Entrevista com Roberto Crema

Brumadinho, Minas Gerais,  às 13 h e 30m.

 

1 – Retrospectivamente, como você vê o processo de criação da UNIPAZ?

Roberto CremaNa realidade, para mim eu digo que  são 21 anos pois me coube o privilégio de ser o coordenador geral do I Congresso Holístico Internacional, I CHI, fundamentado na abordagem transdisciplinar da realidade.   O Pierre Weil foi o seu Presidente de Honra, um evento histórico marcante, realizado apenas um ano depois da Declaração de Veneza, da Unesco (1986), importante documento que nos convoca à pesquisa transdisciplinar.

 

 

Eis a história: Era junho de 1986 e o Pierre tinha recém retornado de um retiro de três anos e três meses de duração, num lamastério tibetano na França. Quando nos reencontramos, em Brasília, eu o convidei para  presidir um congresso humanístico e transpessoal, um sonho que acalentei durante toda a sua ausência. Ele respondeu que era preciso avançar paradigmaticamente: – Façamos um congresso holístico! De imediato eu acolhi sua proposta e, no espaço incrível de apenas nove meses, realizamos o I CHI, em março de 1987. Durante esta experiência fascinante, iniciei-me na tarefa transdisciplinar, que implica na abertura para uma permanente dialogicidade entre a ciência, a filosofia, a arte e a Tradição espiritual. Este evento, com caráter claramente iniciático, transformou a existência de centenas de pessoas e alavancou a fundação da Cidade da Paz, mantenedora da Universidade Holística Internacional da Paz, que hoje é a Rede Unipaz. O então governador do DF, José Aparecido de Oliveira, que aceitou o convite para participar da abertura do congresso, ao escutar representantes tão notáveis dos diversos segmentos epistemológicos, como André Chouraqui, Jean-Yves Leloup, Monique-Thoenig, Michel Random, Stanley Krippner, Ubiratan D'Ambrosio, Vera Kohn, o próprio Pierre e muitos outros, sentou-se numa cadeira e participou do mesmo. Quando eu coordenava o simpósio de encerramento, ele se fez anunciar e tomou seu lugar com os conferencistas. No final, fez uma brilhante síntese do que tinha escutado e disse, para nossa total perplexidade: – Este congresso não pode acabar; fundemos uma universidade holística com o Pierre Weil como seu Reitor!

Relato, sinteticamente, esta experiência em meu livro, Introdução à Visão Holística (Summus, 1989). Este foi um evento redefinidor em minha existência e sinto-me muito grato a esses 21 anos em que tenho sido um entusiasmado operário desse verdadeiro canteiro de obras, que tem por missão edificar os fundamentos de uma nova cosmovisão  transdisciplinar holística, que religa razão ao coração, sensação à intuição, efetividade à afetividade, masculino ao feminino, análise à síntese, Ocidente ao Oriente.

No momento, estamos colhendo muitos e nutritivos frutos. Partimos de uma visão de ecologia profunda, que tem início no espaço interior da ecologia individual, se estende para a social até a ecologia planetária. Assim, desenvolvemos programas e projetos educativos, no nível de sensibilização, formação, pós-formação e pesquisa, centrados em todas estas ecologias, através dos quais milhares de pessoas, das mais diversas competências e formações, foram tocadas e transformadas. Enfim, desenvolvemos uma cultura transdisciplinar holística na prática, além de meras especulações teóricas.

Tive a grata oportunidade de implementar a Formação Holística de Base, na Unipaz matriz de Brasília, em 1989, uma escola de liderança holocentrada. Seus mais notáveis participantes expandiram a nossa ação para praticamente todo o Brasil, através da constituição de cerca de vinte unidades da Unipaz, em cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Campinas, Fortaleza, Curitiba, Florianópolis e tantas outras. Transpusemos as fronteiras nacionais e, atualmente, temos unidades da Unipaz na Argentina, Portugal, França, Bélgica, Reino Unido e Canadá. E as solicitações para a implementação de novas unidades não cessam de nos chegar.

2 – Como você avalia a criação da Unipaz no decorrer dessas duas décadas?

