Neurociências e Religião: Interfaces (Parte 1)

 

Em 1995, foi publicado um livro sério e bem informado sobre o Universo em que vivemos. Seu autor1, ao se fazer comentarista da ciência, buscava uma síntese entre o conhecimento científico hoje disponível e uma visão espiritual do cosmo e da vida. Deu à obra um título significativo e quase poético: “A Obra do Artista. Uma visão holística do Universo”.

Ao ler esse livro, escrito com a poeira das estrelas mas versando sobre fatos científicos, tive ímpetos de procurar o autor para contar-lhe algo do fascinante que eu ia descobrindo ao aprofundar-me em uma área de conhecimento que é apenas aflorada no mencionado livro, as neurociências e, mais especialmente, a neuro-psicologia. A cada nova leitura me convenço de que o dito em “A Obra do Artista” será muito enriquecido se complementado pelo que hoje se sabe da mais maravilhosa das realidades existentes: o cérebro e a mente humana.

Neste artigo pretendo condensar algo do novo que surge a esse respeito. O objetivo do artigo é o de introduzir os que se interessam pelas Ciências da Religião no promissor diálogo que começa a se estabelecer entre as ciências da mente e as que se debruçam sobre a religião e a religiosidade humana.

Por não ser, infelizmente, nem escritor, nem poeta, meu texto seguirá os cânones pesados da literatura acadêmica. Mas escrevo esta nota prévia para dizer que é preciso ter coração de poeta para compreender quão profundamente o aqui dito tem a ver com o mistério, a poesia e o sentido do que existe, ou seja, com o que no ocidente é chamado de “religiosidade” ou de “religião”.

I. Novos questionamentos e horizontes

Revistas científicas e de divulgação têm mostrado amplamente ao grande público os extraordinários avanços obtidos pelas neurociências nos últimos dez ou vinte anos. São progressos que correm lado a lado com os logros conseguidos por outras ciências de ponta, como a biogenética, a química e a informática. Tais avanços já começam a exercer forte influência sobre os rumos, tanto das ciências bio-médicas, quanto das ciências humanas, sociais e da cultura. A neuropsicologia é um dos campos mais afetados pelas novas descobertas propiciadas por metodologias inéditas de observação do funcionamento do cérebro humano.

São conhecimentos e constatações que não podiam deixar de provocar uma notável revisão em alguns dos conceitos e teorias vigentes nas ciências da religião, em especial na psicologia da religião. Isto por, ao menos, duas razões principais. Primeiro porque as ciências da religião acham-se ainda atreladas a hipóteses, conceitos e conhecimentos – em geral herdados da medicina e da física — velhos de mais de cem anos, que são já seguramente já superados. Em segundo lugar, porque Estudos da Religião nunca se distanciaram totalmente da pesquisa sobre a consciência e os estados superiores da mente, duas áreas diretamente afetadas pelos avanços das neurociências.

Merece especial menção a situação ambígua que perdura, há mais de um século, no tocante à relação mente x corpo, dificultando, de um lado, o estabelecimento de uma conexão mais clara entre emoção, razão e cérebro e, de outro, entre processos mentais e valores da cultura, da ética e da religião. Há fundadas esperanças de que possamos avançar nesta discussão no próximo decênio. Algo disto se verá no presente artigo que tem natureza apenas introdutória à questão e pretende tão somente traçar um quadro de fundo que ajude o leitor a perceber a abrangência e o alcance do novo debate que está se estabelecendo entre as neurociências e as ciências da religião. E no seio desse debate, no âmbito mais restrito da psicologia da religião.

Saliento, de início, que as bio-ciências, mais que as demais ciências, sofreram o impacto da maneira de pensar do século XIX, cuja nota primeira era o fechamento a tudo que escapasse ao dogma biologístico. Sua visão do psíquico e do mental era caracterizada por esse viés reducionista. Houve médicos que tentaram outras vias. W. James e C. G. Jung, por exemplo, abriram brechas em novas direções. Mas para inovar em sentido humanista eles quase que tiveram de deixar de ser médicos. Muito do que escreveram tinha mais a ver com o metacientífico e com perspectivas não biológicas, quais as oferecidas pela antropologia cultural, a história comparada das religiões, a semiótica e a linguística que, ao menos em certo sentido, se afastaram dos pressupostos biologísticos da medicina, assim como essa era concebida até aproximadamente os anos 60 do século que findou. Esses médicos interessados na dimensão psíquica – como próprio S. Freud – para expor suas idéias, descobertas e intuições tiveram que criar uma metapsicologia que só nominalmente dizia ter base biológica. De fato, eles não tinham ainda elementos científicos para conceber adequadamente as duas abordagens, a fisiológica e a psicológica. Eles estavam entravando em um terreno novo e desconhecido que era tido, no Ocidente, como território exclusivo da filosofia e da teologia. Interessante observar que, apesar da extraordinária repercussão cultural de suas obras – da psicanálise, por exemplo –, eles tiveram pouca ou nenhuma influência em sua ciência de origem, cuja “main stream” permaneceu rigorosamente materialista e organicista.

