Uma Bula do Amor ou dos Amores

 

Vamos falar um pouco da filologia do amor? E por quê tal proposta? É que vejo que até o amor nós já não sabemos mais o que é! Assim, todos os dias, vejo as almas confundidas, desejando ter para dar o que nelas não existe, e, também, chamando de amor aquilo que é ainda instinto primal, e não o desenvolvimento do ser, até chegar ao verdadeiro amor.



Amor

Muita gente me escreve querendo soluções para seus problemas de amor. Eu, porém, sou apenas mais um irmão andando e aprendendo, no caminho, o que seja “o Caminho sobremodo excelente” do amor. Assim, não é um especialista quem fala, mas apenas um homem que também que ser maduro em seu amor.

Aliás, quem acha que já é maduro no amor?

Ora, este tal está morrendo e não sabe, visto que o amor jamais acaba também no que tem a nos ensinar! Vamos, então, o mais pedagogicamente possível, dar uma olhada nessa “Bula do Amor”. Quem sabe isto possa nos ajudar a todos!?

No amor partimos em um movimento ascendente, indo-se da libido, para a paixão, e para a compaixão. É a ‘mesma energia psicológica’ que ascende e nos atravessa, indo do básico e infantil ao que é adulto e maduro.

Assim, muitas vezes, os problemas sexuais surgem em razão de se misturar as formas de amor. Vejamos os níveis do amor:

Amor Pornéia (porneia)

Em grego, há diferentes palavras para estas etapas do amor. A primeira etapa é Pornéia (porneia), o amor voraz e devorador, o amor do bebê por sua mãe, o amor de consumo. “Amo o outro, portanto como-o”. Este amor é muito lindo em um bebê. Mas é bem menos bonito em um senhor de 60 anos que só quer “comer e devorar”. A Pornéia é uma forma de amor que precisa ser respeitada e que ocorre em um momento de nossa evolução. Para crescer, temos necessidade de nos nutrirmos do outro. Mas fazer disso um “comer o outro” como se fosse “comida”, faz mal às referencias de outras formas de amar, as quais, só crescem em nós se “pornéia” ficar em seu lugar: no chupão do peito da mãe ou da mulher que se ama, sem consumo carnívoro, pois é com afeto.

Amor Pathé e Manía

As palavras seguintes, em grego, são pathé e manía. Outro dia li Ovídio em seu livro “A arte de amar” (está nas livrarias dos aeroportos), que de fato é a arte de evitar tornar-se amoroso. Isto porque para os antigos gregos e romanos, estar amoroso era uma doença. Sim, era uma possessão. “A arte de amar” de Ovídio é a arte de evitar cair neste estado de possessão psicológica; o que, na radicalidade proposta por ele, cria mais cinismo do que defesa contra os surtos de loucura apaixonada…!

Traduzimos a palavra pathé por paixão e ela está na origem da palavra patologia. É interessante verificar que, na tradição grega, algumas formas de amor são formas de possessão, de manía, como por exemplo: o maníaco-depressivo. A paixão faz-nos passar por estados extraordinários, maravilhosos, mas pode ser também um inferno, pelo ciúme que desencadeia.

Este amor não é de consumo, não é um amor devorador, mas é um amor de posse, de dependência e também, uma necessidade. Aqui, o amor não é um dom, é uma necessidade, uma solicitação. Há casos em que uma pessoa está namorando ou casada , mas sente a necessidade de uma outra pessoa, e até sente ciúmes se vê tal pessoa com alguém. E até comenta que ‘ama tal pessoa’. Às vezes, o que chamamos de amor não é senão ‘posse’, ‘dependência’ e ‘necessidade’. Este modo de “amor” pode gerar sofrimentos que podem até mesmo levar a pessoa a matar. Sim, assim conforme diz a voz do povo: “Matou por amor”.

Na cultura ocidental, pelo número de canções e de romances tristes que ouvimos e lemos, temos a impressão de que não existe amor feliz. Todas as histórias de amor são, ao mesmo tempo, histórias apaixonadas, possessivas, ciumentas e, freqüentemente, dolorosas. É que pathé se transforma em manía com muita facilidade e, por vezes, enlouquece quem já é predisposto ao vício em razão da carência.