Na minha avaliação, a Unipaz foi uma resposta inteligente e efetiva à crise de fragmentação, de dissociação e de desvinculação que assola a humanidade, ameaçando de extermínio a humanidade e a própria biosfera. Portanto, é um organismo mutante, cuja missão é desenvolver e irradiar a nova consciência holística, através de uma visão integrativa, que acolhe o binômio parte-e-todo e alia a dimensão objetiva à subjetiva. Nossa tarefa é a de desenvolver, juntamente com outros organismos similares que surgem em todo o planeta, uma massa crítica que possa nos conduzir a um ponto nodal que propicie um salto quântico na consciência humana.

Por outro lado, desde os primórdios de nossa existência, sabemos que há uma inteligência maior que nos transcende, conduz e transforma, quando nossos egos colocam-se a serviço do Self, do Ser que nos faz ser…   Considero um grande privilégio, pelo qual sempre agradeço, ter participado desde a pré-história desta aventura da Unipaz. O nosso salário é qualitativo, ou seja, evolutivo. Conviver, no cotidiano, com representantes da ciência, da filosofia, da arte e da tradição espiritual nos leva a um estado intensificado de aprendizagem e evolução. Isto compensa enormemente as agruras e desafios do nosso labor e louvor cotidianos.

3 –  A Unipaz tem atingido os objetivos pelos quais ela foi criada?

Creio que sim, muito além do que podíamos imaginar a vinte anos. Não conheço nenhuma ONG que tenha produzido tantos frutos e se expandido tanto, em relativamente tão pouco tempo e com tão poucos recursos. Creio que estamos numa nova fase onde, sobretudo a força jovem, assumirá um papel fundamental no que gosto de denominar de UNIPAZ+20!

4 – E quais os desafios que os fundadores da Unipaz encontraram na expansão do movimento holístico no Brasil?

Quando nos colocamos como operários a serviço do novo, os desafios são múltiplos e acontecem em diversos níveis, dos mais explícitos aos mais implícitos e sutis. Cada passo adiante traz também obstáculos inusitados. Como o criador da terapia iniciática, Graf-Durckheim, afirmava insistentemente, na experiência rumo ao Ser é inevitável o confronto com o mundo antagônico, que ele denominava de inimigo; uma força que busca contrariar e destruir o processo de individuação rumo ao Self e a uma plenitude possível. Esta adversidade é um sinal mesmo de que o caminho evolutivo é autêntico. São provações que afastam os despreparados e acabam contribuindo para, por assim dizer, temperar o aço do Ser. Quando ousamos seguir por trilhas renovadas e criativas, não há pegadas; são nossos passos que inventam o caminho.

No início, nos momentos mais difíceis, pensávamos que alguns consultores poderiam nos ajudar. De fato, muitos notáveis consultores estiveram conosco para, no final de algum tempo, reconhecerem os seus limites. Progressivamente nos demos conta de que, como afirma uma profecia Hopi, Nós somos aqueles a quem estamos esperando! Os que persistimos nestas veredas estreitas, aprendemos o sentido da palavra humildade: ser do tamanho que somos, nem maiores e nem menores! No passo a passo vamos aprendendo a confiar, fiar com; a temer menos e amar mais, extraindo dos desafios o frescor e a dádiva dos sentidos que eles nos oferecem.

Todos os que trabalham com a dinâmica das polaridades sabemos que, pela lei da enantiodromia, que Lao-Tsé, Heráclito e, mais recentemente, Jung, tão bem conheciam: cada coisa atrai o seu oposto. O dia nasce no meio da noite, a noite surge no auge do dia. Falando na linguagem taoista, quando Yang atinge seu maior vigor, torna-se Yin; no auge do Yin, surge o Yang. Este é um dos segredos do I Ching e também do Tao-Te-King e o que vivenciaremos em qualquer caminho iniciático. Assim, os obstáculos fazem parte da própria caminhada. No caminho rumo à utopia do amor e da paz, necessitamos atravessar o vale das sombras, do medo e da estagnação. No final, agradeceremos sobretudo às adversidades pois são especialmente estes confrontos, às vezes bastante dilacerantes, que nos levam além de nossos limites. É por isso que os grandes mestres sempre nos convocaram a aprender  a amar o inimigo. Não apenas tolerá-lo, mas a amá-lo. Quando você é capaz de amar o inimigo, já não existe mais nenhum inimigo!… Este é o mais difícil aprendizado e o mais heróico dos feitos, fruto dos nossos passos nas trilhas com coração!

