Entrevista com Roberto Crema II

 

Roberto CremaEstimados amigos e amigas;

consegui através do Roberto Crema uma entrevista que ele concedeu para o 22º Conbrat. O mestre da sabedoria poética transdiciplinar nos fala de sua permanência na França e de seus novos livros que serão lançados em breve, entre outros assuntos pertinentes a nossa reflexão.

Para ler e refletir!

Abraços;

Flávio Sobreiro.

 
1 – Quais são as novidades na área de saúde psíquica, na França?

Roberto Crema: O fantasma de Descartes é ainda muito forte e atuante no Velho Mundo, de modo especial na França. Assim, o que predomina, ainda, são as abordagens analíticas convencionais do paradigma racionalista e neopositivista. Rompendo esta resistência, entretanto, destacam-se e nos inspiram pesquisas de ponta, sobretudo na área da transdisciplinaridade – a partir de grandes maestrias como a do Basarab Nicolescu, Edgard Morin, Weil, Randon, Dallaporta, Berger, Biès, Barbier, Bois, Leloup, entre muitos outros – que buscam conciliar ciência à consciência, o objeto ao sujeito, a sensação à intuição, a razão ao coração.

A Universidade Internacional da Paz, Unipaz, foi sonhada, em Paris, através de três grandes terapeutas: o Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Monique-Thoenig. O solo fértil no qual ela se enraizou e floresceu, entretanto, foi no Brasil, o Novo Mundo, mais aberto, flexível, integrativo, uma das pátrias mais fecundas do novo paradigma na área da saúde integral. A partir do Brasil, também, está se expandindo, de forma muito especial, o Colégio Internacional dos Terapeutas, que congrega agentes de saúde formados na abordagem transdisciplinar da realidade, a partir de um olhar aberto, uma escuta inclusiva, centrados na arte de um cuidado integral. E, mais recentemente, o Festival Mundial da Paz, que terá a sua segunda versão em Goiânia, de 4 a 8 de setembro próximo.

2 – Li o seu texto e gostei muito. Pelo seu pensamento, o século 21 terá de conciliar o espiritual predominante na Idade Média ao cartesiano material que imperou nos séculos 19 e 20. O senhor já identifica alguma tendência forte neste sentido?

RC: De fato, o paradigma medieval, alicerçado no um da unidade e da mística, quando se esgotou, através do excesso de Symbolos – do fator de união e de religação -, nos conduziu a um obscurantismo onde a ciência e a mente objetiva era reprimida em nome de Deus. Na dialética histórica, surgiu o paradigma da modernidade, centrado no dois da dualidade analítica que, quando esgotado, por um excesso de Diabolos – do fator que divide e diferencia -, nos levou a uma crise planetária de fragmentação, dissociação e desvinculação, onde a dimensão da subjetividade e do sagrado passou a ser reprimida pela ciência. Como afirmavam os sábios gregos, nada em excesso! Para se compreender os excessos de um paradigma centrado exclusivamente na unidade, eu recomendo que se visite o Museu da Tortura da Inquisição, seja em Lima, Carcassone, Amsterdã ou em alguma cidade medieval da Toscana. Quanto aos horrores de um excesso de dualidade, sugiro se visitar um campo de concentração, como Auschwitz…

Felizmente, das mentes mais inquietas, vastas e penetrantes, está surgindo um paradigma da integração, centrado no três, que contêm as virtudes do um e do dois, já que alia Symbolos a Diabolos, a inteligência masculina com a feminina, o hemisfério direito com o esquerdo, o Yin com o Yang, a síntese com a análise. A metáfora desta arte do Três é o corpo caloso, que integra os dois hemisférios cerebrais, o que os antigos denominavam de terceira visão ou de Chifre do Unicórnio. Outro símbolo inspirador é o do TAO, com sua função de integração e interpenetração dos contrários – que promove a transcendência dos opostos, de forma integrada e harmoniosa. Trata-se do paradigma transdisciplinar holístico. Carl Sagan afirmava que o futuro da educação depende do corpo caloso. Penso que se trata de algo ainda mais amplo e dramático: trata-se do futuro das novas gerações e da própria humanidade.

3 – Os intermináveis anos de divã da análise freudiana estariam com seus dias cada vez mais contados?

