Reducionismo, ‘Holismo’ e Pensamentos Sistêmico e Complexo

(Suas conseqüências na vida cotidiana)

 

Médico e escritor (ensaio, romance, conto). Coordena o Grupo de Estudos Contemporâneos (Complexidade, Pensamento Sistêmico e Cultura) da Associação Palas Athena, em São Paulo. 

E-mail – homariot@uol.com.br

As considerações que se seguem não pretendem condenar o reducionismo, o “holismo” e o pensamento sistêmico e exaltar o pensamento complexo. É claro que ao escrever sobre o tema faço uma opção e tento torná-la persuasiva – mas isso não implica inflexibilidade, e sim o desejo de mostrar algumas das conseqüências práticas desses modos de pensar e fazer um convite à reflexão. Ao exercer as próprias escolhas em função de suas considerações (em especial se elas levarem a ações), o leitor estará contribuindo para o entendimento do assunto, cuja importância em nosso dia-a-dia é evidente.

Para evitar confusões, é importante esclarecer o sentido em que os quatro termos mencionados no título são entendidos neste artigo, que, aliás, é o mesmo que consta na maior parte da literatura sobre o assunto. Chamo de reducionismo ao ponto de vista clássico, consolidado por Descartes, que divide o todo em partes e as estuda em separado. Por “holismo” compreendo o ponto de vista oposto, que se opõe à abordagem cartesiana e estuda o todo sem dividi-lo, ou seja, examina-o de modo sistêmico. O pensamento sistêmico é uma concepção basicamente “holística”, apresentada em 1940 por Ludwig von Bertalanffy. Por pensamento complexo entendo a proposta de Edgar Morin, que veremos com detalhes a seguir.

Ainda a respeito dessas expressões, existem variações de terminologia que em certos casos podem levar a equívocos. Por exemplo, a complexidade dos sistemas naturais é abordada por Edgar Morin de um modo diferente do que se observa em instituições como o Instituto Santa Fé, nos EUA.  Nos trabalhos de Humberto Maturana, fica claro que aquilo que o autor chama de “sistêmico” corresponde ao que Morin chama de “complexo”. Essa diversidade é compreensível. Mas, até que se chegue a uma terminologia unificada – se é que algum dia isso ocorrerá –, é preciso que estejamos atentos a essa diversidade. No que se refere à complexidade, ela traduz diferenças de abordagem e metodologia, mas não necessariamente implica discordâncias ou incongruências.

Morin sustenta que estamos ofuscados pela noção reducionista de partes isoladas e separadas do todo. Com efeito, a mente da nossa cultura está profundamente condicionada a pensar assim. É o que chamo de formatação pelo pensamento linear. No entanto – acrescenta Morin –, quando entramos em contato com a idéia de sistema, esse ofuscamento reducionista (que só vê as partes) pode ceder lugar a um deslumbramento “holístico”, que só vê o todo. Saltamos de um pólo ao outro.

O ponto de vista moriniano – o pensamento complexo – constitui outra forma de abordar a totalidade. De um modo geral, sua proposta é a complementaridade e a transacionalidade entre as concepções linear (reducionista) e “holística” (sistêmica). Nas palavras de Morin, seu propósito “não é dissolver o ser, a existência e a vida no sistema, mas compreender o ser, a existência e a vida com a ajuda também do sistema”. O pensamento complexo baseia-se em dois princípios (o da emergência e o da imposição), aos quais, utilizando os próprios termos do autor, acrescento um terceiro (o princípio da complexidade do todo).

O princípio da emergência diz que o todo é superior à soma das partes. É o que mostra o fenômeno das propriedades emergentes. Um exemplo são as ligas metálicas, que têm propriedades que não existiam em cada em um de seus componentes isolados. Outro exemplo é o que ocorre quando um grupo se reúne para discutir um determinado assunto ou problema. Do diálogo que se estabelece costumam surgir idéias novas, que antes não haviam ocorrido aos participantes.

O princípio da imposição diz que o todo é inferior à soma de suas partes. Isso significa que as qualidades ou propriedades das partes, quando consideradas separadamente, diluem-se no sistema. Tornam-se assim latentes, virtualizadas. É o que ocorre, por exemplo, em um coral. Por maiores que sejam as potencialidades da voz de um ou de vários de seus participantes, eles têm de restringi-las ao que a totalidade exige. Para Morin esse aspecto é raramente reconhecido, mas é tão evidente quanto o fenômeno da emergência.