O resultado final desse processo levou, segundo o neurofisiologista A. Damásio, a “uma amputação do conceito de natureza humana com o qual a medicina trabalha… Não surpreende que, de um modo geral, as conseqüências do corpo sobre a mente mereçam na medicina uma atenção secundária ou mesmo nenhuma atenção… (Ela) não percebe que aquilo que as pessoas sentem em relação ao seu estado físico é um fator principal no resultado do tratamento” (Damásio, 1998, 287).

II. Posições organicistas versus posições preocupadas com a mente

É coisa patente que a psicologia e a psicanálise sempre mantiveram uma correlação estreita com a medicina. Assim não é de se admirar que fenômenos tidos como sendo coisas da religião e da mente, tenham estado muito freqüentemente em mãos de médicos. Resultado: a psiquiatria e psicologia do século XX conservaram largamente os mesmos pressupostos e conceitos positivistas e materialistas vigentes nas modernas ciências médicas. Com isto, a contraposição entre ciência e religião tornou-se uma tônica também na psicologia da religião, claro que sempre ao lado de outras tendências, por vezes quase diametralmente opostas ao enfoque organicista2.

Segundo I. Barbour3, no campo das neurociências, existiram ao longo do século XX, quatro posições de fundo na visão deste relacionamento. A predominância desta ou daquela visão ou tendência variou de acordo com os ventos que sopravam em cada época.

A primeira posição via (e vê) um antagonismo de base entre as duas visões. Entre ambas existiria uma incompatibilidade intrínseca e de princípio. O antagonismo é defendido pelos dois lados. Do lado da ciência, biólogos como Jacques Monod e Edward O. Wilson, estavam convencidos de que a religião não representava a realidade (destorcia-a, até), ao passo que as teorias científicas o faziam, embora de modo (ainda) amplamente incompleto. No outro extremo situava-se a posição dos fundamentalistas religiosos. O debate mais típico, embora não o mais importante, é o que se estabeleceu em torno do chamado criacionismo. Para os fundamentalistas a Bíblia é mais fidedigna que as hipóteses das ciências naturais e da astrofísica a respeito da origem do universo, da vida e do homem. Na Bíblia encontramos não “mitos” e sim verdades às quais a ciência humana deveria se curvar por se tratar de um conhecimento com chancela divina.

Mais tarde, firma-se uma posição epistemológica diversa fundamentada no princípio da existência de uma independência entre os dois tipos de conhecimento, o religioso e o científico. Não existe um conflito de raiz entre os dois, uma vez que as ciências objetivam uma compreensão natural e direta dos fenômenos do mundo, enquanto que a religião interpreta a ação indireta de Deus na natureza. Seriam duas abordagens distintas, embora afins e complementares. Essa parece ser a opinião de um moderno físico brasileiro M. Gleiser, quando escreve que “da mesma forma que é hoje absurdo afirmar que a terra tem somente 6000 anos, é absurdo declarar que a ciência tem todas as respostas, ou mesmo que seja capaz de obtê-las. Para começar existem certas questões que estão (…) fora do âmbito científico. Mais ainda, nós nunca seremos capazes de formular todas as perguntas (…). Às vezes, confundimos o objetivo comum das ciências e da religião, a busca por uma perfeição inatingível, com nós próprios, acreditando que nossa mera participação nesse processo (…) nos transforma em deuses! Nada como uma boa dose de humildade contra essa triste vaidade moral e intelectual” 4.

Uma terceira forma de se correlacionar religião e ciência é a que postula a possibilidade de um diálogo entre as duas. São muitos, hoje, os cientistas que reconhecem que a investigação científica não tem como chegar a questões como: o que havia antes do big bang ? em que direção apontam certos fenômenos detectados pela física quântica? São dados irrefutáveis que ultrapassariam as possibilidades das ciências, ao menos pelo momento, abrindo, assim, um campo próprio à explicação filosófica e religiosa. Embora religião e ciência não sejam isomorfas, ambas apresentam suficientes pontos de contato para estabelecer um diálogo que beneficiará os objetivos de ambas, que é o de conhecer de maneira mais ampla a realidade do ser humano e do mundo. Nos últimos anos, indo mais longe, cientistas advindos da biologia, da astronomia, da neurologia e da física, falam já da possibilidade de uma futura integração entre ciência e religião. As duas confluiriam, em níveis distintos, para explicar complementarmente fenômenos que não se deixam explicar de modo exaustivo por só uma delas. D'Aquili e Newberg5, médicos e neurofisiologistas, assumem expressamente essa posição em um livro que obteve grande sucesso nos Estados Unidos e já começa a ser comentado no Brasil.