RC: Freud trouxe a sua grande contribuição, que permanecerá com o seu alcance e a sua limitação, naturalmente. Suas metáforas fundamentadas na termodinâmica, ainda são válidas; entretanto, as metáforas da física quântica, nas quais Jung se apoiou, são as mais atualizadas e dotadas de um grande potencial criativo, neste momento da evolução da consciência.

Maslow destacava a ocorrência de quatro revoluções ou forças, na psicologia contemporânea. A primeira e a segunda surgiram, praticamente, ao mesmo tempo: a psicanálise freudiana, que desvelou o inconsciente, centrada no princípio do prazer, e a abordagem comportamental, inspirada em Pavlov, centrada nos mecanismos reflexológicos. A terceira foi o movimento humanístico, que colocou sua ênfase na saúde e no potencial de autodesenvolvimento e de auto-regulação do ser humano. O próprio Maslow afirmava que a humanística foi uma dinâmica de transição, para uma quarta força, trans-humana, centrada no cosmo: a abordagem transpessoal, inspirada sobretudo no estudo dos estados de consciência ampliados e transcendentes. O que tenho afirmado, há mais de uma década, é que a quarta força também foi de transição, um movimento compensatório, após um século de um enfoque centrado exclusivamente na dimensão pessoal, no Ocidente. A grande novidade é uma quinta força, que coloca sua ênfase, ao mesmo tempo, no pessoal e no transpessoal, no ego e no Self, no imanente e no transcendente. Enfim, nas raízes e nas asas, uma força essencialmente integrativa, característica do movimento transdisciplinar holístico.

Insisto que a grande arte é a da integração, pois estas forças não são antagônicas; são complementares.

Por outro lado, considero que estamos ainda nos primórdios de uma pesquisa mais vasta e completa sobre o potencial humano. Quando investirmos no terreno fértil da interioridade anímica o que temos investido no mundo externo da matéria, inauguraremos um novo horizonte de Ser e de existir no mundo. Gosto mesmo de imaginar que o Ser Humano será a maior descoberta do Século XXI. Caso contrário, haverá Século XXI para o ser humano?…

4 – De que forma a crise econômica global está afetando o setor Psi: tanto para os profissionais quanto para os clientes, que acaba sem poder se tratar justamente quando mais precisam?

RC: Esta é uma questão muito complexa, que prefiro responder de um ponto de vista global, paradigmático.

Na minha leitura, a crise econômica que vivemos é apenas mais um sintoma de um paradigma civilizatório esgotado, como a depredação ambiental, a violência crescente, a corrupção generalizada, a falência da ética, a violação das crianças… O sintoma é uma denúncia de desvio, de contradição, que precisa ser escutado e interpretado, antes de ser eliminado, naturalmente.

Na raiz deste flagelo encontra-se uma doença, que pode ser fatal, que Leloup, Weil e eu denominamos de normose, a patologia da normalidade. Esta enfermidade acontece quando o sistema onde nos encontramos encontra-se, dominantemente, mórbido e desequilibrado, desconectado da consciência, da amorosidade e do cuidado. Neste caso, o normótico é uma pessoa adaptada ao contexto doente no qual habita. Por outro lado, esta enfermidade é caracterizada pela estagnação evolutiva. Somos seres inacabados e o projeto de nos tornarmos plenamente humanos solicita um empenho no processo de individuação, de atualização do potencial de saúde e plenitude inerente a cada ser humano. É o que traduzo afirmando que dá muito trabalho ser realmente humano! Neste contexto, uma pessoa autenticamente saudável é aquela que sofre de um desajustamento lúcido e consciente!…

A propósito, lembro-me de uma estória que aprendi com meu amigo, o rabino Bonder: Um velho rabino reuniu a sua comunidade e disse: Tenho uma boa e uma má notícia. A má notícia é que o teto da nossa sinagoga está para desabar, o que nos custará 15.000 dólares. A boa notícia é que temos os recursos para empreender a reconstrução! Aliviado, alguém indaga ao sábio: E onde estão tais recursos, senhor? Ao que ele responde: Nos bolsos de vocês!

A má notícia é bem evidente e fala desta crise planetária que estamos atravessando. Entretanto, não podemos nos esquecer da boa notícia: nós temos os recursos, em nossas almas, em nossos corações, em nossas consciências, para empreender o processo de reconstrução!…

5 – O que o senhor acha de reunir em um mesmo encontro diferentes linhas – nem sempre cordatas – da área de Psicologia, como vai acontecer no 22º Conbrat?