O fato de determinadas propriedades ou qualidades das partes serem tornadas virtuais em benefício do todo caracteriza uma repressão, restrição ou inibição deste sobre aquelas. Esse fenômeno ocorre em toda relação organizacional. Em outros termos, para que o todo possa existir como todo é preciso que ele se imponha às partes, que assim ficam impedidas de exercer algumas (ou muitas) de suas qualidades e potencialidades. A partir daí elas se tornam virtualizadas, entram em latência. Essa imposição do todo sobre as partes é uma característica básica dos sistemas.

Outra característica dos sistemas é a hierarquia. Esse termo não deve ser tomado aqui em seu sentido coloquial de autoritarismo, mas sim para indicar que um dado sistema é sempre um subsistema de um sistema maior e é composto por sistemas menores. Além disso, a depender do grau menor ou maior em que suas potencialidades são inibidas pelo todo, as partes constituintes de um sistema resultam mais ou menos especializadas – sempre em benefício da totalidade. Como lembra Morin, cada célula de um organismo inclui a informação genética da totalidade orgânica. Mas a maior parte dessa informação está virtualizada. Só são utilizados os potenciais que interessam ao sistema. Nesse sentido, o todo é inferior à soma de suas partes.

O princípio da complexidade dos sistemas diz que o todo é ao mesmo tempo maior e menor que a soma de suas partes. Os sistemas são dinâmicos, transacionam incessantemente com o meio. Além disso, a relação entre os comportamentos observados nos dois princípios anteriores não é seqüencial e sim circular, e por isso em um dado momento não se pode determinar qual deles predomina.

 

Virtualização e repressão

A noção de que o todo reprime o potencial das partes tem amplas conseqüências. Um exemplo é o que ocorreu com o movimento do Potencial Humano, iniciativa psicológica e psicoterapêutica que floresceu nos EUA na década de 60. Sem se dar conta disso, seus componentes aplicaram ao pé da letra o princípio da imposição e tiraram a seguinte conclusão: se as partes (no caso, as pessoas) têm um potencial reprimido/virtualizado, é preciso realizá-lo.

À primeira vista, esse raciocínio parece óbvio e impecável. No entanto, como se tratava de um movimento sistêmico, o Potencial Humano incorreu nos dois equívocos básicos da teoria dos sistemas, apontados por Morin em outro contexto. O primeiro foi questionar o reducionismo propondo o “holismo”: buscando superar o reducionismo, a teoria dos sistemas acabou substituindo a redução às partes pela redução ao todo. O segundo engano foi ignorar a desordem e os antagonismos que existem em todo sistema.

O pensamento sistêmico leva em conta apenas a harmonia, a síntese funcional contida no todo.  Mas não considera que essa síntese se faz às custas de repressões e antagonismos. Um sistema não é apenas harmonia. A harmonia sistêmica repousa sobre a conflituosidade e a desarmonia, que também fazem parte do sistema e nele permanecem latentes. Bertalanffy chegou a reconhecer que um sistema se constrói à custa dos antagonismos entre as suas partes, mas não se deteve nesse particular. Centrou-se na idéia de totalidade. Um sistema não é harmônico nem desarmônico: é as duas coisas ao mesmo tempo – é complexo. É por isso que Morin sustenta que o sistema é o conceito básico da complexidade. Não pode ser reduzido a unidades elementares, nem a conceitos simplificadores nem a leis gerais. Por outro lado, não se pode reduzir tudo a ele.

Mas foi o que fizeram certos setores do movimento do Potencial Humano. A idéia de libertar incondicionalmente o reprimido (realizar o potencial humano) é sistêmica e por isso limitada, porque ignora a complexidade dos fenômenos naturais. É claro que os potenciais devem ser realizados tanto quanto possível. Mas é também claro que num sistema cada circuito de crescimento é sempre contrabalançado por um circuito de equilíbrio, que tende a limitá-lo em sua progressão. Por isso, se os potenciais devem ser realizados há um preço a pagar: se as partes pertencem necessariamente a um todo, a realização de suas latências só pode seguir até o ponto em que não as faça destoar desse todo. Uma parte que cresce sem limites, que se destaca em excesso em relação ao todo pode acabar prejudicando-o. O crescimento incontrolável de um tumor maligno é um exemplo disso.

