Matrix e Ahimsa

“Tudo é Deus. Tanto esta sala quanto todo o universo estão flutuando como num filme na tela da minha consciência… Eu olho para esta sala e vejo nada mais do que Espírito puro, Luz pura, Alegria pura. A figura de meu corpo e de seus corpos – e de todas as coisas desse mundo – são apenas raios de luz provenientes daquela única Luz Sagrada. Olhando esta Luz, não vejo nada além do Espírito puro”.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952)

  Neo entra na sala daquela cidadezinha oriental e se depara com o protetor do Oráculo. Ele pára e subitamente passa a observar todas as coisas como se fossem linhas de código, de luz esverdeada, da Matrix. Ele sente a expansão de consciência tão belamente descrita por Paramahansa Yogananda. Consegue perceber a realidade sutil da manifestação física das coisas. Mas essa linda passagem logo se transforma num show de Kung-Fu. Marketing? Pode ser, também…

Ahimsa, para a filosofia indiana, se refere ao propósito pessoal de não ferir nenhum ser vivo, tanto verbal quanto fisicamente. Presente em todas as tradições sapienciais, quando se refere a não fazer mal a seu semelhante, ahimsa tem seu expoente máximo na Regra de Ouro da ética:

  • Cristianismo: “… amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
  • Islamismo: “Ninguém pode ser um crente até que ame o seu irmão como a si mesmo”.
  • Judaísmo: “Aquilo que não queres que te faça, não faças ao outro”.
  • Zoroastrismo: “A Natureza só é amiga quando não fazemos aos outros nada que não seja bom para nós mesmos”.
  • Confucionismo: “Não faças aos outros aquilo que não queres que eles te façam”.
  • Taoísmo: “Considera o lucro do teu vizinho como teu próprio e o seu prejuízo como se também fosse teu”.
  • Hinduísmo: “Não faças aos outros aquilo que, se a ti fosse feito, causar-te-ia dor”.
  • Budismo: “…dando o que deles espera receber…”.
  • Sikhismo: “Julga aos outros como a ti mesmo julgas. Então participarás do Céu”.
  • Jainismo: “Na felicidade e na infelicidade, na alegria e na dor, precisamos olhar todas as criaturas assim como olhamos a nós mesmos”. 

Muito se tem falado acerca das cenas de violência do filme Matrix. Se pretendermos fazer qualquer relação entre o filme e o caminho espiritual de um Escolhido sempre poderemos cair em contradição: não há nenhum caminho espiritual que admita a violência ao semelhante. Gandhi foi o maior expoente da doutrina de não-violência. Como admitir que o caminho para a libertação dos habitantes de Zion seja exemplo de caminhada espiritual?

O primeiro filme nos mostra a existência de soldados da Matrix, a linha de frente da defesa de sua ilusão, e dos agentes da Matrix, os soldados de elite. Além dessa brigada de defesa da Matrix, Morpheus declara que os seres humanos não estão prontos para “acordar”. Isso faz das pessoas adormecidas inimigas em potencial, embora isso não lhes dê o direito de maltratá-las. Suas palavras expõem o que é dito nos Vedas, na Bíblia Sagrada (Mt 10:35-38) e em todas as tradições, quando afirmam que todos, pais, mães, irmãos, avôs, avós, amigos, namorados, cônjuges, etc., são “soldados ilusórios”, que promovem nosso apego a Maya (Matrix), pois, enquanto adormecidos, os seres humanos fazem parte do sistema e possuem, na parte inconsciente de sua psique, processos mentais que eles mesmos desconhecem, mas que tomam conta de sua consciência para defender seus “pré-conceitos” e manter a ilusão da existência física.

Esses processos mentais inconscientes que nos prendem à ilusão são representados no filme pelos agentes da Matrix, programas sencientes que entram e saem em qualquer mente não liberta, conectada ao sistema. “Qualquer um ainda não libertado, é um agente em potencial da Matrix. Eles são todos e não são ninguém” diz Morpheus. Os agentes relacionam-se com o nosso lado Sombra e nossas tendências cármicas (como os sete pecados capitais – tendências da natureza humana e origem de todos os atos “adhármicos”): “… eles são os porteiros, protegem todas as portas e tem todas as chaves”, complementa Morpheus.

E é na forma de processos mentais que os agentes, programas armazenados em algum local da Matrix (algo como o inconsciente coletivo de Jung), “entram” em qualquer mente não liberta ocupando todo o seu ser. Pensamentos, emoções e ações agora são comandadas pelo agente. Quando alguém luta com os agentes de Matrix, está em luta o seu lado livre contra os apegos, desejos e tudo o que interrompe o caminho rumo à auto-realização. Antes de Neo obter a libertação das limitações impostas à sua mente, no final do primeiro filme, todos em Zion sabiam que era impossível travar qualquer combate com os agentes e sair vivo. Esse combate mortal, entre as nossas tendências cármicas, nosso lado Sombra, e nosso lado Luz é a verdadeira batalha a ser travada por qualquer guerreiro espiritual e ninguém tinha tido nenhum êxito em qualquer dessas batalhas. Neo foi o primeiro. Venceu a sua Sombra, personificada no agente Smith. Mas a Sombra não é aniquilada com uma só batalha.  

“O coração do Aikido é: verdadeira vitória é vitória sobre si, dia de instantânea vitória! Verdadeira vitória significa infinita coragem, vitória sobre si simboliza incansáveis esforços e dia de instantânea vitória representa o glorioso momento do triunfo no aqui e no agora… A verdadeira vitória… é atingir e eliminar o espírito da dúvida e do conflito que existe dentro de você. [Só assim]… você estará hábil a integrar os fatores interno e externo da prática, limpe seu caminho de obstáculos e purifique seus sentidos”.

Morihei Ueshiba (1.883-1.969)

 “O maior de todos os inimigos do homem é ele próprio”.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952)

 Em Reloaded vemos que  essa Sombra adquire mais poderes e continua a se manifestar, perseguindo Neo. Smith confessa que, apesar de não saber como, após a derrota no final do primeiro filme, passou a sentir que algo de Neo pertencia ou passou a pertencer a ele. O próprio Neo passou a pressentir a aproximação de seu lado Sombra, na pessoa dos agentes da Matrix, e destemidamente enfrentava a todos em luta, vencendo-os. Isso é bem retratado na luta com armas de Neo contra os comparsas de Merovingian, programas ultrapassados e destinados à destruição que encontraram refúgio sob a proteção dele. Representam as nossas mais vis negatividades, herdadas de nossos mais longínquos ancestrais, às quais Neo destrói (dentro de si) fria e impiedosamente. 

“Minha alma renasceu! Meu poder para vencer é superior a todo o peso de minhas tribulações, porque sou filho de Deus”.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952) 

Essa afirmação de Paramahansa Yogananda retrata bem de onde Neo retirou forças para ser superior a todo o peso de dezenas de Smith que estavam sobre ele, arremessando-os ao ar, na linda batalha dele contra os cem Smith. Nessa hora ele sente a voz de Trinity: “saia daí”. Quando não conseguimos vencer nossa negatividade, de nada adiantará ficar lutando com ela indefinidamente. A melhor saída é adiar a batalha por mais algum tempo, ainda não é a hora de enfrentá-la, sob pena de sucumbirmos a ela. Se, por exemplo, não podemos vencer a nossa raiva e ânsia de vingança, não adianta ficar nos recriminando ou lutando contra ela. A melhor saída é mudar, temporariamente, nosso pensamento e sentimento para outro lugar: e Neo sai dali voando.

A aventura de Neo é a busca da sua própria consciência…

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