Simplificando esse quadro que, diga-se de passagem, é extremamente complexo, pode-se afirmar que no que tange a visão da neuropsicologia a respeito da religião já há claros indícios de que se superou a fase da hostilidade e/ou indiferença entre as duas partes e que aumenta o número dos pesquisadores científicos que se dedicam a criar condições para um diálogo e complementação entre o que se sabe sobre o cérebro ou a mente e o religioso.

Para destacados cientistas contemporâneos as novas descobertas das ciências da natureza parecem abrir perspectivas extremamente promissoras quanto a um diálogo interdisciplinar no referente aos estados místico-religiosos e aos processos biológicos à ela subjacentes. Fugindo a concepções dicotômicas, a nova visão busca um sentido mais integrado do conjunto bio-psico-social, com o existencial-ético-teológico em que ela precisa ser desenvolvida. Lugar de destaque nesse novo eqüacionamento é o ocupado pela neurofisiologia.

Não se pense que esteja já tudo claro e resolvido. Persistem dúvidas sérias e pontos obscuros em inúmeros campos. As posições de mútuo fechamento permanecem e continuam mesmo sendo a tônica. Os dados e indicações de que dispomos não podem ser tidos como definitivos. Mas algo novo se vislumbra! O que começa a se tornar universalmente aceito é que a tradição médico-psicológica ocidental laborou durante séculos em um preconceito que remonta ao que Damásio chamou de “o erro de Descartes” 6. Para esse famoso filósofo e médico francês, como se sabe, a mente humana era uma realidade incorpórea (uma “res cogitans”, separada e distante de sua outra parte, a “res extensa”, a “coisa” corpórea e material) cuja sede se localizaria na glândula pineal, a única parte do cérebro humano que não tem uma reduplicação nos dois hemisférios, como ele, excelente anatomista, bem sabia.

Há muito se percebeu que as hipóteses neurofisiológicas e mesmo anatômicas de Descartes são erradas. Contudo, ao se falar da “mente humana” (“mind”) e da “consciência (“consciousness”), muitos persistem a pensá-las cartesianamente, centrando sua compreensão7 ou em um “cérebro” exclusivamente material, ou em um “cogito” só espiritual. É, nessa segunda hipótese, como se o “saber” e a “consciência” de si e do mundo não tivessem “corpo” e, em conseqüência, como se a religiosidade fosse uma realidade só do “espírito”, um “ens” imaterial caído do céu, por intervenção dos deuses. Em conseqüência, as funções superiores da mente — como a fantasia, a memória, a sensibilidade emotiva, a inteligência, a emoção, etc. – são vistas como que “pairando” acima do corpo, o que dá margem ao surgimento de uma compreensão dualizada do funcionamento da psique humana. O resultado é um insanável dicotomia entre mente e cérebro, entre corpo e alma, entre consciência e espírito.

Descartes não podia, nem de longe, sonhar que a atividade do cérebro resulta do trabalho de conjugação individualizada de neurônios que se articulam e se inscrevem em redes neurais de complexa natureza eletro-química que servem de base ao que chamamos de consciência, esse elemento tão central do sentir/pensar específicos do ser humano.

São atividades que se escondem em performances tão disparatadas quanto compor um poema, dançar o “Lagos dos Cisnes”, sentir remorso pelo mal cometido, amar uma pessoa ou dar a vida por um ideal maior. Não se trata apenas da ressonância subjetiva dessas experiências em cada sujeito que poeta, dança, se arrepende, ama ou entrega sua vida e sim de uma trajetória psico-evolutiva que vem de milhões e milhões de anos e resulta de um minucioso emaranhado de articulações neuro-químicas e de significados psíquicas. Os mecanismos biológicos dessa trajetória começam agora a ser desvendados desde dentro, quase que ao vivo e a cores. Está se tornando possível a observação e manipulação (também genética) cada vez mais direta do funcionamento dos sistemas nervoso, hormonal e celular. Todos ouvimos falar do Projeto Genoma e da ovelha Dolly que foi clonada há pouco, na Inglaterra. O canal Discovery nos mostra imagens coloridas do que vai no cérebro de uma pessoa que tenta se lembrar de um número de telefone ou que se emociona ao recordar-se de um poema ou de um fato triste de sua vida.