O outro extremo corresponde à entrega excessiva das partes ao todo em “religação dionisíaca”. Como foi dito há pouco, alguns setores do movimento do Potencial Humano incorreram nesse excesso. O resultado foi a lamentável festivização e carnavalização de várias de suas terapias – em especial as corporais, como a neo-reichiana –, fenômeno que atraiu e fez proliferar um grande número de charlatães. Como todos sabem, tais exageros prejudicaram acentuadamente essa importante abordagem terapêutica. Nesse exemplo, como em inúmeros outros, a liberação exagerada e indiscriminada das repressões levou à alienação.

Por outro lado, nem sempre a repressão do todo sobre as partes é boa para ambos. O exemplo da antiga União Soviética é particularmente ilustrativo: revela que se a repressão – com a virtualização de potenciais que acarreta – for excessiva, a totalidade acaba se transformando em totalitarismo, o que cedo ou tarde acabará destruindo o sistema. Foi o que mostraram os fatos históricos.

Dessa maneira, a alienação pode surgir por excesso de individualismo ou por escassez de individualidade – caso do “holismo” em sua vertente mística. De um lado, situam-se os homens práticos” e excessivamente dependentes do ego. Do outro, as pessoas “iluminadas” e “sem ego”. Neste ponto é preciso lembrar que, como diz Ken Wilber, transcender o ego não significa anulá-lo, mas ultrapassar sua insegurança e fragilidade conservando porém a sua indispensabilidade aos atos concretos do cotidiano. É o que esse autor exemplifica citando pessoas notáveis, como Teresa de Ávila, Buda e Platão. Acrescento Gandhi.

 

Organização e anti-organização (cultura e contracultura)

Morin sustenta que toda relação organizacional (todo sistema), inclui e produz antagonismos e, ao mesmo tempo, complementaridade. Quer dizer, o sistema não é apenas partes nem apenas todo:  é uma inter-relação complementar. Como já vimos, os modos patentes de expressão de um determinado sistema tornam latentes os antagonismos a essa expressão. Se esses antagonismos fossem deixados sem repressão acabariam – para usar as palavras de Morin – tornando-se anti-organizacionais, e portanto ameaçadores à própria existência do sistema. É o que acontece, por exemplo, no caso do terrorismo e de grupos de pressão que apelam para a violência.

Para Morin, todo sistema tem uma face diurna, que é aglutinadora e organizacional, e um lado escuro, noturno, que lhe faz oposição. A unidade complexa do sistema estabelece esse antagonismo e ao mesmo tempo o reprime. Em termos institucionais, é o que acontece com as culturas patente e latente dos grupos, instituições e organizações. A cultura patente representa o visível, o explícito, o modo como a cultura quer ser vista, a sua persona. Em uma empresa, por exemplo, ela corresponde às instalações físicas, ao mobiliário, ao modo como as pessoas se trajam e falam e assim por diante. A cultura latente abriga a aleatoriedade, a incerteza, a conflituosidade, a criatividade reprimida. Mas também oculta o potencial para que a criatividade desabroche.

Em termos de sistema, a força que exerce essa repressão é chamada de feedback negativo. Retomemos o exemplo clássico da geladeira. Sua temperatura interna é programada para manter-se em cerca de quatro graus centígrados. Quando ela sobe acima desse nível, o calor faz com que o termostato dispare e o motor volta a funcionar, fazendo com seja recuperado o patamar térmico programado. Nesse exemplo, o potencial para temperaturas mais altas só pode ir até quatro graus. Acima desse ponto, o feedback negativo deflagra o termostato. Seu papel é manter a variação (a realização do potencial) dentro do pré-estabelecido. A partir daí ele tende a reprimi-lo – mas é essa repressão que mantém o funcionamento do sistema. Em relação à sociedade, Freud já havia dito, em seu famoso ensaio O Futuro de uma Ilusão, que a civilização se baseia na renúncia aos desejos pulsionais ou, em outras palavras, que não há civilização sem repressão aos instintos das pessoas.

No entender de Morin, o antagonismo organizacional/anti-organizacional constitui o próprio cerne das sociedades humanas, nas quais complementaridades e antagonismos oscilam sem cessar entre atualizações (realizações de potencial) e virtualizações (repressões de potencial). Em condições ideais, a cultura predominante (a cultura patente em determinados momentos históricos) e a contracultura (a cultura latente nesses mesmos momentos) deveriam estar em uma circularidade tal que mantivesse a conflituosidade em níveis menos traumáticos. Ou seja, a sociedade deveria saber como lidar melhor com a desordem e a incerteza.