Por outro lado, é imperativo transgredir o que Leloup, Weil e eu denominamos de normose, a patologia da normalidade, que se traduz pela adaptação conformista a um contexto dominantemente desequilibrado e patológico e por um processo de estagnação evolutiva. Quando não compactuamos com esta doença do rebanho, tudo se torna bastante árduo, principalmente quando se trata de recursos econômicos. Como não entramos em esquemas viciados, de um sistema corrompido em grande escala, temos que tirar água viva de rocha bruta. De algum modo, buscamos transcender o sistema convencional, com ele dialogando, mantendo os seus aspectos positivos, ousando ir além.

Então, os obstáculos materiais são sempre permanentes. Há também os obstáculos psíquicos, porque se trata de ir além do conhecido, além do familiar, do que nós aprendemos com nossos avós, com nossos pais, com nossos professores normóticos. Então, precisamos transgredir os limites do próprio script ou mito pessoal, conformado das velhas decisões de sobrevivência assumidas no passado, de modo especial na primeira infância. Temos que superar estes desafios psíquicos. Há, também, os desafios noéticos, da consciência sutil, do que denominamos de mundus imaginalis, o imaginal da espécie, habitado pelas imagens estruturantes, ou seja, o mundo arquetípico. Sempre que nos colocamos a serviço dos transcendentais gregos, da Verdade, da Beleza e da Bondade, arquétipos do transpessoal sombrio comparecem para nos testar. É a experiência do Jó em cada um de nós. Entretanto, são através destes testes e dos desertos das provações que vamos amadurecendo, recolhendo as projeções e superando nossos idealismos ingênuos e pueris. Nosso andar é trôpego e hesitante, neste universo paradoxal e vasto de todas as polaridades. Muito bem cantou o poeta Thiago de Mello:

– Para onde vais, Andarilho, nesse andar assim cambaio?

– Vou ao encontro da manhã.

5 – Como você definiria a abordagem política da Unipaz?

Na Unipaz nosso fundamento, que é a transdisciplinaridade, implica na transculturalidade, na transreligiosidade e no transpartidarismo político. Nós não temos nenhuma ideologia, nenhuma religião, nenhuma bandeira, nenhum partido – já que buscamos a inteireza. Somos um espaço de encontro e de diálogo entre as diversas ciências, as diversas artes, as diversas filosofias, as diversas místicas ou tradições espirituais e as diversas práticas visando à cidadania e a justiça, que é a saúde na sociedade..

Do ponto de vista metodológico, partimos do princípio de que a compreensão exige a integração do nível do saber com o nível do ser. Não basta saber, há que ser. Mas também não basta apenas ser, há que saber. Para isso nós desenvolvemos duas metodologias: a da holologia que é o estudo analítico, experimental e lógico do exercício do novo paradigma. Mas é preciso também a holopráxis, o cultivo da presença, através dos caminhos espirituais autênticos do Ocidente e do Oriente. Dessa forma, podemos lograr uma compreensão transdisciplinar, que implica na integração da dimensão analítica  da ciência e da filosofia clássica com a dimensão sintética da arte, da poesia e da mística.

Portanto, a nossa atuação é transideológica. Não se trata de uma abordagem política específica mas do cultivo de um campo de valores fundamentais que se encontra nas fontes de todo exercício justo na política. Ou seja, o transpartidarismo político transcende os partidos e se conecta com os valores que são comuns e que, ao mesmo tempo estão nas fontes de uma prática cidadã lúcida e democrática, que integra a dimensão do saber com o ser, do conhecimento com o amor e da justiça com a compaixão. Gosto de lembrar de um sábio e desafiador princípio de um documento que surgiu na França, denominado de Europa de Consciências: A economia precisa se submeter a política e a política precisa se submeter à sabedoria.

6 – O que distingue o movimento holístico da religiosidade e misticismo dos movimentos carismáticos católicos ou pentecostais que já existem na sociedade?

Como acabo de afirmar, somos um espaço de encontro e de sinergia, falando em termos mais amplos, da ciência com a consciência. Um paradigma, como o transdisciplinar holístico, é uma estrutura que gera pensamentos, ciências, filosofias, artes, místicas e os mais diversos saberes, jamais se reduzindo a uma igreja ou movimento específico.

No campo do sagrado, falamos de uma espiritualidade transreligiosa, que respeita todas as religiões, e as transcendem também. Se nós olharmos para o que está acontecendo neste momento, as religiões estão fazendo mais parte do problema do que da solução. Basta visualizar o Oriente Médio e para cerca de trinta guerras que estão transcorrendo atualmente, quase todas por causas religiosas e étnicas. Precisamos respeitar todas as religiões. A nossa ênfase, entretanto, é na fonte de onde todas as religiões autênticas são provenientes: a espiritualidade, que se alicerça na experiência do sagrado. A vivência do núcleo sagrado pode ocorrer no âmbito da religião, assim como no da ciência, no da filosofia e no da arte. O sagrado é esse assombro frente ao mistério da existência. Neste sentido afirmo que a espiritualidade na essência é amor e, na prática, se traduz pela fraternidade, pela solidariedade, pelo serviço.

A convite do Basarab Nicolescu, eu tive a oportunidade de participar de um encontro do Grupo 21 (que se refere ao Século XXI), no início de 2003, em Paris. Este Grupo congrega representantes notáveis da transdisciplinaridade da Europa, entre eles o Edgard Morin, Michel Camus – que faleceu um pouco depois -, René Barbier, Leloup, entre outros. O tema do mesmo era o sagrado e quem o focalizou, através do rigoroso discurso da física quântica, foi o próprio Nicolescu. Outros falaram do sagrado a partir da biologia, da ecologia, dos valores universais, da educação, da poesia, etc. Minha colaboração foi a de focalizar o tema do sagrado na terapia. Eis o livro que resultou deste encontro, ainda não traduzido para o português: Lé Sacré aujourd'hui (Éditions du Rocher).

Assim, confio que será através da espiritualidade transreligiosa que poderemos recolocar o sagrado no seio das nossas práticas, sejam pedagógicas, políticas, sejam práticas psicológicas, psiquiátricas, sejam práticas filosóficas, tecnocientíficas, sejam práticas religiosas. Não importa qual seja o modo de saber e de fazer. Através da espiritualidade transreligiosa nós podemos nos reconectar com esse assombro, com esse mistério, com esse Sopro de Vida que nos atravessa, na tarefa premente e essencial de reencantar  o mundo, através do resgate da dimensão ontológica e do estatuto do Sujeito.

Insisto que a nossa tarefa é da dialogicidade e a do Encontro: do Ocidente com o Oriente, do coração com a razão, da sensação  com a intuição, do masculino com o feminino, da análise com a síntese, do saber com o ser e, falando do ponto de vista dos fragmentos epistemológicos, da sinergia entre a ciência, a filosofia, a arte e a sabedoria milenar.

7 – “O século XXI, será holístico, ou não será?” Retrospectivamente, que reflexões você faz sobre este lema?

Parafraseando o filósofo francês André Malraux, que afirmou que o Século XXI será espiritual ou não será, concluímos a Carta de Brasília – que foi engendrada e lançada por ocasião da conclusão do referido  I Congresso Holístico Internacional (1987) – tem como seu último artigo, esta afirmação admoestadora: O Século XXI será holístico, ou não será! É uma forma de indicar que, desta mutação consciencial, dependerá o futuro da humanidade. Pois não será com a lógica de um paradigma que inventou o problema que nós vamos resolvê-lo. Parece-me óbvio constatar que a crise planetária que  atravessamos tem a ver com esse divórcio do conhecimento com o amor, essa ruptura perversa da ciência com a consciência. Uma nova ética exige uma nova ótica, pois mudar o mundo é mudar o olhar. É com um paradigma renovado e integrativo que poderemos encontrar uma saída evolutiva para o atual caos global.

A palavra holística é proveniente do grego, holos, que significa totalidade, inteireza. Na realidade, o termo mais apropriado, para evitarmos a cilada do holismo, que é o oposto do atomismo, é o holonístico, proposto por Arthur Koestler, em sua obra, O Fantasma da Máquina. Esta é uma palavra que alia holos, a inteireza, ao on, significando a parte, expressando uma abordagem inclusive que integra holismo ao atomismo, o método analítico ao sintético, a concepção global e a local. Há uma axioma muito conhecido, que expressa bem esta arte da aliança: Pensar globalmente e agir localmente. Para não agir loucamente, o que, infelizmente, tem caracterizado a atitude fragmentada, atomística e reducionista moderna.

Trata-se de ser capaz de uma visão global e de uma ação local. Ser capaz de analisar e de sintetizar, ou falando de outro modo, de diabolizar, ou seja, de ser eficiente no exercício analítico de uma consciência diferenciada e ao mesmo tempo ser capaz de simbolizar, de religar, ser capaz de lançar pontes entre as fronteiras que a mente analítica inventa; ser capaz de resgatar a inteireza, a não dualidade. Como afirmava Lao-tsé, o alto descansa no profundo. Ser capaz de, ao mesmo tempo, exercitar uma inteligência analítica que nos possibilita a exploração do mundo exterior através do desenvolvimento de uma técnociência sofisticada, mas ser capaz também de um exercício simbólico, sintético, que nos possibilita explorar o mundo interior, o mundo da subjetividade,  da alma e da consciência e aí construir uma harmonia, uma possibilidade de centralidade, uma possibilidade de Sujeito, para que a tecnociência seja bem orientada, através de uma ótica inclusiva e uma ética de respeito e de cuidado.

A grande contradição atual e planetária é que houve o divórcio da objetividade com a subjetividade. A partir do Século XVII, através desta ruptura, a objetividade foi decantada em prosa e verso e a subjetividade foi entregue aos lunáticos, aos poetas, aos místicos. E, diante de um abismo ameaçador, necessitamos reconciliar o objeto com o sujeito, o exterior com o interior.

Nos momentos sombrios medievais, a razão crítica era reprimida em função de um imperialismo divino, o que levou a uma rebelião lúcida dos mentores da modernidade, pelo resgate da razão crítica, num saudável movimento compensatório iluminista. Neste exercício dialético histórico, fomos para o outro extremo, com a repressão sistemática dos domínios da subjetividade, da interioridade. Como afirmou Jung, o sujeito se degenerou em objeto… O movimento transdisciplinar holístico busca superar esta polaridade através do encontro vertiginoso da objetividade subjetiva com a subjetividade objetiva, segundo Nicolescu. A transcendência dessa dicotomia esquizofrenizante se dá através de uma inteligência de aliança e de sinergia, que nos conduz a uma visão aberta e inclusiva, um outro modo de fazer e de saber inerentemente integrado e íntegro. Este sistema aberto de conhecimento implica no reconhecimento de múltiplos e complementares níveis de realidade, com suas dinâmicas singulares, o universo da complexidade e a lógica do terceiro incluído, que abre espaço para o resgate do grande segredo que é o Sagrado.

Portanto, quando afirmamos esse lema, não é para exercitar uma certa pedagogia amedrontadora e pseudoapocalíptica. Significa que o que está em jogo é a própria perpetuação da espécie. Há cerca de três semanas estive na Polônia e visitei Auschwitz, o mais tenebroso campo de concentração nazista. Caminhando por aquele horror, não pude deixar de me lembrar de uma afirmação de Viktor Frankl, sobrevivente do holocausto: Portanto fiquemos atentos, atentos em duplo sentido. Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. Desde Hiroxima, sabemos o que está em jogo.

É o que eu traduzo afirmando que o Ser Humano será a maior descoberta do Século XXI. Caso não seja, haverá século XXI para o ser humano?…

8 – Quais as perspectivas da Unipaz na atualidade?