Os cientistas estão se apercebendo da validade e importância de intuições quase místicas de pesquisadores como Einstein e Teilhard de Chardin ao tentarem captar em toda sua extensão o sentido dos dados colhidos em suas respectivas ciências. O horizonte para o qual todas as grandes religiões parecem estar apontando se aproxima, de certa maneira, à percepção que esses cientistas têm das descobertas verdadeiramente revolucionárias que a pesquisa vai acumulando, criando novos paradigmas e exigindo novos quadros conceituais.

Há uma divulgação muito grande na mídia do que a astrofísica, a matemática e a física quântica hipotizam hoje a respeito do big-bang. Já menos difundido é o que se sabe sobre o microcosmo maravilhoso dos “qualia” da mente e do cérebro humano. A questão da consciência é uma questão central no debate que se insinua desde as neuro-ciências. Ela precisa ser considerada dentro de um diálogo interdisciplinar novo e aberto, ainda à nossa frente.

III. Pesquisas na interface entre neuro-ciências e religião

1. Fases teóricas na evolução da discussão sobre cérebro/mente

James B. Ashbrook 8 descreve três fases na evolução acontecida na interface entre religião e Neuro-ciências, entre 1970 a 1995. No centro de suas observações e interpretações está o famoso “mind-brain problem”. Inicialmente a pesquisa foi influenciada pelas chamadas “duas correntes de consciência”. É o período do “split-brain research”. Os dois hemisférios cerebrais estariam de tal forma diferenciados em suas funções que quase corresponderiam a duas distintas personalidades dentro de um só e mesmo sujeito. Uma caracterizada por um modo analítico de ser e outra estilos marcados pela síntese. Robert Ornstein 9 divulgava entre o grande público a concepção de que a personalidade humana seria psiconeurologicamente bi-modal. Buscava-se encontrar um modo de correlacionar estes dois diversos estilos de agir do cérebro. Deixava-se, assim, de lado a hipótese antes dominante da explicação através da “lateralização” da consciência. Essa hipótese bi-modal foi criticada desde o início por ser uma explicação demasiado genérica, além de insatisfatória para quem leva em conta o que a evolução mostrava. Os interessados em teologia e religião viram de imediato as conseqüências dela decorrentes para o campo religioso (Ashbrook, 1996, 551 s).

Ao longo dos anos 80 observou-se uma mudança na orientação geral do enfoque. O funcionamento integrado do “cérebro todo” passou a merecer a atenção principal. A relação cérebro-mente passou a ser o tema básico. Nessa época dá-se uma controvérsia famosa entre o prêmio Nobel John Ecles, apoiado pelo maior neurocirurgião daquele tempo, Wilder Penfield e Roger Sperry que defendia uma posição reducionista. Não há como resumir aqui o complexo debate (cf. Ashbrook, 1996, 557 s.). Do lado dos teólogos que participavam da discussão essa mudança de enfoque foi vista como mais apropriada para se compreender o sentido da religião, quando menos em sua dimensão metafórica.

Os anos 90 viram nascer uma fase nova. A consciência passou a ser percebida como “capaz de dar sentido e de integrar”. Surge assim uma ponte para o diálogo entre o que diz a neurologia cognitiva e o que postula a religião enfocada desde este ponto. Pois, do ponto de vista da religião, por mais importante que possa ser a base neurológica das atividades do cérebro em seu todo, não se pode perder de vista a existência de uma consciência integradora, sempre intencionalmente atuante, envolvendo todos os níveis do cérebro e todos os aspectos da cultura.

Contra este pano de fundo dá-se outra polêmica famosa. De um lado estava o prêmio Nobel F. Crick (1994) que pensava ser o homem “nada mais que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas com suas moléculas associadas”. Portanto, nada de tomar a sério o “todo”, o que deve ser considerado são as partes. De outro lado causa reboliço o livro de António Damásio, pesquisador e médico português radicado nos Estados Unidos, que deixa explícito, como neurofisiologista, que a compreensão neurofisiológica da consciência deve, em virtude das evidências novas, superar em definitivo a posição cartesiana, pois essa não se sustenta sobre fatos. O que conta é o todo. A “nenhum corpo” corresponde “nenhuma mente”. (Damásio, 1998, 254). Eis duas frases significativas do neurologista português, trazidas por Ashbrook (1996, 565):

Deveria já estar patente… que os segredos da base neurológica da mente não podem ser descobertos mediante a decifração de todos os mistérios de um único neurônio …ou de todos os intrincados padrões de atividade local de um (único) circuito neural típico”

“A mente que se acha verdadeiramente embutida no corpo não perde a capacidade de realizar suas operações de nível mais refinado, as que dizem respeito à sua alma e ao seu espírito”.

