Entrevista com Cláudio Azevedo

Caderno Viva: Poderia nos esclarecer em que momento o médico (em geral), com toda formação técnica e científica, passou a se interessar pela dimensão espiritual?

CR: Desde sempre, já que Hipócrates considerava a doença como um desequilíbrio entre as influências ambientais, os modos de vida e os vários componentes da natureza humana, sendo o processo de cura algo que surgia das profundezas do Ser. Aos profissionais curadores caberia ajudar, assistir e cuidar dessas forças naturais, dentro de um rigoroso código de ética, código esse famoso por se constituir o juramento de todo médico.

 



Um divisor de águas foi o relatório Flexner, publicado em 1.910 por encomenda da American Medical Association para dar base científica ao ensino médico. Se por um lado impulsionou as pesquisas e estimulou as especializações, trazendo o extraordinário avanço tecnológico hoje presente nas ciências médicas, o modelo flexneriano tornou o ensino totalmente fragmentado e fracionado, num modelo que enfatiza a importância das super-especializações e do tratamento hospitalar tecnológico de ponta, focado apenas no aspecto biológico das doenças.

Mas, na mesma época, surgia, na década de 1920, uma nova forma de ver o mundo, onde a integração de todas as partes se tornava evidente. Descobria-se que todas as partículas individuais que compunham um átomo individual, não eram subpartículas tão individuais assim, mas não existiam umas sem as outras. Estavam unidas num todo universal: nascia a física quântica.

No bojo dos movimentos sociais e com o advento da medicina preventiva nas décadas de 1.960-1.970, ocorreram duas conferências mundiais em educação médica (1.988 e 1.993 em Edimburgo) e cinco sobre promoção de saúde (1.986 em Ottawa, 1.988 em Adelaide, 1.991 em Sundsvall, 1.997 em Jacarta e 2.000 no México). No Brasil, a VIII Conferência Nacional de Saúde (1.987), o movimento da Reforma Sanitária, a nova Constituição Brasileira (1.988) e a aprovação de novas diretrizes curriculares para os cursos universitários da área de saúde pelo Conselho Nacional de Educação em 2.001, mudaram o cenário nacional com vistas a promover a saúde integral do ser humano, valorizando prioritariamente as necessidades de saúde da população, com ênfase na ação preventiva.

Entende-se saúde integral, pelo conceito da Organização Mundial de Saúde, como um estado de bem-estar psicossomático, social, ambiental e cósmico. No sentido de reencontrar com as bases hipocráticas originais da prática médica (um cuidar físico, emocional, mental, social e espiritual), propusemos esse resgate em nossa Faculdade, que, longe de ser mágico ou místico, é atual, científico e amplamente pesquisado. Nessa abordagem, a dimensão espiritual seria a dimensão da aceitação do desconhecido, do inesperado, do imprevisível, com abertura, tolerância e diálogo.

 

Caderno Viva: Sabemos que os profissionais da medicina que se interessam por esse tipo de estudos são ainda um tanto quanto discriminados pelos colegas mais acadêmicos ou científicos. Esse quadro já está mudando?

CR: Com certeza. Pudemos constatar isso pela aceitação sem resistências, por parte da Coordenação do Departamento de Morfologia da Faculdade de Medicina e da própria Coordenação da Faculdade, de um modelo de disciplina optativa versando sobre o tema “Medicina e Espiritualidade”. Mais fantástica ainda foi a disponibilidade demonstrada por vários professores da própria faculdade, para proferir aulas-palestras dentro do tema, e a receptividade dos estudantes, bem como suas palavras de avaliação escritas no formulário distribuído após o final de cada disciplina.

 

Caderno Viva: Conte-nos um pouco do processo (histórico) que levou a aceitação e inclusão da disciplina “Medicina e Espiritualidade” nos currículos da faculdade de Medicina da UFC. Quais outras faculdades (do Brasil e do mundo) já tiveram também essa iniciativa e abertura?

CR: Bem, a partir da aprovação das novas diretrizes curriculares para os cursos universitários da área de saúde, pelo Conselho Nacional de Educação em 2.001, abriu-se uma brecha para o oferecimento de disciplinas optativas com esse enfoque, e o mesmo já estava na mente da professora Eliane Oliveira, vice-diretora do Departamento de Morfologia. Num encontro casual entre ela, a Dra. Delzilene Macedo, a Dra. Irami Tavares e duas amigas psicólogas, a Dra. Aparecida Viana e Dra. Lucy Frangipani, a idéia tomou corpo e, cinco dias depois, eu e a Dra. Delzilene já apresentamos um primeiro esboço de projeto à professora Eliane. Com o projeto aperfeiçoado e enriquecido com professores da própria faculdade, e professores voluntários de fora da mesma, a disciplina já estava sendo oferecida aos estudantes no final do mesmo semestre (2004-1).

