Neurociências e Religião: Interfaces (Parte 3)

 C. E tudo isto com a religião?

À esta altura é oportuno fazer um pequeno retrospecto do que se tentou mostrar na parte B do presente paper. Foi delineada uma visão de conjunto do modo como o cérebro humano trabalha no nível neuro-psico-fisiológico. Vimos que certas estruturas e redes neurais do cérebro são responsáveis pelos processos e atividades mentais que caracterizam o ser humano. Entre outras foram lembradas funções como a formação de imagens e de idéias, a linguagem, a orientação espacial, as respostas emocionais, as reações primitivas geneticamente herdadas que garantem reações fundamentais para a sobrevivência e a defesa da espécie e do indivíduo, etc. Dentro de uma tendência — hoje dominante — mostrou-se o cérebro e a mente de uma maneira holística e não como agregações de áreas e funções exclusivas, que podem até, eventualmente, trabalhar em conjunto, mas que precisam ser separadamente entendidas. Só uma discussão muito rigorosa e minuciosa poderia nos dar uma idéia exata de como funciona a mente e de como é ela que nos propicia os sentimentos e pensamentos que vivenciamos na chamada experiência religiosa.

Discussões tão pertinentes assim escapam à competência de quem é apenas diletante em Neurologia e Bioquímica Orgânica, como nós 36. Deu para perceber que para neurologistas atualizados “a mente é o nome que se dá a realidades intangíveis produzidas pelo cérebro” (d’Áquili e Newberg, 1999, 47). Essas realidades são múltiplas: o pensar lógico, a vida afetiva-emocional, a arte, as intenções e os ideais, o amor, a fé e um sem número de outras “realidades intangíveis”. Em linguagem religiosa, poderíamos, com W. James 37, continuar essa enumeração: “presença de Deus”, “sentimento religioso”, “reações solenes”, “sensação de irrealidade”, “vida como dádiva”, “unidade atingida”, “excitação soberana” “paz de espírito”, “consciência cósmica”, “divisão do eu”, “fusão”, etc. Todas essas experiências e percepções, de uma ou outra forma presentes nas religiões, caem sob o manto da chamada mente. Sem sombra de dúvida, também, deve-se dizer que elas se relacionam com o cérebro.

Mas, como e em que sentido cérebro e mente se relacionam entre si e como e em que sentido ambos se relacionam com as experiências que fenomenologicamente devemos e podemos chamar de “religiosas”? São cérebro e mente duas coisas distintas ou são uma só realidade? Para certos autores e escolas a resposta é categórica: não existem realidades “intangíveis”; tudo se reduz ao cérebro. Também o “mental” é igual a cerebral. As atividades neurais responsáveis pela criação de um pensamento, por exemplo, seriam devidas ao cérebro e não à mente em si. Logo, o pensamento ou qualquer imagem mental são tão  somente um epifenômeno de outros mecanismos produzidos e geridos pelo cérebro. Os neurônios e estímulos eletroquímicos que visibilizam o que chamamos de mental é que contam 38.

A posição de um número significativo de neurofisiologistas de hoje, porém, é outra e bem diversa da acima elencada. D'Aquili e Newberg, por exemplo, atiram muito alto na resposta a àquela questão. Chegam a postular e defender a existência de uma “mente mística”, para eles não um conceito religioso e sim um termo técnico indispensável para uma discussão científica séria sobre as conexões cérebro-mente-mística. Um conceito, portanto, que nada tem de “angelical” e que, no entanto, usa sem pejo algum uma palavra que há milênios é quase que privativa dos religiosos e dos teólogos.

I. Três linhas de aproximação à questão fundamental que nos ocupa

Passamos, agora, a ver três pontos de vista abalizados que podem nos ajudar a aprofundar o visto e discutido até aqui: o (1) o de Damásio; (2.) e o de V. Turner, talvez o mais eminente antropólogo de hoje e (3.) o de d'Áquili e Newberg.

1. Um ponto de vista mais cauteloso: Damásio Consultando o índice remissivo dos dois livros de Damásio não encontramos o verbete “religião” ou “religiosidade”. Mas, em ambos, ele fala reiteradamente de “juízo moral”, ‘amor verdadeiro”, “generosidade”, “compaixão genuína”, “amizade sincera”, “honestidade”, “livre arbítrio”. No segundo livro vai um pouco adiante, falando de “atitudes humanas sublimes”, “altruísmo”, “guerras morais”, “êxtase” e “júbilo”, “crenças”, “intenções”, “valor”, “dignidade” e “beleza” e por aí a fora. São termos, sem dúvida, densos de significado também religioso. Evidenciam-se em todas estas inúmeras passagens as preocupações humanistas, culturais e sociais do autor.