2. Questões preliminares em torno do conceito de consciência

2.1. O conceito de consciência deve ser melhor entendido antes de entramos em outras considerações. Vejamos, primeiro, seu significado etimológico Em algumas línguas indo-germânicas a palavra latina “conscientia” dá origem a dois termos diversos, cujos sentidos não se recobrem inteiramente. O inglês, por exemplo, distingue “conscienciousness” de “conscience”. Neste texto usaremos a palavra prevalentemente no sentido de “consciousness” e menos no de “conscience”.

“Consciousness”, para o Longman (1991) tem, ao lado de outros, dois sentidos que são de nosso interesse direto. Com esse termo se designa “a qualidade ou estado de ser consciente de alguma coisa dentro ou fora de uma pessoa” abrangendo “todos os estados de consciência da mesma”, de modo muito especial os do nível superior da vida mental da qual a pessoa tem consciência em contraposição aos processos inconscientes e aos que temos em comum com outras espécies e que, em psicologia, não podem nem devem ser excluídos. “Conscience” tem um sentido diferente e mais restrito. Refere-se à “consciência da qualidade moral do comportamento ou das intenções de alguém juntamente com o senso de obrigatoriedade de se evitar praticar o mal”. Este significado da palavra nos interessará aqui de maneira secundária, mas não pode ser posto de lado em Psicologia da Religião.

Compulsando o Aurélio encontramos também várias definições de consciência. Duas delas vão na linha da “consciousness” (ou da “awareness”) dos ingleses. Ei-los: “é o atributo pelo qual o homem toma em relação ao mundo (e, depois, em relação aos chamados estados interiores, subjetivos) aquela distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”. Uma segunda definição fala muito apropriadamente da consciência enquanto “o conhecimento imediato da sua própria atividade psíquica”.

A aproximação à questão da consciência, na perspectiva das neurociências pressupõe uma certa clareza em torno de dois pontos principais : entender os passos (fases) acontecidos na evolução interna das pesquisas neurológicas em sua conexão com um novo entendimento do fenômeno religioso em sua complexidade bio-psio-social 10.

2.2. Os pesquisadores dos anos 90, dão ênfase a três temas que consideram como fundamentais para a elucidação do assunto em questão.

O primeiro é o problema da consciência e do self. Antes de mais nada é necessário frizar que a questão da consciência é mais ampla que a do self. O problema da consciência envolve um outro, o de entender como o cérebro humano, dentro do conjunto orgânico do Sistema Nervoso Central e do corpo em seu todo, desenvolve as imagens ou padrões mentais (“mental patterns”) de um objeto qualquer.

A palavra “objeto” recobre aqui entidades tão diversificadas quanto a própria pessoa, um lugar, uma melodia, uma dor de dente, uma situação de trânsito, uma relação pessoal com uma outra pessoa ou um valor que pode ser objeto de amor ou de ódio. Por “imagem” deve-se entender um “padrão mental” , construído desde diferentes modalidades sensoriais, quais, por exemplo, a imagem de um som, de uma percepção tátil, de uma sensação de bem-estar. Tais imagens são composta de vários elementos: as características físicas do objeto, a reação de prazer/desprazer que ele suscita em nós, os planos e reações que ele provoca e também as conexões que a consciência estabelece – pela tríplice via da memória, do sentimento e da razão – entre a imagem daquele objeto e e as de outros que já estão dentro do sujeito. Uma imagem psíquica nunca é um retrato parado; é, antes, um filme que reúne em cenas e enredos elementos como o som, a cor, as expressões faciais dos atores, etc.

O problema que se põe para a neurofisiologia é o de entender como o cérebro constrói estes padrões (redes e circuitos) neurais e os transforma em imagens mentais dotadas de sentido e que superam o nível puramente fisiológico, adquirindo características humanas. Ver o azul do céu e inebriar-se com sua beleza, por exemplo, é mais do que sentir um determinado estímulo visual na parte do cérebro que elabora as imagens visivas.

Mas, o trabalho da consciência não para aí. Além de gerar imagens mentais dotadas de sentido, a consciência gera um “sentido do self” que é inerente à atividade eminentemente humana do “conhecer”. As imagens todas têm no “self” uma dimensão de unificação e de continuidade que confere a cada imagem e ao conjunto de todas as imagens mentais, perceptivas e sensoriais presentes em nosso cérebro um caráter inequívocamente idiossincrático e individual. Por exemplo: enquanto eu escrevo esta página, eu tenho objetivos, preocupações e sentidos que são só meus (do meu “self”); enquanto você, leitor, fará a leitura deste texto desde conotações que são exclusivas do seu próprio “self”. Outras serão as conexões, motivações e nível de envolvimento e interesse que você terá, em função do seu “self”.

