“… podem te tirar tudo; teus bens, teus mais belos anos, todas as tuas alegrias e todos os teus méritos, até tua última roupa – sempre restarão teus sonhos para reinventar o mundo que te confiscaram.”
Yasmina Khadra
Ganhei o livro “O Atentado” de Yasmina Khadra, Sá editora. É uma leitura que abre as feridas que tentamos esconder com a leitura superficial de nossa contemporaneidade e nos tira o chão quando percebemos a realidade exposta: um corpo irreconhecível sangrado na ficção.
Perdi o chão. Prendi-me à narrativa desde o explosivo primeiro capítulo. O médico e o seu compromisso com a vida, os terroristas com seus pactos antagônicos, e eu, leitora, com o encontro marcado com um novo autor, emaranhados numa trama que desnuda a nossa vulnerabilidade em busca do verdadeiro sentido de ser.
Após o desespero com as primeiras imagens mutiladas, o susto com a identificação da mulher-bomba. Tudo parece sem sentido para o médico de origem árabe e cidadania israelense. Ele tentava salvar as vidas e não poderia supor que sua mulher as havia detonado.
Ela? Como? Nunca percebeu indícios, ela não era uma fundamentalista, parecia integrada num círculo de amigos de elite, vivia num bairro nobre de Tel Aviv, gostava de viajar, era carinhosa e dedicada… O amor fez com que o protagonista nunca deixasse de sonhar com a mulher, idealizá-la, assim não conseguiu perceber os seus sentimentos obscuros e vivê-la com mais realidade. Quem é a mulher? A esposa amorosa de tantos anos ou a “kamikaze” que se explode junto a inúmeros jovens e crianças numa lanchonete?
As notícias diárias dos atentados, tão banalizadas, ganham sangue, calor e medo. O desespero e a insanidade são vistos na íntima perspectiva do personagem que, de repente, vê sua vida em ruínas sem saber conjugar os porquês… A dor de sobreviver ao outro, ao que acreditava de si próprio… A culpa mistura-se ao luto, raiva, solidão… Logo ele, filho de beduíno que havia dedicado toda a vida à sua formação e conseguido destacar-se como médico cirurgião, alheio aos conflitos dos muros… Por quê? Sentimentos sufocam o personagem que busca janelas e abre perspectivas que não podemos viver na leitura cotidiana de tantas tragédias.
O fanatismo religioso é apenas um parágrafo para a vida sem sonhos. Ganha-se um horizonte de fumaça perdido nas minas dos ódios e ressentimentos escondidos na alma, armadilhas frágeis que podem ser detonadas num breve toque, numa palavra, num olhar… Uma vida predestinada à escuridão, uma sobrevivência impossibilitada de recriação, uma morte reconhecida como a única luz possível…
Não cabe falar sobre o andamento ou o final do romance que estilhaça a alma. O livro de Yasmina Khadra (pseudônimo do argelino Mohammed Moulesseboul , fora traduzido em 14 países: Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Holanda, Alemanha, Suíça, Itália, entre outros. É considerado por J.M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura 2003, como um dos maiores escritores da atualidade) abre as feridas que tentamos esconder com a leitura superficial de nossa contemporaneidade e nos tira o chão quando percebemos a realidade exposta: um corpo irreconhecível sangrado na ficção…
Ficção?