Mas a experiência mostra que não é isso que vem acontecendo ao longo da história. O que se observa é que, a intervalos, as culturas são superadas por contraculturas – que lhes tomam o lugar e passam de imediato a proceder exatamente do modo que tanto condenavam em suas antecessoras – a começar pela violência. Essa pendularidade jamais será superada enquanto perdurar a formatação de nossa cultura pelo pensamento linear, que aliás transparece fielmente na pendularidade ou reducionismo ou “holismo”. Ambos prometem certezas. Ambos evitam lidar com a incerteza.

 

A busca das certezas

O ser humano anseia por certezas. Todos queremos ir para o “céu”, seja o céu mecânico da ciência, seja o céu místico da totalidade. Daí o grande sucesso de público dos ideários que prometem tranqüilidade. É também por isso que o “holismo”, tanto quanto o reducionismo (de que, nesse sentido, é uma variante), são escolhas que no limite podem levar à alienação.

Tudo isso é óbvio e compreensível. Ao longo de nossas vidas, fazemos tudo o que podemos para diminuir as variáveis e aumentar o que chamamos de constantes. No entanto, precisamos entender que há um limite para a aquisição de certezas. Insistir em ultrapassá-lo acaba nos transformando em pessoas mecânicas, frias e quantificadoras, por um lado, e em pessoas para quem a realidade concreta é apenas um detalhe incômodo, por outro.

Em qualquer dos casos, o básico de nossas vidas não muda: a aleatoriedade, a conflituosidade,  a certeza da finitude. Essas variáveis se originam dos chamados “dados da existência”: o medo da liberdade, o medo da morte, o isolamento existencial e a sensação de que a vida não tem sentido. Para lidar com esses dados, ser reducionista ou ser “holístico” podem ser atitudes necessárias – mas não suficientes. É preciso aprender a trabalhá-los em sua complexidade.

Outro exemplo de frustração na busca de certezas é a maneira como o pensamento sistêmico vem sendo apresentado às empresas de todo o mundo. Trata-se de uma distorção que surge todas as vezes que ele é entendido e aplicado sem levar em conta a idéia de complexidade.

Como se sabe, a metodologia do uso desse modo de pensar foi formalizada em termos de padrões, os chamados arquétipos do pensamento sistêmico. Tais arquétipos têm se mostrado úteis para a solução de alguns problemas. Não há dúvidas quanto a isso. Contudo, talvez contrariando os propósitos de seus criadores, eles vêm sendo utilizados de uma forma que incorre no equívoco já mencionado, discutido e exemplificado neste artigo: a redução dos fenômenos à totalidade – o chamado sistemismo reducionista ou simplificador. Imagina-se que um sistema é apenas um conjunto de partes interdependentes e que a soma delas é superior ao todo. Quando há referências à complexidade sistêmica, percebe-se nitidamente que os autores a confundem com complicação. Esse engano se deve ao afã de simplificar, de reduzir tudo ao meramente operacional. No lugar de uma complexidade a ser entendida e trabalhada, põe-se uma complicação a ser simplificada.

Nessas circunstâncias, o pensamento sistêmico acaba sendo utilizado para produzir resultados lineares. É o que se dá quando, além da unidimensionalização já apontada, ele é apresentado como “vantagem competitiva” – o que vem ocorrendo com uma freqüência muito maior do que se imagina. Em suma: em muitos casos, os arquétipos vêm sendo comercializados como “ferramentas de mudança” meramente mecânico-produtivistas. Ou seja, vêm sendo utilizados de modo necessário, mas não suficiente. O desfecho de tudo isso é previsível: a transformação do método em modismo, a banalização e, por fim, o esvaziamento. Eis mais um dos infinitos aspectos da formatação da mente de nossa cultura pelo pensamento linear.

Já vimos que podemos transformar-nos em pessoas frias e “matemáticas” ou distantes e “metafísicas”, mas nem por isso nossa insegurança existencial básica desaparece. Em muitos casos, pode até aumentar. Essa constatação pode nos levar a grandes frustrações. É preciso compreender essa e outras limitações e integrá-las às nossas vidas, para que não acabemos projetando-as nos outros – e lançando sobre eles a culpa de não termos conseguido eliminá-las.