Entra aqui toda a sua biografia pessoal. Se você estiver fazendo um curso de psiconeurologia, o nível e a intensidade de seu interesse será provavelmente maior e diferente do de alguém que estiver estudando um autor como Mestre Eckhardt, pois este artigo evocará, em cada um dos dois casos, imagens mentais distintas, fazendo com que o “self” se volte para referenciais cognitivos e afetivos igualmente distintos. Considerando o acima dito, compreendemos que a consciência, de seus níveis mais elementares até os mais refinadamente humanos, é um padrão mental unificado que correlaciona um objeto (ou muitos, ou todos os objetos presentes em nós) com o nosso “self”.

Um segundo tema é o da correlação entre mente e cérebro (e, em conseqüência, comportamento. Consciência e mente 11 acham-se unidas em primeira pessoa. Eis aí um dado primário da auto-percepção. Estão, ao mesmo tempo, estreitamente unidas à nossa ao nosso comportamento e à nossa auto-percepção intra e extrapessoal 12. Seja analisando a nós próprios, seja analisando os outros, nós todos sabemos disto. A conexão entre mente e comportamento interno e externo tem sua base no cérebro e no corpo e é preciso associar esses componentes todos para se entender o que seja e como funciona a consciência. Nem todas as imagens construídas pelo cérebro são acessíveis à consciência. Logo, pode-se e deve-se distinguir a “consciência” das “imagens” e o “cérebro” da “mente”. O “self”, por sua vez, é mais que a somatória de tudo isto.

Não há unanimidade de pontos de vista nas relações existentes entre cérebro e mente, muito especialmente quando eles se referem à consciência. Nas últimas duas décadas as ciências neuro-cognitivas fizeram avanços notáveis graças a tecnologias que permitem “ver” como certas estruturas e funções cerebrais se realcionam a determinados comportamentos e reações mentais. O comportamento e qualquer estado mental e psicológico têm sempre e seguramente uma contraparte em atividades cerebrais e neuro-químicas. A grande dúvida é a que toca a maneira como tudo isto funciona e se conjuga , possibilitando o surgimento de estados superiores da mente humana.

O terceiro tópico que nos interessa sublinhar é o da relação entre a neurofisiologia e a neuropsicologia. As modernas concepções sobre o funcionamento do cérebro/mente são devidas a fatos bem constatados, embora não inteiramente pesquisados. Tais fatos estabelecem novos insights sobre as relações entre a neurologia e a psicologia. Primeiro, sabe-se hoje com certeza que alguns processos da consciência estão relacionados a operações em áreas bem específicas de algumas regiões e sistemas cerebrais. Com isto, conhece-se hoje o que Damásio chama de “arcabouço neurológico” de sustentação da mente. Estudos aprimorados nessa área já são realizados no Brasil. Cruz e Landeira Fernadez, por exemplo, descrevem com minúcia tecnológica as estruturas e processos cerebrais envolvidos nas respostas do cérebro ao medo e à dor, o que “torna possível não só um conhecimento mais detalhado de como o cérebro deflagra e regula esses sentimentos, mas ainda revelam como e porque as psicoterapias são capazes de reduzir os sintomas de distúrbios como fobias, ansiedade e pânico” 13. Um segundo fato tido como certo é o de que os estados de vigilância e os de “baixa-atenção” podem ser separados. Certos pacientes portadores de lesão cerebral podem estar acordados e atentos sem estar em um nível normal de vigilância. São fatos e constatações que não podem deixar de chamar a atenção, por exemplo, do psicólogo interessado em detectar o que subjaz aos estados de euforia, pacificação interior e transe freqüentemente observados em situações de intenso fervor religioso, o que é comum nos cultos de cura que hoje proliferam em todas as cidades brasileiras de maior porte.

Há mais dois fatos que talvez sejam ainda mais reveladores: consciência e emoção não são separáveis; estão sempre unidas e ambas inexoravelmente atadas a processos do corpo. Eis, finalmente um quarto fato: a consciência não é monolítica; ela pode ser separada em dados mais elementares e conjugada em conjuntos mais complexos. Para Damásio, como se verá adiante, existe uma consciência “nuclear” (que é algo mais próximo ao biológico) e existe uma consciência “estendida” (que é algo mais de tipo “mental”). As duas diferem neurofisiologicamente e têm implicações diversas para o “self”, para a mente e para o comportamento.