Como explicar seu silêncio sobre a dimensão religiosa da consciência humana ? Será devido a pruridos de cientista, que deve se ater a um linguajar “cientificamente correto” e que por isto prefere falar daquilo que os comuns mortais denominam “religião” através de eufemismos como a expressão “mecanismos neurais que sustentam o repertório suprainstintivo”?

Será em razão de uma convicção pessoal de quem julga o religioso um espaço que é preferível se evitar em textos de ciência? Ou será, mesmo, respeito ante algo maior, que o cientista de hoje está aprendendo a contemplar como algo inefável, mas de alguma  maneira indiciado pelos segredos da natureza que ele vai descobrindo?

Em todo caso, importa mostrar que teorias cautelosas quanto às dimensões religiosas, como a de Damásio, não só não fecham as portas a um diálogo novo entre “ciência” e “religião”, como abrem verdadeiras avenidas para uma consideração original das relações entre os dados cientificamente constatados a respeito do cérebro e da consciência e a experiência do transcendente que tão teimosamente o ser humano e a humanidade tendem a conservar.

Nessa linha, Damásio escreve que o que ele chama de consciência “não deve ser visto como o cume da evolução. As criações que vêm da consciência – a moral, as religiões e leis, as artes e as ciências – é que são o pico. Sem o senso do “self” e o senso do outro, duvido que alguém poderia construir a ética como o fizemos”.

2. Um ponto de vista mais ousado: o antropólogo V. Turner, refletindo sobre as muitas dicas que advêm da neurofisiologia e especialmente do modelo do cérebro trino de MacLean, levanta algumas questões que são de grande interesse para a psicologia da religião. O mais notável é que tais perguntas partem de alguém profundamente interessado em relacionar neurofisiologia e cultura (ou, porque não dizer, neurofisiologia e religião). Ele pergunta:

  • Como tudo isto se encaixa no modelo de id-ego-superego de Freud/
  • e/ou com o inconsciente coletivo e os arquétipos de Jung?
  • Ou com a teoria da seleção das espécies de Darwin?
  • Ou com os estudos transculturais da antropologia?
  • Ou com os estudos da história comparada das religiões?

E arremata, perguntando com Burhoe:

“até que ponto é verdade que os sentimentos humanos, as esperanças e temores do que é mais sagrado são um ingrediente necessário na elaboração das decisões e na motivação de sua implementação? Esta questão – acrescenta ele – está ligada com o problema de ser ou não verdade que tal informação é necessariamente filtrada por áreas altamente programadas geneticamente no cérebro inferior no tronco cerebral e no sistema límbico. Mais questões surgem: por exemplo, se a ritualização 39 discutida por Huxley, Lorenz e outros etólogos, tem uma fundamentação bio-genética, enquanto que o significado tem uma base no aprendizado neo-cortical, isto significaria que o processo criativo, este que gera novo conhecimento cultural, poderia resultar da co-adaptação, talvez no próprio ritual, de informações genéticas e culturais? Nós também podemos perguntar-nos se o neo-córtex não seria sede de programas altamente estruturados pela cultura na transmissão da linguagem e outros sistemas simbólicos com o objetivo de modificar as expressões de programas genéticos. Até que ponto podem estes símbolos altamente elaborados como os da religião e rituais, derivar seus significados e força para agir de suas associações com as etapas neutras de ritualização animal estabelecidas anteriormente?” (Turner, 2000, 6- 7).

Nos últimos decênios os progressos da neuropsicologia foram de tal monta que zoólogos, etólogos, geneticistas, biólogos, neurologistas, psiquiatras, psicólogos e antropólogos se reuniram para discutir em bases novas o que este impressionante conjunto de descobertas trazia para certos comportamentos rituais (eu quase diria, “religiosos”) que se notam já em espécies animais, mas se tornam expressivos é entre os seres humanos. Em Londres cientistas do primeiríssimo escalão – em 1965 – reuniram-se para debater os comportamentos rituais 40. Não os preocupava, naquele instante, a religião em si e sim a necessidade de rever a visão científica de certos rituais através dos quais os seres vivos superiores se relacionam entre si. Vítor Turner, presente ao simpósio, voltou deliberadamente ao assunto mais de 30 anos depois, por honestidade intelectual e por força de ditames sua consciência de cientista. Ele escreve 41:

“Parece-me que a religião pode ser, pelo menos parcialmente, o produto da intuição da humanidade quanto à sua dualidade interior e do frutífero e criativo Espírito; gerada pelo jogo mútuo da herança genética, como sendo o Senhor do Tempo e o cérebro superior, como o Logos – para usar uma linguagem intuitiva de uma religião histórica, o cristianismo. O princípio Filioque (o Espírito procedendo do Pai e do Filho), os cristão ocidentais poderiam dizer! Uma vez que a cultura é, parafraseando Wilhelm Dilthey, uma mentalidade objetivada e cristalizada (Geist), pode muito bem ser que umas culturas reforçam a um ou outro dos sistemas cerebrais semi-autônomos às custas do outro, através da educação e de outros métodos de condicionamento. Isto resulta em conflito entre eles e a repressão de um sobre o outro, em vez do livre intercâmbio e apoio mútuo – que muitas vezes é chamado amor”

A preocupação de Turner é com a cultura, não com a neurofisiologia. De modo penetrante ele percebe a importância do que ouviu de etólogos, psiquiatras e médicos. Meditando sobre o assunto, convenceu-se, a exemplo de d'Aquili, da possibilidade e da necessidade de se criarem condições para um intercâmbio entre os dados tão interessantes de cada uma das ciências em causa. Turner se restringe mais ao diálogo entre a antropologia e as neurociências e enuncia claramente seu ponto de vista favorável à abertura de um diálogo entre esses dois ramos do conhecimento humano:

“um genuíno diálogo entre neurologia e culturologia (!), desde que ambos os lados tenham em conta a capacidade do cérebro superior de adaptar-se, sua plasticidade, capacidade de aprender e simbolizar, em caminhos talvez negligenciados pelo etólogos pur sang, que parecem ter parado cedo em seu pensamento a respeito da ritualização, fixando-se nos comportamentos mais obviamente programados geneticamente no cérebro inferior. É para os aspectos dialéticos, e mesmo para os tempos contraditórios, entre os sistemas do cérebro humano que deveríamos olhar e buscar a formulação de hipóteses testáveis sobre o procedimento ritual e seu papel como realização de funções noéticas com meios peculiares a este contexto e entendê-lo como sendo um modo sui generis de conhecimento”

3. A “Neuroteologia”: é possível?

3.1. Experiência do sagrado e religiões

De todas as perguntas levantadas pelo ser humano ao dar conta de si no universo, nenhuma foi mais persistente e pervasiva que a que invoca um “ser divino” e/ou da existência, digamos, de “estados elevados de ser”.

Tais perguntas com suas respectivas tentativas de resposta passaram bem cedo a ser algo privativo das religiões, não obstante sua incidência sobre o dia-a-dia das pessoas e dos grupos. Nas “civilizações altas” a compreensão e reflexão sobre o “sagrado”, para usar o termo de R. Otto, foi reservada aos aparatos sacerdotais e codificadas em sistemas de saber teológico, nem sempre isentos de ideologia. Esses códigos e ministros tinham a tarefa sapiencial de conduzir as pessoas até essa ordem e compreensão mais elevada de coisas.

Claro que tudo isto dentro do quadro maior apontado pela sociologia. Nas formas históricas de religião tudo se desenrola com muita nitidez. Elas se revestem das mais diversas formas conceituais e rituais, mas designam e visam no fundo fenômenos, estados e percepções bem semelhantes. Nas culturas do Oriente – Budismo, Hinduismo, Taoismo, Xintoismo – as religiões tenderam a afastar-se da noção de um “ser supremo” per se” e passaram a concentrar a atenção em um estado de bem estar centrado em uma realidade última de alguma forma transcendente ao existir cotidiano. Este estado poderia ser alcançado através de exercícios de meditação, que assumiam formas e nomes variados, mas caminhavam todos em direção a um destacar-se do cotidiano, do corpo e das preocupações mais imediatas do viver.

No Hinduismo este estado final de repouso é Brahma, enquanto que, no Budismo, é o Nirvana. No Ocidente e Oriente Médio – em suas três principais religiões, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – o ser supremo é uma pessoa, o que dá à religião e à teologia uma conotação específica, de cunho relacional, que tem seu ápice na reciprocidade assumida livremente, através de um diálogo inter-pessoal e de um chamado – opção descoberta pelo discípulo. Mas, em sua essência, a experiência místico-religiosa subjacente ao proposto por todas estas religiões tem flagrantes pontos de contato no tocante às suas experiências, práticas, rituais e crenças essenciais.