RC: Muito salutar e criativo! Trata-se de transcender o encontro das patotinhas, dos clubes da mesmice, da entropia no aprisionamento do conhecido e familiar. Foi o que realizamos já em 1981, em Brasília: um congresso de AT plural, sem medo dos discursos diferenciados, da riqueza da diversidade…

Tenho sido um operário, há 22 anos, de uma Unipaz, que é um espaço de encontro das diversas ciências, filosofias, artes e espiritualidades, neste desafio imperativo, para o qual a UNESCO tem nos convocado desde a Declaração de Veneza, de 1986, que é a abordagem transdisciplinar da realidade. Nada, nem mesmo uma ameba, pode ser esgotada a partir de um único ponto de vista. A maturidade psíquica implica em transcender o medo da diferença… Apenas uma pessoa insegura teme o desconhecido, o discurso do outro. Quando superamos esta imaturidade, a diferença passa a ser vivenciada de forma alegre e sinergética, não na ordem do antagonismo e sim na da complementaridade. Como dizem os franceses, Viva a diferença!

6 – Quando e que circunstâncias o levaram a se radicar em Paris? Quais seriam as diferenças fundamentais entre trabalhar no Brasil e na França?

RC: Compreendo, muito claramente, que encerrei uma etapa de minha existência, individual e profissional. Nas minhas obras publicadas, há uma trilogia de livros centrada numa arte de cuidar através da escola aberta do olhar e da escuta que, na minha percepção, representa a realização desta intrigante e ampla aventura, como terapeuta e educador: Análise Transacional Centrada na Pessoa… e mais além (Àgora, 1984); Saúde e Plenitude – Um Caminho para o Ser (Summus, 1995) e Antigos e Novos Terapeutas – abordagem transdisciplinar em terapia (Vozes, 2002). O que interliga os três é o que denomino de Livro de Anamaria, um registro muito raro e vasto de um itinerário iniciático terapêutico, que demonstra o alcance vasto e inusitado da alquimia do Encontro.

Por outro lado, meus filhos e filha estão voando, belamente, com suas próprias asas, uma alegria para a minha alma. Assim, resolvi radicar-me na França, com a minha esposa Mércia, por alguns anos, para viver um tempo de reciclagem e de renovação, uma preparação para outra fase, que já está sendo trilhada, pois não há férias quando se trata da Missão!… Esta é a função do tempo sabático, da pausa que nos abençoa e liberta. Como afirmava Fernando Pessoa, Deus é um grande intervalo…

Sinto uma grande conexão com a França, para a qual a Califórnia, berço das abordagens humanísticas e transpessoais, me preparou. Tive o privilégio de caminhar, lado a lado, por quase três décadas, com o querido e perene Pierre Weil, que fez a passagem desta existência em outubro passado. Ele sempre estabeleceu uma ponte, criativa e heurística, entre o Brasil e a França. Pretendo contribuir para que esta rica sinergia prossiga, naturalmente.

7 – Qual ou quais considera os seus livros mais importantes? Há previsão de algum novo lançamento?

RC: Além dos citados acima, destaco: Introdução à Visão Holística (Summus), Rumo à Nova Transdisciplinaridade – em co-autoria com Pierre Weil e Ubiratan D’Ambrosio (Summus), O Espírito na Saúde – em co-autoria com o Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Leonardo Boff (Vozes), Normose, a patologia da normalidade – em co-autoria com o Pierre Weil e Jean-Yves Leloup e Pedagogia Iniciática – Uma Escola de Liderança (Vozes).

No já citado Festival Mundial da Paz, serão lançados o Mensagens do Deserto e Mensagens da Luz, o último em co-autoria com o Pierre Weil e Amyr Amiden, pela editora Diálogos do Ser.

Roberto Crema: Psicólogo e Antropólogo do Colégio Internacional dos Terapeutas – CIT, analista transacional didata, criador do enfoque da síntese transacional, consultor em abordagem transdisciplinar holística e ecologia do Ser. Foi o coordenador geral do I Congresso Holístico Internacional (1987) e implementador da Formação Holística de Base, no Brasil (1989). Membro honorário da Associação Luso Brasileira de Transpessoal – ALUBRAT, Fellowship da Findhorn Foundation – Escócia, coordenador do CIT-Brasil, Reitor da Rede Unipaz. Autor de diversos livros e atualmente está residindo na França.

 

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