IV. Novos enfoques metateóricos da neurofisiologia

1. Nos últimos dois decênios as neurociências começaram a investigar a maneira como o cérebro consegue criar imagens e elaborar sentimentos finalizados. Os neurocientistas perseverando em sua busca de respostas às questões de sua área especificamente experimental, passaram a abrir-se à consideração do que antes era tido por eles como uma questão não científica. Começaram a surgir trabalhos conjuntos de psicólogos, filósofos, teólogos e neurologistas. Surgiram revistas espeialmente dedicadas à essa área interdisciplinar do religioso. É o caso da revista Zygon, publicação norte-americana de sólido renome científico. Na bibliografia de primeiro plano citam-se nomes de neurocientistas como P. D. Mac Lean, A. Damásio, Steven Pinker, E. d'Aquili e Newberg, , R.E. Ornstein, J. LeDoux, H. Gardner, Roger Penrose, etc e de filósofos como John Searle, Jerome Brunner, Robert Forman e Daniel Dennett, além de muitos outros 14.

Cientistas das mais diversas especializações, imbuídos ou não de convicções religiosas pessoais, se perguntam hoje sobre o possível papel da religiosidade neste emaranhado que mal começa a ser desvendado. Interessante que muitos deles vêm da Física Quântica, da Astronomia, da Química Orgânica e da Biologia, ciências que por serem “naturais” e não “do espírito” (lembrem-se da distinção de Dilthey 15), eram consideradas teórica e metodologicamente como necessariamente “a-téias”. Alguns desses cientistas “da natureza”, seguindo um sonho pouco conhecido do jovem Freud 16, chegam a externar sua admiração pela demora dos teólogos em perceber a existência latente de uma questão religiosa por baixo das atuais discussões metateóricas propostas pelas recentes descobertas de suas respectivas ciências.

São sintomáticas as colocações, nem sempre sistemáticas, que já eram levantadas por cientistas 17 do porte de W. Heisenberg, A. N. Whitehead, L. de Broglie, E. Schroedinger ou Einstein. Livros de bom caráter divulgatório 18, como os de F. Capra, por exemplo, tentam mostrar que a física quântica toca aspectos que a sabedoria religiosa oriental conhecia desde milênios. Em outros termos, estamos diante de uma evolução inesperada que reverte as posições materialistas do século XIX e chegando, mesmo, a criar o perigo de se cair no extremo oposto de um espiritualismo ingênuo e a-racional. Em todo caso é difícil negar que “Deus” volta a ser uma hipótese “conatural” para quem vai fundo na discussão das implicações últimas dos achados científicos 19.

A novidade dessas novas opiniões da ciência pós-racionalista se evidencia, pela via do contraste, em uma estória jocosa narrada por John Searle a respeito de Bertrand Russel. Em certa ocasião, durante um banquete oferecido ao conhecido matemático e filósofo inglês, famoso também por sua posição duramente atéia, os alunos perguntaram a ele a seguinte questão:

Suponha que você esteja errado sobre a existência de Deus … que toda essa história (das religiões) seja verdadeira e que você chegue à porta do céu e São Pedro esteja lá. Tendo negado a existência de Deus toda a vida, o que você diria a Ele? Russell respondeu sem sequer titubear: “Eu iria até Ele e diria: Você não nos deu provas suficientes”.

É de se perguntar: será que Deus começou a mostrar suas provas?

2. Um bom exemplo dessa nova postura é-nos oferecido pelo scholar americano J. Searle, que tinha a ambição de criar uma teoria abrangente para o funcionamento da mente, da linguagem e da interação social humana 20, procurando uma via de saída para o interminável conflito entre os “religionistas” e os “naturalistas”. Searle escreveu um livro 21 que resume os conceitos e hipóteses por ele apresentados na polêmica que travou com o “materialista”

Daniel Dennett, nas páginas do “New York Times Book Review”. Para Dennett a mente não passa de um aglomerado de programas de hard ware implantados no winchester de nosso cérebro. Seriam programações que mais cedo ou mais tarde poderão ser replicadas por máquinas pensantes. Searle e outros que intervieram na polêmica, baseando-se nos resultados das últimas pesquisas sobre o funcionamento mental, desmentem a possibilidade de se igualar a performance global da mente humana com a de um computador avançado.

Na opinião de Searle, o que se sabe sobre a relação da mente com o organismo biológico e os processos superiores da mente, parece indicar que essa última não poderá jamais ser objeto de “clonagens” propriamente ditas, devido às suas características eminentemente idiossincráticas. A mente deve ser vista como algo diferente das máquinas inteligentes.Essas, mesmo após a sofisticação tecnológica dos próximos decênios, continuarão sendo artefatos humanos fundamentalmente mecânicos, podendo ao máximo “simular’ o que é próprio do ser humano.

