Sela pelo arco-íris sua aliança com Noé, renova-a com Abrãao, com Moisés no Monte Sinai, depois com Davi. Vale-se ainda de severos castigos coletivos com os quais tenta corrigir seu povo eleito, que insiste em ser teimoso, haja vista o episódio do Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, e Sua inclinação para matar primogênitos, como lemos em Gênesis 22 e Êxodo 22, 29. Qualquer reflexão mais profunda nos prova: Javé não é o Summun Bonum, Ele tem também seu lado perigoso. O temente a Deus, treme de medo diante de sua austeridade!

Estranhamente, a figura de Jó expõe, de modo inequívoco, a frágil condição humana diante de uma inexplicável crueldade divina – complexo dilema sobre o qual se deteve o psiquiatra suíço Carl G. Jung, dedicando-lhe um profundo tratado, escrito aos 76 anos, intitulado Resposta a Jó.

Jó parece ter vivido entre o tempo de Esaú e Moisés. Sua história foi escrita cerca de 200 anos antes dos Provérbios, onde, pela primeira vez, surgiu a figura de Sofia, a Sabedoria de Javé. Ela é a natureza feminina de Deus, que até então não havia sido nem sequer mencionada. Javé criou o mundo sem reconhecê-la, mas é a própria Sofia quem nos diz ter estado por toda eternidade ao lado Dele: “O Senhor me criou desde o princípio (…) ainda não havia abismo quando fui concebida” (Pro 8, 22-24).

Sabedoria corresponde no cânon bíblico à deusa Isthar dos Babilônios, que, por sua vez, originou a Ísis egípcia, ambas capazes de se apresentar sob a forma de árvore, seja o cedro, o carvalho, a oliveira, etc. O Gênesis alude a esta face desconhecida de Deus, disfarçando-a na serpente arbórea que corrompe o casal edênico. Isso porque Sofia também pode ser representada pelo Logos, isto é, a razão, a luz de nossa consciência; afinal, a inteligência tem um caráter que a aproxima da Sabedoria. Nesse aspecto, podemos entender Satanás (do hebraico, satan: o que se opõe) como aquele que nos oferece o fruto interdito da consciência, que, uma vez experimentado, nos separa da natureza absoluta original (Deus e o Paraíso), transformando-nos em indivíduos, com a luz própria do arbítrio e do discernimento. Distante da idéia do mal, seu correspondente clássico é Prometeu, que rouba o fogo de Zeus para entregá-lo aos homens.

O demônio é aquele que nos entrega, então, cumprindo seu papel no jogo cósmico, a luz da inteligência. Desde o Gênesis, portanto, Satanás poderia ser chamado Lúcifer, cujo nome em latim significa Portador da Luz.

Jung mergulha sua alma nesse assunto para revelar-nos o seguinte: “Jó está diante de um Deus que não é perfeito nem forte. Javé tem pensamentos de dúvida, e fraqueja com o desafio proposto por Satanás. Por qual outra razão Deus aceitaria apostar sem escrúpulos, à custa de uma criatura desamparada? Está evidente: Satanás nada mais é do que mais um dos muitos aspectos de Javé, um de seus olhos que perambula pela Terra (Jo, 1, 7)”, explica-nos Jung. Do ponto de vista humano, o comportamento de Javé chega a ser revoltante; somos obrigados a perguntar se não há razão maior por trás de tudo. Mas o que o homem possui que Deus também não o tenha? Javé percebe que a luz infinitamente pequena de um só homem podia ser, não obstante, mais concentrada que a Dele próprio. E Deus não quer aqui passar por justo, apenas exerce seu poder absoluto, que ultrapassa todos os direitos, e explora de forma amoral as implicações do mal, procurando “conhecer-Se por inteiro”, algo que Jó não compreende, posto que considera seu Deus como alguém personalizado, bom, moral e justo. Para dificultar ainda mais nossa compreensão, note-se que, nesse episódio, Javé transgride pelo menos três de seus próprios Mandamentos, promulgados no Sinai.