Amor Éros

Depois vem a palavra Éros, que expressa não somente um amor de solicitação e necessidade, mas também de desejo. Éros era um jovem deus na mitologia grega. É ele que dá asas ao nosso “falo”, ao que em nós é “fálico”, à nossa necessidade e a nossa libido. Éros é já uma forma muito mais evoluída de amor. Não estamos mais no consumo que caracteriza a criança e o adolescente, mas começamos a viver uma sexualidade adulta. Um amor de uma pessoa por outra, desejando-a e maravilhando-se com ela.

Éros é o amor da beleza. Éros é o sexo alado, o sexo que encontra suas asas. Todavia, para os cristãos, a palavra Éros ficou muito próxima da palavra Pornéia. E isto tem gerado muitos problemas de natureza psicológica.

Amor Storgué

A palavra Storgué pode ser traduzida como ternura e harmonia, as quais são belas formas de falar de amor. É uma maneira de Harmonizar o seu ser com o ser do outro. Sim, porque os problemas entre os seres humanos são também problemas de “ritmo”. É uma experiência muito bela harmonizar sua respiração (seu Sopro), com a respiração do outro. Quando o amor atinge Storgué, em geral, ele está chegando à maturidade e à plenitude.

Esta harmonia entre duas pessoas tem como conseqüência uma cura para o ser. Por isto os antigos chineses diziam que da harmonia entre o homem e a mulher depende a harmonia do universo. Neste ponto não estamos mais ao nível da necessidade, da paixão, nem mesmo do desejo. Estamos no mundo da harmonia e, pouco a pouco, nos aproximamos da compaixão.

Amor Philia

Chegamos à palavra philia que é muito usada pelos cristãos. Daí vem o nome da cidade da Ásia menor: Filadélfia; cujo nome tem muito significado para os cristãos por ser o nome de uma das “igrejas do Apocalipse”, e, também, por ser a palavra da “fraternidade”. Esta palavra pode ser encontrada na Filo-sofia (amor à sabedoria) e em Filo-antropia (amor aos seres humanos). Em grego, distinguem-se diferentes formas de Philia.

 Philia Physiqué é o amor parental, a amizade entre parentes. O amor da mãe ou do pai pela sua criança e vice-versa. É, igualmente, o amor de irmãos. Este , às vezes, é um amor difícil, porque a inveja, a concorrência muitas vezes o destrói. Mas como alguém já disse: “…um irmão é um amigo que a natureza nos dá”. Esta é uma forma de relação muito preciosa e que deve ser mantida a todo custo; isto se não houver manipulação e tentativa de abuso e seqüestro emocional.

A Philia Zeiniqué é o amor da hospitalidade, o respeito aos outros, o respeito por aqueles a quem se recebe e acolhe. Temos aqui uma qualidade de relacionamento que é diferente das relações familiares. Não há a mesma familiaridade, mas pode haver a mesma profundidade e pode mesmo ser até mais profundo do que o que acontece entre irmãos de sangue. Podemos ter amigos com quem temos relações mais íntimas que com nossos irmãos, irmãs e pais.

A Philia Etairiqué é o verdadeiro amor-amizade entre dois Egos, duas pessoas. É o amor do dar e do receber, uma relação de confiança, ajuda, parceira. E como ensinam os livros de Provérbios e Eclesiastes, aquele que tem um amigo é mais rico que aquele que tem um reino. Porque podemos viver com este amigo o que temos de mais humano. Esta é a riqueza!

A Philia Erotiqué é também uma amizade, um amor com respeito, um amor que respeita a liberdade do outro. É uma espécie de amizade-amorosa. Não é muito fácil de entender porque não é paixão, não é dependência, mas há uma qualidade de ternura, de harmonia, de grande respeito e atração que faz dela uma amizade mais profunda. Aristóteles dizia: “Um Homem e uma Mulher podem se unir ao sentirem qualquer tipo de amor, mas só permanecerão unidos se a Philia Erotiqué for o sentimento mais profundo que um tem pelo outro”.

Às vezes misturamos as formas de amor. Quando Philia Physiqué se mistura com a Philia Erotiqué, há uma forma de incesto.

Quando Philia Zeiniqué se confunde com Philia Erotiqué esquece-se o respeito, à distância que se deve àquele a quem se recebe como um hóspede. Não podemos exigir do hospede uma intimidade que supõe um conhecimento maior, com partilha do seu espírito e do seu psiquismo, ou mesmo com manifestações ao nível do corpo.

Amor Énnoia

Há ainda outras palavras para designar o amor. A palavra Énnoia quer dizer dom, a doação e, às vezes, o devotamento. É uma qualidade de amor que manifesta uma grande generosidade do coração. É a libido, a energia vital que se manifesta ao nível do coração como desejo de se dar.

