A Água é assunto central desta semana, porque a carência de água se abate sobre povos inteiros em todos os continentes, mas principalmente porque, nesta 5ª feira, 16, começa na Cidade do México, o 4º Fórum Mundial da Água e diversos eventos paralelos que este fórum suscita. A novidade é que, quando se trata da Água, a sociedade civil se mobiliza cada vez mais.
Organizações de base fazem fóruns paralelos e todos, em casa, no trabalho, nas Igrejas e escolas, são convidados a participar de um grande e permanente fórum de carinho pela água e defesa da vida. Afinal, 24 agências da ONU acabam de publicar o “Relatório mundial de desenvolvimento de água” (09/03/2006). Este é o mais completo relatório da ONU sobre o assunto. Deixa claro que são urgentes políticas públicas e estratégias para assegurar que a humanidade e o mundo possam continuar contando com a água suficiente para a continuidade da vida no planeta. Cerca de 1, 1 bilhão de pessoas, 20% da humanidade não tem acesso à água potável e o dobro desta população não tem saneamento básico (Cf. O Globo, 10/03/2006, O Mundo, 29).
O relatório da ONU mostra mais uma vez que todos somos responáveis. Não podemos deixar apenas nas mãos de técnicos e burocratas o fato de que oito milhões de pessoas morrem por ano em consequencia de doenças relacionadas com a água. Destas pessoas, 50% são crianças. Trata-se da segunda causa de morte no mundo[2]. Nem podemos ficar calados quando Michel Camdessus, conselheiro da ONU e ex-diretor-gerente do FMI, defende que água é mercadoria. Como os recursos hídricos, nome muito apropriado para esta visão capitalista, estão cada vez mais escassos – a solução é privatizar as águas do mundo todo, com a injeção maciça de US$ 180 bilhões.
Há apenas um mês, na véspera da 9ª Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, em Porto Alegre, nos reuníamos com pastores e representantes de confissões cristãs de vários países. Ali, foi ratificada uma declaração ecumênica, assinada em abril de 2005 pela presidência do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, da Confederação Suíça de Igrejas Evangélicas, da Conferência Nacional de Bispos do Brasil e da Conferência dos Bispos da Suíça, reunidos em Fribourg. Neste documento importante, bispos e pastores insistem:
“A água é um bem fundamental para a vida. Sem água não há vida. Ter acesso ou não ter acesso à água significa decidir sobre a vida e a morte do povo. (…) Por causa da vida, a água é um bem comum, que não pode nem deve ser privatizado. O acesso à água é um direito humano. O direito a uma alimentação adequada é definido pela ONU, tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (Art. 25), como no “Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, em 1966 (Art. 11). (…).
A água não é apenas um bem econômico. Possui significado social, cultural, medicinal, religioso e místico. (…) Para muitos povos e culturas, a água tem caráter sagrado, está ligada às tradições e exerce função comunitária e ritual. A água tornou-se escassa, devido ao alto consumo per capita, ao crescimento populacional e também ao consumo inadequado e desperdício. Escassa por causa do desmatamento, da poluição, da contaminação do solo e do esgotamento das reservas hídricas. É preciso definir a água como prioridade colocada a serviço da vida e do consumo humano.
Por isso, os representantes destas Igrejas e conferências episcopais concluem: “Exigimos que a água seja reconhecida como direito humano. O direito à água é parte do direito à alimentação adequada. Esse direito deve ser respeitado por todos os setores da sociedade, em nível local e global. Cabe ao Estado uma responsabilidade especial, consignada no “Comentário Geral” n° 15 do Comitê das Nações Unidas para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e nas “Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação” no contexto da segurança alimentar nacional, especialmente a Diretriz 8c (Água), da comunidade das nações, ratificadas pela FAO em novembro de 2004. Essas responsabilidades e direitos devem prontamente ser postos em prática.
A água deve ser tratada como bem público. O Estado deve garantir o acesso à água potável para todos, o que implica em: preço acessível da água para todos; obtenção de recursos técnicos e financeiros; participação das comunidades e entidades locais nas tomadas de decisão no que diz respeito ao uso dos recursos hídricos existentes. Água como bem público obriga o Estado a regular o uso dos recursos hídricos através de meios pacíficos, para que o direito à água seja para todos, inclusive para as populações de países vizinhos. Que sejam definidas prioridades legais para o uso da água. Em primeiro lugar está a necessidade vital de pessoas e animais e o fornecimento de água para a produção de alimentos. Isso exige uma política ambiental dentro do espírito de solidariedade entre comunidades, regiões e povos. Este direito humano à água deve ter um marco legal através de uma Convenção Internacional da Água, a ser definida pelas Nações Unidas”.
Em todo território latino americano, proliferam ações da sociedade civil para garantir que as populações mais pobres tenham acesso à água em quantidade, qualidade e regularidade. No semi-árido brasileiro, por exemplo, 800 entidades estão articuladas para construir um milhão de cisternas para um milhão de famílias da região. Até hoje já foram construídas aproximadamente 150 mil. Embora esteja longe de alcançar seu objetivo, praticamente 900 mil pessoas hoje têm água de qualidade ao menos para beber. Sem esse tipo de iniciativa, deixando apenas para as iniciativas do Estado, essas famílias não teriam sua água para consumo garantida. Esse é o tipo de prática que contempla as necessidades dos mais deserdados, garantindo-lhes o acesso à água a qual têm direito.
Há mais de 50 anos, a filósofa Simone Weil dizia: “Eu reconheço quem é de Deus, não quando me fala a respeito de Deus, mas pelo modo como fala e atua nas coisas deste mundo”. A verdadeira espiritualidade vai além do religioso e se revela em uma atitude de amor para com todas as criaturas. É importante fortalecer e articular as lutas populares e pacíficas contra a privatização dos serviços municipais de água, contra a construção de novas barragens, assim como a luta dos ribeirinhos pela defesa de seus rios. Essas lutas são expressões de cidadania e sinais de fé em Deus, fonte de vida e amor do universo[3].
[1] – Marcelo Barros, monge beneditino, autor de 29 livros, dos quais o mais recente é “A Vida se torna Aliança” (Orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI- Rede da Paz, 2005. Email:mosteiro@rededapaz.com.br
[2] – ROBINSON BORGES, “ÁGUA VALE MAIS QUE PETRÓLEO”, Entrevista de Michel Camdessus ao jornal Valor, 6ª feira, fim de semana, 2ª feira e 3ª feira, 24 a 28 de fevereiro de 2006, Caderno Eu &, p. 4 ss.
[3] – Se quiser aprofundar esta dimensão ecumênica e bíblica da espiritualidade da Água, leia:
MARCELO BARROS, O Espírito vem pelas Águas, São Paulo, Ed. Loyola- Rede, 2003.