O presente artigo se circunscreverá ao ângulo das neurociências. Seu objetivo é o de mostrar como também os psicólogos da religião que dominam as neurociências – por exemplo, C. Albright, J.B. Ashbrook, E. d'Aquili com seu parceiro A .B. Newberg, M. Meulders, etc. – se esforçam por rever os termos em que se coloca atualmente a relação entre neurociências e religião. Não pretendo entrar em noções de neuroanatomia e neurofisiologia. Minha preocupação neste texto não é a de expor os avanços da neurofisiologia e sim a de mostrar ao leitor/a as novas conexões que os resultados da pesquisa nesse campo revelam, exigindo a atenção do psicólogo da religião. Estamos ante os portais de uma problemática que vira a página da época que gerou as teorias de W. James, S. Freud , F. B. Skinner, W. Winnicott ou G.W. Allport.

 

 
1 Betto, Frei (1995)
2 Filoramo e Prandi abordam bem a tensão existente entre o “explicar” e o “compreender” que divide “religionistas” e “naturalistas” Cf. Filoramo, G. e Prandi, C., (1999, p. 8-ss.)
3 Cf Barbour, I., 1990.
4 Cf Almeida, A Ozorio, Criação e destruição, 2001, p. 7
5 D'Aquili, Eugene e Newberg, Andrew B., 1999, p. 9.
6 Damásio, António, R., 1998.
7 Sei que estes termos (“espírito”, “mente”, “consciência”, “experiência mística”) são usados com muitas acepções. Renuncio aqui a defini-los um a um. Ao longo da exposição irá se esclarecendo (parcialmente, ao menos) o seu significado, mas sem chegar, evidentemente, a definições unívocas. O esforço da reconceituação se concentrará é na superação da dicotomização entre “corpo” e “espírito” e entre “religião” e ” neurociências”.
8 Ashbrook, James B., 1996, 545 s.
9 Cf Ornstein, Robert, 1998.
10 Cf Damásio, A. , 1999, 8 – 19.
11 O termo “mente” incorpora, para Damásio, tanto operações conscientes quanto inconscientes. O termo não se refere a uma “coisa” e sim a um processo. No nível consciente a mente é percebida como uma corrente permanente dos padrões mentais gerados pelo cérebro. Muitos deles têm forte correlação lógica e de sentido, mas existem também pontos de confusão e incoerência. Nem tudo está organizado e no lugar. Do ponto de vista do tempo esta corrente caminha para a frente em ritmos e movimentos diversos, nem sempre coesos entre si e, às vezes, plurais. As seqüências podem ser convergentes ou divergentes entre si. Podem também sobrepor-se e/ou contrapor-se. A mente, segundo Damásio, na elaboração das “imagens”, trabalha com todos todos os sentidos. (Cf Damásio, A . R., 1999, 337).
12 Podemos aqui fazer interessantes paralelos com a maneira como hoje é vista a inteligência por alguns dos maiores psicólogos infantis da atualidade. É o caso de Howard Gardner (1995) com sua teoria das inteligências múltiplas. Contrapondo-se ao senso comum e a antigas teorias da inteligência, ele fala de uma inteligência intra e de outra inter pessoal, que trabalham em conjunto, embora sejam instâncias separadas e mexem tanto com a afetividade quanto com o raciocínio da criança.
13 Cf Cruz, Antonio P. de Mello e Landeira-Fernandez, J., A ciência do medo e da dor, em Ciência Hoje, vol. 29, 001, No. 174, p. 16.
14 Veja os títulos dos livros destes autores na bibliografia geral.
15 É a conhecida distinção, do filósofo alemão Wilhelm Dilthey, entre “Naturwissenschften” e “Geisteswissenchaften”.
16 Cf Fulgêncio Jr, Leopoldo, 2000.
17 Uma breve visão do pensamento destes autores pode ser encontrada em Wilber K. , 1995, 26 – 41.
18 É notória a existência de muito material de péssima qualidade sendo vendido no mercado livreiro. O livro de Capra, que é físico, se coloca em um nível mais elevado, embora, evidentemente, possa ser criticado. Cf Capra, F., O Tao da Física. Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, Cultrix, São Paulo, 1985.
19 É preciso ser muito precavido quanto a este retorno da “hipótese Deus”em textos escritos por cientistas. É um tipo do discurso que exige não só sólida competência científica como também boa formação filosófica e capacidade de reflexão crítica. Além, naturalmente, de maturidade humana, porque não dizê-lo, religiosa. Do contrário, se cairá facilmente em deslumbramentos simplistas e aproximações injustificadas.
20 Um interessante exemplo deste debate é o que se deu entre Karl Popper e John Eccles sobre o problema mente X corpo. Cf Eccles, John e Popper, Karl, 1995.
21 Cf Searle, J., 1994.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *