Tempo e Transformação

 
(capítulo XX do livro: A primeira e última liberdade – 1958)
 

Desejo falar um pouco a respeito do tempo, porque acredito que a riqueza, a beleza e significação daquilo que é atemporal, daquilo que é verdadeiro, só podem ser experimentadas quando compreendemos integralmente o processo do tempo. Afinal de contas, estamos buscando, cada um à sua maneira, um sentimento de felicidade, de enriquecimento. Ora, uma vida que tem significado, que tem as riquezas da verdadeira felicidade, não está em relação com o tempo.

Qual o amor, essa vida é atemporal e para compreendermos o que é atemporal, não devemos considerá-lo através do tempo, porém antes, compreender o tempo. Não devemos utilizar o tempo como meio de alcançar, compreender, apreender o que é atemporal – e por isso é importante compreender o que se entende por “tempo”, pois creio que é possível ser livre do tempo. É importantíssimo compreender o tempo com um todo e não por partes.

É interessante compreender que quase toda nossa vida se consome no tempo – tempo, não no sentido de seqüência cronológica de minutos, horas, dias e anos, mas no sentido de memória psicológica. Vivemos pelo tempo, somos resultado do tempo. Nossas mentes são o produto de muitos dias passados, e o presente é apenas a passagem do passado para o futuro. Nossas mentes, nossas atividades, nosso ser, fundam-se no tempo. Sem o tempo, não podemos pensar, porque o pensamento é resultado do tempo, o produto de muitos dias passados, e não há pensamento sem memória. Memória é tempo, pois há duas espécies de tempo: o cronológico e o psicológico. Há o tempo, o ontem do relógio, e o ontem da memória. Não se pode rejeitar o tempo cronológico, pois seria absurdo: poderíamos perder o trem. Existirá realmente tempo, fora do tempo cronológico? É claro que há o tempo, o ontem, mas existe o tempo tal como a mente o concebe? Existe tempo, separado da mente? Não há duvida que o tempo, o tempo psicológico é produto da mente. Sem a base do pensamento, não existe o tempo – sendo “tempo” apenas a memória do dia de ontem em conjunção com o de hoje, moldando o amanhã. Quer dizer, a memória da experiência de ontem, em reação ao presente, está criando o futuro – o que constitui ainda um processo de pensamento, uma senda da mente. O processo de pensamento determina progresso psicológico no tempo, mas esse tempo será real, tão real como o tempo cronológico? Podemos utilizar esse tempo produzido pela mente, como meio de compreender o eterno, o atemporal? Como disse, a felicidade não é produto de ontem, a felicidade não é produto do tempo, a felicidade está sempre no presente, é um estado atemporal. Não sei se já notastes, que quando tendes um êxtase, uma alegria criadora – uma série de nuvens radiosas cercadas de nuvens negras – nesse momento não existe o tempo: só há o presente imediato. A mente, interferindo depois desse experimentar, do presente, lembra-se dele e deseja continuá-lo, acrescentando-se a si mesma, mais e mais, e criando assim o tempo. O tempo é criado pelo “mais”; o tempo é aquisição e, também, renúncia, que é por sua vez uma aquisição da mente. Logo, disciplinar apenas a mente no tempo, condicionar o pensamento dentro da estrutura do tempo, que é memória, por certo não nos revela o que é atemporal.

A transformação depende do tempo? Quase todos estamos acostumados a pensar que o tempo é necessário para a transformação: sou “tal coisa”, e para modificar o que sou e transformá-lo naquilo que deveria ser, é preciso tempo. Sou ambicioso, e dessa ambição resulta confusão, antagonismo, conflito, aflição. Para realizar a transformação, que é a não-ambição, pensamos ser necessário o tempo. Isto é, consideramos o tempo como meio de envolvermos para algo superior, como meio de nos tornarmos alguma coisa. O problema é este: sou violento, ambicioso, invejoso, irascível, vicioso ou apaixonado. Para transformar o que é, há necessidade de tempo? Em primeiro lugar, por que desejamos modificar o que é, efetuar uma transformação? Por quê? Porque o que é não nos satisfaz, o que é cria conflito, perturbações, e, como não gostamos desse estado, desejamos algo que seja melhor, mais nobre, mais idealístico. Assim, desejamos a transformação porque existe sofrimento, desconforto, conflito. O conflito pode ser dominado pelo tempo? Se dizeis que sim, continuais em conflito. Podemos dizer que bastarão vinte dias, ou vinte anos, para nos livrarmos do conflito, para modificarmos o que somos, mas durante esse tempo continuaremos em conflito, e por conseguinte, o tempo não efetua transformação alguma. Quando nos servimos do tempo como meio de adquirir uma qualidade, uma virtude, ou um “estado de ser”, estamos apenas adiando, estamos evitando o que é. Julgo importante compreender este ponto. A ambição, ou a violência, causam sofrimento e perturbações no mundo das nossas relações, que constituem a sociedade; cônscios deste estado de perturbação, que denominamos a ambição ou violência, dizemos para nós mesmos: “sairei dele com o tempo; praticarei a não-violência, praticarei a não-inveja; praticarei a paz”. Ora, desejais praticar a não-violência, porque a violência é um estado de perturbação, de conflito, e pensais que com o tempo alcançareis a não-violência e dominareis o conflito. Que está realmente acontecendo? Achando-vos em estado de conflito, desejais alcançar um estado em que não haja conflito. Ora, esse estado de não-conflito é resultado do tempo, de uma duração? Evidentemente não é; porque enquanto estais alcançando o estado de não-violência, continuais violentos e, por conseguinte, em conflito.

Nosso problema é: pode um conflito, uma perturbação ser superada num período de tempo – de dias, de anos, de vidas? Que acontece quando dizeis: “vou praticar a não-violência durante certo período de tempo”? O praticar, em si mesmo, indica que estais em conflito, não é verdade? Não praticaríeis se não estivesse resistindo ao conflito; dizeis que a resistência ao conflito é necessário, para que se possa dominar o conflito, e para essa resistência necessitais de tempo. Mas a própria resistência ao conflito é ainda uma forma de conflito. Estais consumindo vossa energia resistindo ao conflito, sob a forma que chamais ambição, inveja ou violência, mas vossa mente continua em conflito, e por isso importa perceber a falsidade do processo de dependência do tempo, como meio de dominarmos a violência e de nos livrarmos daquele processo. Podeis então ser o que sois: uma perturbação psicológica, a própria violência.

Para compreender qualquer coisa, qualquer problema humano ou científico, o que é importante, o que é essencial? Ter a mente tranqüila, não é verdade? – ter a mente toda aberta à compreensão. Esta não é mente exclusiva, mente que procura concentrar-se, pois isto é, também, esforço de resistência. Se desejo, na realidade, compreender uma coisa, apresenta-se logo um estado mental tranqüilo. Quando desejais ouvir música, ou contemplar um quadro que amais, um quadro que apreciais, qual é o estado de vossa mente? Há imediata tranqüilidade, não há? Quando escutais música, vossa mente não está divagando em todas as direções; está escutando. Identicamente, quando desejais compreender o conflito, já não estais na dependência do tempo, mas apenas em presença do que é, do conflito. Vem então, de pronto, a tranqüilidade, a serenidade da mente. Quando não mais dependeis do tempo como meio de transformar o que é, por verdes a falsidade desse processo, estais então frente a frente com o que é, e visto que estais interessados em compreender o que é, tendes naturalmente a mente tranqüila. Nesse estado mental vigilante, e ao mesmo tempo passivo, há compreensão. Enquanto a mente está em conflito, reprovando, resistindo, condenando, não haverá compreensão. Se desejo compreender-vos, não posso condenar-vos, é claro. É essa mente quieta, essa mente tranqüila, que efetua a transformação. Quando a mente já não está resistindo, evitando, rejeitando, ou reprovando o que é, mas se acha simplesmente, passivamente, vigilante, então, nessa passividade da mente vereis – se de fato examinardes o problema – vereis como vem a transformação.

A revolução só é possível agora, e não no futuro; a regeneração é hoje, e não amanhã. Se experimentardes o que estou dizendo, vereis que há regeneração imediata, um estado novo, uma qualidade nova, porque a mente está sempre tranqüila quando está interessada, quando tem o desejo ou a intenção de compreender. A dificuldade, no que respeita à maioria de nós, é que não temos a intenção de compreender, pois receamos que a compreensão produza uma ação revolucionária em nossa vida, e por isso resistimos. Está em ação o mecanismo de defesa, quando empregamos o tempo ou um ideal como meio de gradativa transformação.

A regeneração, pois, só é possível agora, e não no futuro, não amanhã. O homem que conta com o tempo como meio de alcançar a felicidade ou de conhecer a verdade ou Deus, está simplesmente enganando a si mesmo, está vivendo na ignorância e, por conseguinte, em conflito. O homem que reconhece não ser o tempo o caminho por onde sairá de suas dificuldades e que, por conseguinte, está livre do falso, esse homem, naturalmente, tem a intenção de compreender. Sua mente, portanto, está espontaneamente tranqüila, sem compulsão, sem disciplina. Quando a mente está tranqüila, serena, quando não está buscando resposta ou solução alguma, quando não está resistindo nem evitando, só então pode haver regeneração, porque a mente é assim capaz de perceber o que é verdadeiro. A verdade é que liberta, não o esforço que fazemos para libertar-nos.

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