Amor Kháris

Kháris significa gratidão. Ter gratidão pela existência do outro. Agradecer ao outro porque ele existe e maravilhar-se pela sua existência. É um grande presente ser amado. Mas nós esquecemos desse amor que é pura gratidão, e, assim, faltamos com a gratidão. Vivemos na ingratidão. Somos como grandes bebês a quem tudo é devido, tudo é normal.

Amor Ágape

Finalmente, chegamos à última palavra do Vocabulário grego, Ágape.  Podemos traduzi-la como a graça ou gratuidade. Ambas têm a mesma etimologia. É esta gratuidade que faz a gente “amar por nada”, por causa de coisa alguma e sem explicação. É porque é!

Não sei se você já viveu a experiência de amar sem Ter nada em particular para amar na pessoa. Este “amar” não parte de nossa ‘carência’, mas sim de nossa ‘plenitude’. Sim, esse “amar” não é fruto de nossa sede, mas sim é filho de nossa fonte cheia e que não cessa de brotar…

Amor e Relação Sexual

Como vimos a palavra amor tem sentidos bem diferentes. Não é preciso opô-los uns aos outros. Há uma criança que tem fome e sede, um adolescente que pede para ser reconhecido, nomeado, chamado… etc. Isto porque não podemos esquecer o desejo que nos habita. Somos igualmente capazes de harmonia e de ternura, e seria uma lástima nos privarmos da amizade, da troca, do partilhar, da capacidade de doação e de perdão que habita em nós. E devemos fazer também a experiência do que há de graça, de gratidão e de gratuidade em nós, pois, se assim fizermos, ganhamos a experiência do amor de Deus em nosso interior.

Somos convidados a introduzir em nossa libido, em nossas experiências sexuais, em nossas paixões devoradoras, em nosso ciúme possessivo, a compaixão.

Introduzir a graça Ágape. Fazer isso não só pela nossa felicidade pessoal, mas também pela cura de nossa sexualidade. Se vivermos no nível da harmonia e ternura, alguma coisa se relaxará em nossa libido. As relações sexuais vão mudar. E o sexo não terá mais a mesma importância “famigerada”. Nesse caso, o importante será a relação do meu ser com o outro ser.

O amor é mistério. Por isto não conhecemos todas as suas matizes por livro, mas apenas vivendo. Só a experiência do amor nos permitirá visitar todas as nuances do amor. Assim, a relação sexual se tornará um local de evocação de Deus também. Porque o sexo é o local onde se encarna a vida. Por isso é algo sagrado, e não sujo; a menos que quem o pratique o faça a partir dos amores que não amam..

Infelizmente em nossa época o sexo tem se tornado um instrumento do mal e do pecado para muitos. Mas na sua origem ele é algo santo se é acompanhado por ternura e por amor que ama. Sim, se é acompanhado pelo coração e se o coração é acompanhado pela sabedoria. Neste instante o sexo se torna um ato profundamente humano e divino. Neste instante o sexo passa a ser o local da Aliança do homem com mulher e, vice-versa; e dos homens com Deus.

Estou escrevendo isto como quem escreve uma “bula” apenas para ver se, pela simplicidade, as pessoas discernem diferenciações tão importantes quanto às acima feitas; posto que é por misturá-las e não entendê-las que sofremos e fazemos sofrer sem necessidade.

Também, vendo tais níveis de amor, dá pra ver que a maioria de nós ainda está na fase primária: apenas querendo “devorar”.

O objetivo de todo amor é crescer até chegar a ser Graça! No caso do homem e da mulher, isto não mata Eros, mas apenas o fortalece. No livro de Cantares de Salomão a mulher é amada como “querida minha, pomba minha, imaculada minha e minha irmã”. Ou seja: todas as formas de amar estão ali equilibradas!

Leia tudo com calma, olhe para o seu próprio coração, e, assim, discirna seus próprios amores; posto que nada é tão opressivo quanto jurar amar com um tipo de amor que não existe em nós; especialmente quando se trata de relacionamento conjugal.

Desse modo, não fale jamais do amor que não existe em você, e não o proponha como relacionamento se ele não cresceu em sua alma ainda.

Evitar prometer amores que não existem em nós é, no mínimo, sabedoria e saúde para a alma. Pois nada é mais opressivo do que amar sem amor, ou sem a forma de amor demandada.

Pense nisto! Nele, Que é Amor, todo Amor, e, por isto, é seu Criador e Inventor em nós…

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