Tal circunstância pode conduzir-nos (e com efeito nos tem conduzido: é só conferir o curso dos acontecimentos) a duas posturas principais. A primeira é desprezar nossos semelhantes ao ponto de querer reinar sobre eles, de exercer sobre eles os nossos poderes de “iluminados”. Uma das propostas das pessoas que se supõem “iluminadas” é justamente esta: não mostrar seus poderes a não ser em caso de necessidade, e fazê-lo sempre com o propósito de ajudar aos outros. Trata-se, é claro, de seguir o princípio de reservar o saber para garantir o poder. Manter o mistério confere poder. Essa é a estratégia básica dos esoterismos – inclusive o científico.

Num outro registro, essa atitude gera o assistencialismo e o paternalismo típicos das oligarquias políticas. O mecanismo de fundo é o mesmo: fingir ajudar para melhor controlar. Como mostra o curso dos acontecimentos, o desprezo pelo outro acaba fazendo com que ele seja excluído da sociedade. É o que vem sendo feito com os “subdesenvolvidos”, com os “não-competitivos”, com os “lentos” em geral. É por meio dessas atitudes – e de outras similares – que a vontade de ir para o céu pode levar-nos (ainda em vida) para o inferno.

 

Resistência à formatação

Se as conseqüências da alienação são práticas, como acabamos de ver, não podemos lidar com elas nem reduzindo-as à concretude nem tornando-as metafísicas. Como se sabe, as dificuldades para a reforma do pensamento linear, atualmente predominante em nossa cultura, são imensas. A maior delas pode ser devida à nossa incapacidade de entendê-la e pô-la em prática. Jung dizia que nada nos garante que nosso cérebro já tenha atingido o desenvolvimento total de que é capaz. Morin diz o mesmo, e de maneira mais incisiva: para ele, ainda estamos na pré-história do desenvolvimento de nossa consciência/inteligência.

Minha idéia de formatação da mente de nossa cultura pelo pensamento linear (que, em boa parte, corresponde ao que Morin chama de imprinting) pode levar a outros raciocínios. Como se sabe, há pessoas que resistem naturalmente ao imprinting. Não são necessariamente gênios: muitos homens e mulheres comuns têm essa característica, sem ao menos se darem conta disso. A reunião dessas pessoas em redes de conversação tem contribuído para formar bases de resistência que, ao que parece, estão se ampliando em direção á formação de uma massa crítica, que pode vir a produzir mudanças coletivas de comportamento.

Ao longo da história, essas redes têm sido reprimidas. Tentou-se, por muitos meios, isolá-las em um grande cordão sanitário de vigilância ou patrulhamento cognitivo, e as coisas não são diferentes no momento atual. Não sem um certo exagero, alguns têm localizado focos dessa vigilância na universidade (ou ao menos em certos setores dela), na chamada comunidade científica, no mundo das empresas, na imprensa, na política – enfim, em todas a instituições que sustentam e são sustentadas pela economia formal que, como sabemos, é basicamente orientada pelo pensamento linear.

Ultimamente, textos de articulistas políticos e econômicos vêm utilizando expressões como “risco sistêmico” e semelhantes. É pouco provável que tenham noção suficiente de pensamento sistêmico e da riqueza de implicações que ele comporta. O inverso também pode ser verdadeiro. Mas o fato é que essa expressão, antes totalmente ausente do discurso dessas pessoas, vem aos poucos sendo empregada. Isso sugere que elas devem ser informadas o mais rápido possível sobre as possibilidades do horizonte que estão divisando.

Um dos domínios sociais mais favoráveis às redes de conversação que podem ajudar a formar a massa crítica em favor do pensamento complexo, é o chamado Terceiro Setor do processo produtivo. Este compreende as áreas da sociedade em que se fazem trabalhos comunitários e nas quais predomina a economia dita “social”, que comporta, por exemplo, serviços voluntários e formas de remuneração não-financeira. Ao lado dele há o primeiro setor (o governo) e o segundo  (o universo das empresas), regidos pela economia de mercado e portanto pelo pensamento linear. Mesmo que se levem em conta todas as dificuldades, equívocos, más interpretações e outros problemas, é no Terceiro Setor que mais se vêm observando conversações diferentes das habituais.

Esse exemplo mostra por que a resistência ao imprinting precisa ser exercida no plano prático, imanente, isto é, na lida com as atividades do cotidiano, inclusive (e talvez principalmente) a área política. A vida de Gandhi é um eloqüente testemunho disso – e também uma pungente demonstração das dificuldades que esse projeto implica. De todo modo, quando falo em “imanente” quero dizer que de uma certa maneira os deuses estão também entre nós: fazem parte de nossa individualidade e emergem de nossos contatos com nossos semelhantes. É o mesmo que sugerir que o sagrado está também na natureza, como dizia Gregory Bateson, e não apenas num empíreo ao qual só podemos chegar por meio da “iluminação”.

 

Pontos de alavancagem

Sabemos que nos sistemas há pontos que se mobilizados podem provocar mudanças significativas. Muitas dessas modificações podem ocorrer em curtos espaços de tempo, outras podem ser até mesmo instantâneas. São os pontos em que as potencialidades das partes estão virtualizadas, reprimidas – os chamados pontos de alavancagem. Situam-se nas partes ocultas do sistemas, na sua “cultura latente”. É importante aprender a localizá-los, se quisermos saber mais sobre o universo dos sistemas e como lidar com ele. Mas também é indispensável ter em mente que não basta identificá-los. Eles são apenas uma porta de entrada à aprendizagem da complexidade do mundo natural.

Essa aprendizagem evita que imaginemos que as soluções que nos parecem óbvias são sempre as mais apropriadas. Permite que saibamos até onde podemos ir sem traumatizar desnecessariamente os sistemas, o que é particularmente importante quando lidamos com a natureza. Como diz Morin, o todo inclui a organização (que por sua vez inclui os antagonismos), e só funciona como todo se as partes funcionarem como partes. Noções como essa nos fazem concluir que agredir os sistemas pode corresponder a agredir a nós mesmos.

Todas essas idéias são de compreensão muito difícil em uma cultura formatada pelo pensamento linear. Mas essa constatação não nos deve levar ao desânimo, porque a experiência vem aos poucos mostrando que o número de pessoas resistentes ao imprinting é maior do que a princípio parecia.  O importante é proporcionar a elas um nível de informação que lhes permita escolher os instrumentos epistemológicos com os quais desejam lidar com a realidade.

Dessa maneira, é fundamental não entender a totalidade como “solução final”, isto é, como uma meta a alcançar, algo em cuja direção se deve progredir. Pensar assim seria adotar uma idéia de progresso tão equivocada quanto a do Iluminismo – que via no reducionismo essa mesma solução. A reflexão, apoiada pela experiência do dia-a-dia, mostra que a totalidade não pode ser matematicamente certa, porque inclui a incerteza. Nem pode ser completamente organizada, pois comporta a desordem.

O ponto de vista exclusivo da totalidade é, paradoxalmente, parcial. Um domínio humano onde só existisse a verdade seria, por isso mesmo, inverídico. É por esse motivo que Theodor Adorno diz que “a totalidade é a não-verdade”. E é por essa mesma razão que Morin diz que a verdade do todo está nas partes ou passa por elas. Talvez seja essa a principal diferença entre totalidade e totalitarismo.

Referências bibliográficas

  1. ADORNO, Theodor W. Negative dialectics. Nova York: Continuum, 1973.
  2. BERTALANFFY, Ludwig von. General systems theory. Nova York: Georges Braziller, 1968.
  3. FREUD, Sigmund. El porvenir de una ilusión. Em Obras completas. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1948, vol. 1.
  4. GANDHI, Mohandas K. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. São Paulo: Palas Athena, 1999.
  5. MARIOTTI, Humberto. Organizações de aprendizagem: educação continuada e a empresa do futuro. São Paulo: Atlas, 1995.
  6. MARIOTTI, Humberto. Autopoiesis, culture, and society. Oikos (Itália) www:oikos.org/maten.htm, 1999.
  7. MATURANA, Humberto, VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amor y juego: fundamentos olvidados de lo humano. Santiago (Chile): Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.
  8. MORIN, Edgar. La méthode. 1. La nature de la nature. Paris: Seuil, 1977.
  9. PETRAGLIA, Izabel C. “Olhar sobre o olhar que olha”: complexidade, holística e educação. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1998.
  10. WILBER, Ken. Monumentally, gloriously, divinely big egos. Excerto do livro: One Taste, The Journals of Ken Wilber, a ser publicado por Shambhala Publications.
  11. YALOM, Irvin D. The theory and practice of existential psychoterapy. Nova York: Basic Books, 1975.

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