Foi a primeira faculdade do Brasil a adotar uma disciplina em sua grade curricular com esse tema, embora diversas faculdades em São Paulo, como no mundo todo, já estudem temas relacionados com a espiritualidade e com o manejo de energias sutis, mentais e emocionais na gênese e na cura de doenças. Um sucesso de repercussão tanto local como a nível nacional que ainda reverbera Brasil afora. A nível internacional, por exemplo, a University of Duke é uma das pioneiras em pesquisas sobre os efeitos da fé sobre as pessoas e inúmeras outras já têm “Medicina e Espiritualidade” como disciplina obrigatória no currículo.

Pesquisas sobre o efeito da meditação e da oração na promoção da saúde já são comuns nos Estados Unidos. O estresse oxidativo (a ação dos radicais livres) influenciando o surgimento de doenças, a sua correlação com o estresse mental e emocional, e a psique influenciando no surgimento e na recidiva de doenças como câncer de mama e melanoma maligno, por exemplo, já são considerados fato científico com centenas de trabalhos científicos publicados no mundo todo. Avançam pesquisas sobre o que Richard Gerber denominou medicina vibracional, Herbert Benson chamou de medicina espiritual e Deepak Chopra denominou cura quântica. Quem ainda não despertou para o tema, está à margem do que já se está comprovando cientificamente: tratar alguém não se limita apenas a tratar o órgão doente, mas inclui todas as dimensões do que denominamos Ser humano. Tratar unicamente uma delas não contemplará o todo, o mistério que é o Ser.

Apesar de tudo isso, esses estudos ainda são vistos como assuntos menores, sem destaque ou respeito acadêmico, inclusive nos EUA, pois não há trabalhos nessa temática levadas a efeito por nenhum grande grupo de pesquisa de ponta.

 

Caderno Viva: Quem e como foi montado o programa da disciplina? Que tipo de abordagem é feita? É uma disciplina básica ou aprofunda questões filosóficas importantes para o médico? 

CR: A disciplina é oferecida como opcional para os estudantes que estão prestes a entrar no internato. Na disciplina estuda-se a relação Médico-Paciente, tecem-se considerações sobre o novo Paradigma (advindo após as descobertas na física quântica), refletindo sobre a visão de ser humano integral e multidimensional, e que somos em essência seres espirituais, interligados uns com os outros, com o meio ambiente e com o cosmos. Além de dar noções básicas sobre esse novo paradigma, ele é utilizado para a reflexão acerca de alguns temas como: “saúde e fé”, “oncologia e espiritualidade”, “doença, cura e espiritualidade”, psiconeuroimunologia, meditação, autocuidado, tanatologia  e experiências de quase-morte. 

 

Caderno Viva: A seu ver, que expectativa de avanços, no tocante ao humanitarismo, pode-se esperar do profissional que está se preparando hoje, com tantos problemas na área da saúde?

CR: Hoje vivemos um momento bastante significativo em Fortaleza através da pessoa do nosso secretário municipal de saúde Dr. Luiz Odorico. Exímio conhecedor do SUS, considerado pelos estudiosos o melhor sistema de saúde do mundo (em implantação no Brasil e com inúmeras dificuldades operacionais ainda sendo resolvidas), o secretário defende a visão de que o tratamento médico tem que ser totalmente modificado para cuidar do Ser integralmente e não apenas tratar as suas doenças já instaladas. E seus esforços tem sido amplamente direcionados à essa mudança de visão, buscando uma humanização da saúde e uma priorização do modelo preventivo ao tecnológico-curativo.

Essa posição governamental está condizente com o que existe de mais atual no tema ciência e espiritualidade. Temos que aprender a cuidar do paciente, já que não somos onipotentes e não conseguimos curar a todos. É infinitamente mais importante cuidar de nossos pacientes, olhar no olho deles, dizer as palavras certas e fazer o gesto certo, do que apenas extirpar seus órgãos doentes ou matar as suas células sãs junto com suas células doentes (câncer) e/ou estranhas (infecções).

 

Caderno Viva: Que tipo de contribuição se espera estar dando aos estudantes ao ampliar sua visão para outras questões mais “sutis” ou menos “palpáveis”?

CR: Não apenas aos estudantes de medicina, mas a todos os seres humanos. Fundamentalmente, seria abrir-lhes os olhos à existência de uma teia de inter-relações existente na Natureza. Abrir os olhos de todos de que a nossa saúde física, emocional e mental depende de nós mesmos, de nossos hábitos e vícios mentais, emocionais e físicos. Que tudo o que fazemos repercute no Universo todo, que estamos ligados a tudo e a todos. A ciência da meteorologia já sabe, através da teoria da complexidade, que um bater de asas de uma borboleta aqui pode causar mudanças climáticas no outro lado do mundo. O que será que uma destruição ambiental pode fazer? Quando eu me destruo com meus maus hábitos alimentares, com meus maus hábitos emocionais e apegos, o que estarei causando ao mundo ao meu redor, familiares, amigos, entes queridos, etc.? Como estou contribuindo, com minhas crenças e atitudes para o caos em que se encontra o planeta? Quantas árvores derrubo por ano e jogo no lixo, com o meu gasto de papel (guardanapos, papel higiênico, cadernos, impressões, etc.)? Quanta água gasto por dia quando escovo os dentes, tomo banho ou lavo uma louça ou meu carro? Quanto lixo orgânico (restos alimentares, etc.), inorgânico (copos e materiais plásticos descartáveis) e tóxico (pilhas, etc.) produzo por ano? Nossos hábitos, de todos sem exceção, estão causando a doença planetária que estamos presenciando, mas isso é muito sutil e como, no dia-a-dia, não é palpável seguimos adiante em nossa vida “normal” sem fazer nada para modificá-la.

 

Caderno Viva: A experiência de divulgação da espiritualidade para os médicos, até o momento, obteve algum tipo de fruto? Ou, a seu ver, ainda é um processo em fase germinativa, que só se tornará visível em um futuro um pouco mais distante?

CR: Vejo e sinto que há uma busca endêmica pela espiritualidade se manifestando, não apenas entre os médicos, mas por todos. Apesar de o novo paradigma quântico, que está aproximando ciência e espiritualidade, estar presente entre nós desde a década de 1920, as faculdades de física apresentam essa disciplina, quando muito, apenas como uma disciplina opcional sem o enfoque filosófico e transformador que está embutido nela. Filmes como “What The Bleep do We Know”, lançado no ano passado nos EUA, e em cadeia nacional em novembro de 2005, não estão na mídia e a crítica “normal” não os entende, e, assim, esses conceitos ficam restritos a alguns cientistas e a círculos fechados de estudiosos e espiritualistas. Acho que estamos apenas presenciando a semente desabrochar…

 

Caderno Viva: O que o levou a criar um site sobre essa temática? Conte-nos um pouco do projeto Órion. 

CR: Teve um momento em minha vida, há quase dez anos atrás, em que minha busca se voltou, de forma científica, ao mundo espiritual. Buscava elos entre todas as tradições espirituais e entre elas e o mundo científico. Encontrei desde a literatura deixada por homens santos como os indianos Paramahansa Yogananda e Sathya Sai Baba, padres católicos como Thomas de Kempis, William Johnston e Thomas Merton, até a literatura teosófica e de cientistas como Fritjof Capra, Amit Goswami. O “projeto Órion”, como você chama, nasceu de uma necessidade íntima de passar adiante tudo o que eu estava aprendendo, de todos os “links” que eu estava fazendo e descobrindo, unindo filosofia, religião e ciência. Assim, veio a idéia de organizar meus resumos de estudo numa forma literária, para os que gostam de ler livros, e na forma de páginas na Internet, para aqueles que gostam de navegar. No site (www.orion.med.br) estão, na íntegra, os volumes 1 e 2 de “Órion: Filosofia, Religião e Ciência” para pesquisa, e inúmeros artigos sobre o novo paradigma científico, psicologia transpessoal, yoga e meditação, filosofia perene e religiões. Posteriormente, o site se transformou em um portal de entrada para inúmeros outros sites do gênero, além de divulgar eventos programados em Fortaleza nessa linha e hospedar o site da UNIPAZ – Ceará e do Colégio Internacional de Terapeutas (em Fortaleza), instituição diretamente vinculada à própria UNIPAZ.

 

Caderno Viva: No site, o link com escritores, psicólogos, terapeutas, pensadores busca o conhecimento da ciência, religião e filosofia de forma a integrá-las holísticamente?

CR: Exatamente. O novo passo nesse projeto é a veiculação de um informativo escrito, que será distribuído gratuitamente em Fortaleza. Seria uma versão trimestral, em miniatura, do Portal Órion da Internet, com artigos de escritores, psicólogos, terapeutas, cientistas e filósofos sobre essa nossa época de mudança (ou seria mudança de época?) e a divulgação de eventos nessas linhas que estão programados, principalmente, em Fortaleza. Estamos na fase de elaboração do mesmo e em busca de colaboradores, principalmente financeiros, já que o informativo não tem fins lucrativos, mas exclusivamente informativo.

 

Caderno Viva: A seu ver, em que a visão holística está contribuindo para a modificação de nossa realidade atual?

CR: Holístico vem de holos, palavra grega que denota inteireza e totalidade. E é exatamente disso de que estamos falando: ver o homem como um todo e não recortado em partes descontínuas e desconectadas entre si. É ver o homem como um ser inserido num ambiente sócio-familiar e inseparável dele. É ver o homem inserido num meio-ambiente, interagindo com ele e sendo modificado por ele. É ver o homem como um Ser cósmico, pequeno-grande habitante no universo. Do ponto de vista quântico tudo o que existe faz parte de uma realidade una; tudo o que existe é impermanente e está interligado. Citando Roberto Crema, vice-reitor da UNIPAZ: É preciso escolher entre dois caminhos: o do dinossauro ou o do mutante. Os resistentes à transmutação, adeptos da esclerose do passado e do conhecido, novamente serão soterrados, excluindo-se da nova civilização. Aos mutantes da consciência será destinada a herança evolutiva da humanidade”.

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