Caras concidadãs e caros concidadãos, eu devo primeiramente lembrar que a nação não vive nem numa redoma de vidro nem num mundo imóvel. Nós devemos tomar consciência de que vivemos uma comunidade de destino planetário face às ameaças globais que representam a proliferação das armas nucleares, o desencadeamento de conflitos ético-religiosos, a degradação da bioesfera, o rumo ambivalente de uma economia mundial incontrolável, a tirania do dinheiro, a união de uma barbárie vinda do fundo das eras e da barbárie glacial do cálculo técnico e econômico.
O sistema planetário está condenado à morte ou à transformação. Nossa época de mudanças tornou-se uma mudança de época. Eu não lhes prometo a salvação, mas indicaria a longa e difícil viagem rumo a uma Terra-Pátria e uma Sociedade Mundo, o que implica primeiramente a reforma da ONU para ultrapassar as soberanias absolutas dos Estados nacionais sempre reconhecendo sua autoridade para os problemas que não são de vida/morte para o planeta.
Farei o possível para dar à nação consistência e vontade para instituir uma autonomia política e militar. Eu lhe apresentaria um grande desenho: reformar sua própria civilização, incorporando a contribuição moral e espiritual de outras civilizações, elaborar uma política comum de inserção; enfim e sobretudo, fazer um lar exemplar de paz, compreensão e tolerância.
Eu definiria uma estratégia que leve em conta os acontecimentos e os acidentes. De imediato, eu suscitaria dois encontros entre parceiros sociais, um sobre o emprego e os salários e o outro sobre os aposentados.
Eu constituiria dois comitês permanentes visando à redução das rupturas sociais:
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um comitê permanente de luta contra as desigualdades, que atacaria em primeiro lugar os excessos (benefícios e remunerações na cúpula) e as carências (de nível e qualidade de vida na base);
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um comitê permanente encarregado de reverter o desequilíbrio crescente desde 1.970 na relação capital-trabalho.
Sendo dada a integração vital de uma política ecológica, constituiria um terceiro comitê permanente que trataria das transformações sociais e humanas que se impõem.
Eu indicaria o caminho de uma política de civilização que ressuscitaria as solidariedades, faria retroceder o egoísmo, e mais profundamente reformaria a sociedade e as nossas vidas. De fato, nossa civilização está em crise. Ali onde chegou, o bem-estar material não necessariamente trouxe o bem-estar mental. Prova disso são os consumos desenfreados de drogas, ansiolíticos, antidepressivos e remédios para dormir. O desenvolvimento econômico não trouxe o desenvolvimento moral. A aplicação do cálculo, da cronometria, da hiper-especialização, da compartimentalização do trabalho, às empresas, às repartições públicas e finalmente às nossas vidas, trouxe muitas vezes a degradação das solidariedades, a burocratização generalizada, a perda de iniciativa e o medo da responsabilidade.
Também reformaria as administrações públicas e provocaria a reforma das administrações privadas. A reforma visa desburocratizar, desesclerosar, descompartimentalizar e dar iniciativa e maleabilidade aos funcionários ou empregados, para atender de maneira benévola todos aqueles que necessitam freqüentar as repartições. A reforma do Estado se faria não pelo aumento ou supressão de empregos, mas modificando a lógica que considera os humanos objetos submetidos à quantificação e não como seres dotados de autonomia, de inteligência e de afetividade.
Eu proporia revitalizar a fraternidade, subdesenvolvida na trilogia republicana Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Primeiramente, eu suscitaria a criação de Casas da Fraternidade nas diversas cidades e nos bairros das metrópoles.
Essas casas reagrupariam todas as instituições de caráter solidário já existentes e comportariam novos serviços dedicados a intervir com urgência a favor das misérias, morais ou materiais, para salvar do naufrágio as vítimas de overdose de drogas ou de tristeza. Seriam lugares de iniciativas, de mediações, de seguros, de informação, de benevolência e de mobilização permanente.
Ao mesmo tempo, seria preciso instituir um Serviço Cívico da Fraternidade, presente nas Casas da Fraternidade, que se consagraria mais aos desastres coletivos, inundações, secas, etc. Assim, a fraternidade seria profundamente inscrita e viva na sociedade reformada que queremos.
Na nossa concepção de fraternidade, os delinqüentes juvenis são não indivíduos abstratos a serem reprimidos como os adultos, mas adolescentes em idade plástica onde é preciso favorecer as possibilidades de redenção. Consideraríamos os imigrantes não como intrusos a serem rejeitados, mas como irmãos procedentes da pior miséria, aquela que foi criada ao mesmo tempo por nossa colonização passada que jogou as populações agrárias na miséria das favelas urbanas.
Como o rumo atual da nossa civilização privilegia a quantidade, o cálculo, o ter, eu me dedicaria a uma vasta política da qualidade da vida. Nesse sentido, favoreceria tudo o que combate as múltiplas degradações da atmosfera, da alimentação, da água, da saúde. Toda a economia de energia deve constituir um ganho de saúde e qualidade de vida. Assim, a desintoxicação automobilística dos centros das cidades se traduziria em diminuição de bronquites, asmas e doenças psicossomáticas. A desintoxicação dos lençóis freáticos reduziria a agricultura e a criação industrial de animais a favor de uma ruralidade sólida, que restauraria a qualidade dos alimentos e a saúde do consumidor.
A redução das intoxicações da civilização – entre elas a intoxicação publicitária, que pretende oferecer sedução e satisfação em e pelos produtos supérfluos -, do desperdício de objetos descartáveis, dos modos acelerados que tornam obsoletos os produtos no prazo de um ano, tudo isso nos deve levar a mudar o rumo a favor de uma marcha para o melhor, e se inscreve numa ação contínua a favor de duas correntes que é preciso desenvolver: a reumanização das cidades e a revitalização dos campos. Esta última comporta a necessidade de reanimar as vilas para a instalação do teletrabalho e a volta das padarias e dos pequenos restaurantes.
Em matéria de emprego, instituiria auxílios para a criação e o desenvolvimento de toda atividade que contribua para a qualidade de vida. A política dos grandes trabalhos que eu proporia para desenvolver o transporte combinado, alargar e arrumar os canais e criar parques periferias das cidades e também em seus centros permitiria ao mesmo tempo criar empregos e aumentar a qualidade de vida. Os recursos necessários para essas obras seriam compensados em poucos anos pela diminuição das doenças sócio-psicossomáticas provocadas pelo estresse, poluição e intoxicação.
No campo da economia, trabalharia por uma economia plural, que está em gestação no planeta de maneira dispersa, e cujos desenvolvimentos permitiram ultrapassar a ditadura do mercado mundial..Desenvolveria as pequenas e médias empresas, as cooperativas e mutuários de produção e/ou consumo, as profissões de solidariedade, o comércio justo, a ética econômica, o micro-crédito, a economia solidária que financia projetos de proximidade, criadores de empregos. O desenvolvimento de uma alimentação de proximidade que não depende mais dos grandes circuitos intercontinentais nos forneceria produtos de comprovada qualidade e nos prepararia para enfrentar as eventuais crises planetárias.
No que se refere à educação, a primeira missão foi formulada por Jean-Jacques Rousseau em Emílio: “Vou ensiná-lo a viver”. Trata-se de fornecer os meios para enfrentar os problemas fundamentais e globais que são os de cada indivíduo, de cada sociedade e de toda a humanidade.
Esses problemas são desintegrados nas e pelas disciplinas compartimentadas. Assim, para começar, instituiria um ano propedêutico para todas as universidades sobre: os riscos de errar e da ilusão no conhecimento; as condições de um conhecimento pertinente; a identidade humana; a era planetária que vivemos; o enfrentamento das incertezas; a compreensão do outro e, enfim, os problemas de civilização contemporânea.
O elã para a grande reforma surgiria das profundezas de nosso país quando perceber que ela se encarregará de suas necessidades e de suas aspirações. Porque, esclerosado em todas as suas estruturas, o país está vivo na base. A mudança individual e a mudança social seriam inseparáveis, sendo cada uma separadamente insuficiente. A reforma da política, a reforma do pensamento, a reforma da sociedade, a reforma da vida se conjugariam para conduzir a uma metamorfose da sociedade. Os futuros radiantes estão mortos, mas nós abriríamos um caminho para um futuro possível.
Este caminho, nós podemos avançá-lo. E traria a esperança de uma salvação planetária.”
Edgar Morin
Sociólogo, diretor de pesquisa emérito no CNRS
e presidente da Agência Européia para a Cultura (Unesco).