Matéria publicada no jornal “Diário do Nordeste”
em Fortaleza, em 25/07/2004
Terapeutas tocam também suas dores no sacerdócio do cuidar do outro
‘‘Grande parte de vosso sofrimento é por vós próprios escolhido. É a amarga poção com a qual o médico que vive dentro de vós cura o vosso Eu doente. Confiai, portanto, no médico e bebei seu remédio em silêncio e tranqüilidade: pois sua mão, embora pesada e dura, é guiada pela suave mão do Invisível.’’
As palavras do ilustre pensador Kahlil Gibran serviram como referência para a estudiosa de mitologia e astrologia Melanie Reinhart, escrever sobre um assunto contundente. Em ‘‘Quíron e a Jornada em Busca da Cura’’ (Coleção Arco do Tempo da Editora Rocco), Reinhart registra com profundidade os perigos do lado fugitivo do ser humano, quando luta por abstrair-se de suas próprias dores, fazendo um movimento ilusório e irreal que não o leva a lugar algum. Ao contrário, ao negar a dor do fundo de sua alma, o homem cria em sua vida muita confusão, a partir dessa recusa em acolher a chamada ‘‘ferida sagrada’’.
Muitas vezes, é essa dor que o leva a enveredar pela área da saúde, tornando-se médico ou psicoterapeuta, pois ao entrar permanentemente em contato com a dor do outro e tentar aplacá-la, terá automaticamente alívio em sua própria dor, mesmo sem ter consciência clara disso.
RESGATE – Sacerdote, poeta, músico, curador, contador de histórias. Na Antigüidade – distinta do presente, em que predominam os especialistas, com razão e visão científica de análise e exclusão – a saúde era concebida e tratada de forma integrada e não desvinculada de outros conhecimentos e saberes.
A própria palavra ‘‘terapia’’, explica a psicóloga Jane Eyre Melo, em sua etimologia, se originou do grego ‘‘thaerapia’’, que significa ‘‘servir a Deus’’. Desta forma, a prática terapêutica, bastante antiga, já evidenciava a tentativa de conciliação entre o homem e a Natureza. Apesar disso, passou a ser entendida e utilizada pela medicina como forma ou tipo de tratamento e acompanhamento médico.
A especificidade e super especialização promovida na esfera da saúde, levou a se perder a riqueza de um instrumental valioso para a promoção do bem-estar humano. Conforme Jane Melo, ao deixarmos de lado o universo simbólico, ficamos desprovidos da compreensão que os antigos possuíam, que era o entendimento desse ‘‘curador interno’’ e seu processo de despertar, quando surgiam problemas aparentemente insolúveis.
AUXÍLIO – Para a psicóloga, a mitologia traz um grande auxílio no trabalho terapêutico, pois recupera informações que não deveriam ter sido esquecidas, sob pena de promover desconexão e desesperança no humano. ‘‘A verdadeira psicologia torna-se uma práxis arquetípica ao penetrar nas profundezas que subjazem a consciência’’, pontua.
Ela revela uma questão provocativa, levantada pelo mestre de psicologia alemão, Thorwald Dethlefsen: ‘‘Por que, cada vez mais pessoas no nosso meio cultural precisam urgentemente de uma terapia e como as pessoas que viveram nos últimos milênios conseguiam sobreviver sem sua ajuda?’’
O professor da Universidade de Munique explica que os homens de culturas antigas não precisavam de terapia porque tinham outros métodos que satisfaziam de modo muito mais adequado às necessidades da alma humana. Jane confirma ter havido um retrocesso no desenvolvimento humano, uma piora na própria essência. ‘‘É por isso que o homem moderno é psiquicamente mais doentio do que os homens de épocas anteriores. A psicoterapia transformou-se na resposta para uma perda sofrida por nossa cultura.’’
Dethlefsen acentua que hoje temos orgulho dessas ‘‘perdas’’, as quais fundamentam nossa sensação de ‘‘superioridade’’. Os mitos e seu culto, com os grandes e significativos potenciais energéticos trazidos por eles desde a Antigüidade, foram jogados fora muito apressadamente, na opinião do psicólogo. ‘‘É por isso que o mito e o culto estão tão distanciados da compreensão de nossa época, a tal ponto que esses conceitos despertam falsas associações.’’ Tudo hoje é ‘‘desmitificado’’ e ‘‘desmistificado’’, inclusive as religiões.
Só que o mito, originariamente, não traz uma história fantástica, mas uma narrativa que contém a revelação de um princípio divino, transcedental e numinoso, capaz de acordar os processos internos e naturais de cura da psique.
MITO – Quíron, o centauro mitológico, filho de Saturno, o senhor do tempo e da ninfa Filira, foi rejeitado pela própria mãe ao nascer, quando esta se deparou com seu hibridismo (metade cavalo, metade humano). Quíron, o centauro mitológico, traz consigo o arquétipo do curador, sábio e artista. Conduz o humano ao universo dos símbolos, que resignificam crenças, conceitos e valores arraigados da cultura contemporânea, tecnicista e robótica.
De acordo com Jane, era Quíron quem instruía os heróis em suas jornadas, como o fez com Hércules, em seus doze trabalhos. Na astrologia, o planeta Quíron, descoberto em 1977, reaproximou os humanos do arquétipo do ‘‘curador ferido’’, já que traz sua ferida interna original (rejeição materna) e também outra incurável, por ter sido acidentalmente ferido por uma flecha envenenada. Ao buscar a cura para seu ferimento, passou a ajudar muitas pessoas a se curarem.
Cristina Soares lembra que Quíron aparece na mandala astrológica de todas as pessoas. O que muda é apenas a esfera em que apresenta a dor que o moverá na vida, no sentido de buscar sua cura e compartilhar suas descobertas com as demais pessoas.
Jane Melo confirma que todas as pessoas possuem um lado Quíron, seja representando pelo movimento de despertar de seu terapeuta interno, seja no aspecto híbrido do mito. E finaliza lembrando que o despertar do terapeuta interno pode ser estimulado no contato com o médico, o psicólogo, o artista e até mesmo, um mestre, um professor, um filme, uma música.
Cristina Soares finaliza afirmando que a tendência humana de esconder sua ferida para tentar não acessar a dor nos leva a repetir indefinidamente padrões até surgir o grito de ‘‘basta, quero mudar’’. É neste ponto então em que ocorre a entrega e cada um pode abraçar sua dor.