Nos tempos atuais, quem pode ser contra a paz?…

Nossa perspectiva é a de dar um passo a mais, sempre. Sem visar resultados, pois não se trata de um negócio no contexto de um capitalismo selvagem. É uma inspiração, é uma conspiração, é um sonho compartilhado que vai colapsando realidades inusitadas. Há um momento em que o paradigma é integrado e corre em nossas veias, transpirando naturalmente em nossos atos do cotidiano. O que importa não são tanto as palavras; são os testemunhos. No fundo, todos queremos amar e ser amados, todos ansiamos por uma paz consigo, com o outro, com a humanidade, com o planeta, com o Mistério que está no coração de todos e de tudo. Quando somos capazes de um mínimo desta realização, este testemunho se irradia, contagiando e se propagando de forma insuspeitada.

Penso, de forma muito especial, nos nossos jovens. Todos os meus três filhos participaram da Formação Holística de Jovens e da Formação de Jovens Líderes, assim como muitos filhas e filhos de diversos companheiros desta missão. Apenas este fato, para mim, é motivo de imenso júbilo e de um consolo total. Atualmente, minha filha coordena, com o seu noivo, a retomada da Formação Holística de Jovens na Unipaz-DF. Os meus dois outros filhos colaboram, sempre que podem, nos labores e louvores de nosso canteiro de obras. Para um veterano, que sente já o peso dos dias, não há bênção maior do que esta: saber que os nossos filhos estão se levantando e assumindo uma função de protagonistas desta grande aventura em curso. Este é, talvez, um dos aspectos mais promissores da UNIPAZ+20!

9 – Gostaria de comentar sua aventura pessoal na criação da UNIPAZ?

O mais significativo é que, nessa caminhada, vamos aprendendo a confiar e a amar um pouquinho mais a cada dia. Os medos vão sendo transcendidos e o coração vai se abrindo. Através de tantos encontros, a alma vai se ampliando. Então, como indica o poeta, tudo vale a pena pois a alma não é pequena…

Por outro lado, brotou da própria Unipaz, o Colégio Internacional dos Terapeutas, Cit, que eu tenho coordenado, no Brasil. O Cit não forma terapeutas, pois esta é a função da Unipaz. O Cit acolhe terapeutas, das mais diversas competências e formações, que integraram a abordagem transdisciplinar holística em suas práticas. O que nos congrega é uma visão aberta, uma ética de respeito à inteireza humana e a tarefa de um cuidado integral. Pois o terapeuta é um suposto cuidar. Cuidar, sobretudo da saúde, pois é a partir do que está bem em nós que uma dinâmica de cura e de evolução é dinamizada. Cuidar através de uma escuta atenta e de uma hermenêutica ampla, que jamais reduz a pessoa ao seu sintoma, considerando-a na condição de Sujeito, capaz de extrair um sentido da própria doença e fazer do sofrimento uma ocasião de consciência e de transformação.

Enfim, a Unipaz e o Cit são organismos complementares, que aliam uma educação centrada na Paz a uma terapia centrada no Ser. São espaços iniciáticos, onde a pessoa é convidada a iniciar-se ao mistério da auto-realização, como um ser em construção que, através de uma saga no interior de si mesmo possa se elevar do ego ao Self. Não se trata de destruir o ego e, sim, de abri-lo para os horizontes do amor e do Ser.

Eis a minha aventura: a de um operário teimoso, que sofre de entusiasmo e sente-se muitíssimo grato pelas trilhas que nos trilham e por um Sorriso que vai brotando, gradativamente, de nossas almas apaziguadas. Não pelo que temos, que é o ilusório que passa. Não pelo que sabemos, que é o que nos leva à consciência do infinito não saber. Talvez, pelo que somos capazes de ser, de transparecer e de servir. Concluo com um poema de Jimenez, que é também oração e consolo:

Inflama-me poente,

Faz-me perfume e chama.

Que meu coração seja igual a ti, poente.

Descubra em mim o que é eterno, o que arde, o que ama.

E o vento do esquecimento arraste o que é doente.

 

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