Como criatura mítica, Jó espelha a Criação. Constitui apenas a ocasião para um confronto intradivino, diz Jung. Ao vislumbrar a onipotência de Javé, humildemente ele reconhece Sua antinomia interior, diante da qual não discute. Por fim, compreende que a unidade de Deus não se preocupa com julgamentos morais nem com uma ética que Lhe imponha obrigações, posto que a moralidade pressupõe consciência, e Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica transcendente, um fenômeno absolutamente portentoso, e não um homem, simplesmente. Jó, imediatamente, dá-se conta de estar diante de seu único advogado e protetor contra o próprio Deus, por isso não blasfema. Agindo assim, faz com que Satanás perca a aposta.

Não será, porém, o arrependimento divino, ao devolver em dobro a Jó tudo aquilo que perdera, que irá compensar essa situação. Muito menos sua atitude reticente em relação a Satanás, mas o desdobrar da descoberta de Javé, que viu suscitar em Si um estranho pressentimento a colocar em cheque toda a Sua onisciência. E Javé continuará tolerante com o demônio por todo o sempre, até a batalha final do Armagedon, quando deverá vencê-lo definitivamente, segundo roga o Apocalipse de João.

Jung levanta outros véus desse mistério: Javé trocara sua esposa primordial, Sofia, pelo pacto que fizera com o povo de Israel. Desde aquela época, seu povo era exclusivamente patriarcal, e as mulheres exerciam papel meramente secundário. Por essa razão, o casamento de Deus com Israel era assunto essencialmente masculino. A mulher, considerada imperfeita (esta idéia sobreviveu até recentemente no catolicismo), tendia à integralidade da natureza, ao passo que somente aos homens fora dado o poder de buscar a perfeição. Da mesma forma que a integralidade é imperfeita, a perfeição é sempre incompleta, razão pela qual Javé, perfeccionista, termina num beco sem saída, projetando sobre seu povo uma esperança de evolução tanto maior quanto mais Ele se esquece de Sofia. O próprio Jó anseia por uma sabedoria impossível de encontrar (Jo, 28, 12), por isso não compreende sua sina, apenas a aceita.

Jó é o ponto culminante de um arquétipo em evolução, pois ele viu o semblante de Javé, a partir do que Deus se renova “conhecido”, agindo e crescendo dentro dos homens. Resta agora à divindade completar a contraparte dessa experiência mística, quando então Javé decide encarnar-se em nosso meio. Entretanto, o segundo Adão não deverá nascer de Suas mesmas mãos, mas sim do ventre de uma mulher humana, uma segunda Eva, conforme podemos entender em Gênesis 3, 15 – aquela que, há muito esperada, ferirá e esmagará a cabeça da serpente. Por isso a Virgem Maria é escolhida como vaso puro para o nascimento futuro de Deus, avalia Jung; ela é portadora da imago Dei, encarna o arquétipo de nova esposa de Deus, parte sem a qual Ele não se completa; é Sofia do Novo Testamento, mediadora entre os homens e Javé, aquela que concebe de forma pura, a Imaculada Conceição.

A tradição hebraica não aceita a idéia de um filho de Deus; o Messias não poderá sê-lo senão simbolicamente. O nascimento virginal, uma regra mitológica universal, nem encontra vestígios nessa tradição. Tal idéia, a propósito, só ingressa no cristianismo por influência da cultura grega. Na verdade, dos Evangelhos, somente o de Lucas e o de Mateus se referem à virgindade de Maria. Lucas era grego, e o próprio Mateus teria traduzido para o grego o seu texto original hebraico.

Evoluindo o drama cósmico, Javé pretende criar pela segunda vez seu equivalente terreno; além de Sua mera imagem que fora o Adão primordial, deseja ora criar algo aperfeiçoado. Longe de continuar castigando seu povo, incomodado desde o drama de Jó, quer agora redimi-lo. Cristo deverá ser mortal (condição pela qual Javé experimentará o sofrimento), mas ao mesmo tempo divino, a ponto de fazer brotar a luz e o amor entre os homens, a facilitar-nos o caminho em direção ao Pai. Afinal, diz Jung, o mundo inteiro é de Deus, e Ele está presente no mundo inteiro, desde o início. Deus querer tornar-se homem significa uma mudança no universo todo!

Na época de Jó, continua o psiquiatra, Javé esteve embriagado pela grandeza de sua Criação; a partir daí não se ouve mais falar em alianças Dele com seu povo. Ganham destaque então as máximas sapienciais, os Salmos e os Provérbios, até surgirem as revelações apocalípticas, cujas imagens fantásticas bem representam nosso mundo inconsciente querendo nos dizer algo sublime. Em Ezequiel, pela primeira vez aparece o título “Filho do Homem” (Ez, 2, 1), com o qual Javé se dirige ao Profeta. Séculos mais tarde, cerca de 165 a.C., Daniel (Dn 7, 13) tem sua visão, na qual um ser semelhante ao “Filho do Homem” surge sobre as nuvens do céu. O psiquismo humano, expressando-se neste caso pelas Escrituras, começa a preparar-se inconscientemente ao longo dos séculos para receber Jesus, clamando pela notável convergência entre a natureza divina e toda a experiência humana.

Esse é o motivo pelo qual o nascimento de Cristo está acompanhado por manifestações que preenchem requisitos dos adventos dos heróis. Jesus é concebido por uma virgem, nasce em dia de solstício (assim como Mitra, deus Sol dos persas) e, astrologicamente, vem ao mundo durante a conjunção de Júpiter e Saturno no signo de Peixes, compreendida pelos três reis magos como sinal de realeza.

Nada de estranho em se aceitar que Jesus tenha nascido de uma virgem, nem estou aqui para discutir se Maria concebeu carnalmente ou não. Isso é meramente um dogma católico, como tantos outros dessa ou de outras religiões. O fato é que os heróis, deuses e semideuses nascem amiúde motivados por uma compaixão divina, e não pela sexualidade, que só serve mesmo para preservar nossa espécie e sustentar os dogmas da psicanálise, nada mais que outra espécie de “religião”. E sou eu quem falo aqui, não Jung. Observe-se que Buda, por exemplo, nasce do flanco de sua mãe, localizado sobre o chacra cardíaco. O mito não desautoriza que Buda tenha existido e revolucionado os homens à sua maneira, como fez Jesus.

Encarnando um Javé evoluído, não há uma só citação em que Jesus pare para se admirar consigo mesmo. Ao contrário, procura dar aos homens orientação para que o acompanhem humildemente até a Casa de seu Pai. Não parece confrontar-se intimamente de forma explícita senão no Horto das Oliveiras, quando pensa em não aceitar seu cálice, e depois, quando já crucificado indaga: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Jung vê aí a natureza humana transformada em divindade no exato instante em que Deus vive a experiência do homem mortal, aceitando sacrificar-Se por meio de seu próprio filho, passando por sofrimentos que nunca compreendeu, vividos anteriormente por seu servo Jó.

Seja o nascimento virginal de Cristo um mito ou não, o fato é que, como diz Jung, nem os mitos são simples ficção, pois neles é que se expressa toda a nossa natureza humana, em seu caráter universal. E não há nada mais real para Jung que a experiência da alma.

Sabemos pelo Velho Testamento, também pelo livro apócrifo de Henoc, séc. 1 a.C., que ocorreu a queda dos anjos rebeldes, chefiados por Satanás, que hoje vive banido da corte celeste, reinando no domínio sublunar, aguardando pelo confronto final, o Dia do Juízo. Com a limitação imposta ao demônio, Javé tornou-se, segundo Jung, um Deus de bondade, um Pai amoroso, reparando a injustiça cometida contra Jó em favor do desenvolvimento espiritual humano. Perdeu seu caráter irascível, bem declarado em Salmos 88, 31-33 do texto hebraico. É improvável que o atual drama cósmico assista a outro episódio semelhante ao de Jó. Entretanto, estamos longe do final dessa novela. Embora Cristo deposite confiança ilimitada no amor do Pai, e se sinta Um com Ele, deixa-nos seu sobreaviso na oração que ele próprio nos ensinou: “Pai, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo o mal.” Subentende-se daí que o mal continua escondido no cosmos, e Deus, Ele próprio o admite, apenas aguardando pela hora.

Uma leitura atenta do apocalipse de João nos oferece assunto para confirmar refletindo acerca do fabuloso drama cósmico dos homens e dos deuses. Essa, porém, é história para uma outra vez.

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