As religiões da humanidade, das mais “primitivas” às mais sofisticadas, surgiram só na medida em que os mecanismos neuropsicológicos humanos se apuraram e assumiram as características do sentir, do agir e do pensar propriamente humanos. São características que se vinculavam ao senso de si e dos outros em um mundo e uma natureza percebidos como necessários e imanentes, mas também, de alguma forma relacionados com forças ou entidades “transcendentes”. Esta evolução da religião durou milhares e milhares de anos, tendo sua raízes em épocas muito anteriores às estudadas pela história. Exatamente por causa desta mescla de imanência e transcendência as mudanças verificadas nas religiões foram não só lentas como também conservadoras.

Os estudiosos da religião do século XIX, que foram os primeiros a desvendar os segredos das religiões não ocidentais, chegavam a surpreender-se da relativa homogeneidade do que encontravam nas religiões que iam conhecendo. Essa é uma das razões porque eles tinham como meta chegar a uma única “ciência da religião”. Note que tanto a palavra “ciência” quanto “religião” estão no singular.

1. Alguns pioneiros da “Neuroteologia”

O diálogo entre as neurociências com a psicologia da religião não pára em posições teóricas como a de V. Turner. Com C.R. Albright, J.B. Ashbrook, Eugênio d'Aquili e Andrew Newberg, entre outros, as perguntas e respostas sobre o que se passa na interface entre as duas abordagens tornaram-se mais precisas. As respostas teóricas se fizeram mais ousadas, mas sempre dentro dos padrões de aderência ao que a pesquisa neuropsicológica foi revelando.

3.1.1. d'Aquili e Newberg Mencionaremos aqui algo sobre o trabalho de dois pioneiros norte-americanos: Eugene d'Aquili e Andrew Newberg 42. Um crítico 43 diz que o último livro destes autores é um “fascinante estudo da base neurológica da experiência mística e religiosa… (e um) trabalho que prova explicitamente a biologia da experiência religiosa”.

Tem razão o crítico. Os dois pesquisadores — permanecendo psiquiatras e neurologistas – entram destemidamente em uma discussão que se aventura explicitamente por um terreno cheio de armadilhas, o da “neuroteologia” 44. Este se situa na interface de uma ciência “hard”, a neurofisiologia e de outra “soft”, a fenomenologia teológica da religião, buscando entender complexiva e compreensivamente a consciência teológica que as culturas e, em outro patamar, os seres humanos elaboram sobre o sentido de seu existir no mundo. As idéias dos autores são difíceis e precisam ser lidas no original, tal sua densidade. Aqui serão apontados só um que outro dos aspectos capazes de mostrar ao leitor do que se trata. O trabalho de d'Aquili teve início há 25 anos atrás, no contexto de uma Faculdade de Medicina. Contou com a cooperação de vários colaboradores. Começou pela análise da experiência religiosa em culturas antigas. Para d'Aquili existe uma concomitância entre a evolução das culturas e a da experiência religiosa do seres humanos. Hoje dispomos de uma tremenda quantidade de dados a respeito. Elas cobrem sejam as experiências religiosas, seja o funcionamento do sistema nervoso, do cérebro e da mente humana. O que d'Aquili e Newberg tentam em seu livro mais recente — dando seqüência a um esforço que encontra sua primeira tentativa de sistematização em 1975 45 — é viabilizar uma compreensão do fenômeno religioso que integre as duas vertentes em causa. Em primeiro lugar ele aborda o que a pesquisa neurocientífica tem a dizer e a contribuir. Depois, secundariamente, investiga e discute qual o aporte da antropologia teológica para o esclarecimento da experiência religiosa. Fechando a abóbada, examina as implicações que a experiência em si mesma tem a dar à bio-antropologia e à formação de uma possível neuroteologia.

A originalidade destes autores – em nada fantásticas — consiste em construir e fundamentar suas hipóteses e quadros teóricos sempre a partir das neurociências, mas sem perder de vista o lado propriamente religioso de cada argumento em pauta. Isto dá à sua obra um sabor de atualidade e ineditismo. Estamos ante um modelo seguramente ainda provisório, mas exemplar do que poderia vir a ser um trabalho integrado entre as neurociências, a psicologia e as ciências da religião. É um panorama que abre horizontes promissores também para a psicologia da religião.

Eis algumas das questões que d'Aquili e Newberg enfrentam em seu bem documentado livro:

  • “o que torna algo “espiritual”?
  • porque as experiências religiosas são tão poderosas?
  • Como podemos entender a experiência religiosa, desde uma perspectiva biológica?
  • Como a mente humana experimenta o sagrado?”
  • Que mecanismos (sensoriais, emotivos, auto-perceptivos, cognitivos) e que estruturas biológicas subjazem aos estados místicos e de transe?
  • que as experiências religiosas e místicas podem nos dizer sobre a mente e a realidade?
  • Tem a religião alguma função na evolução(biológica) da espécie?”.

 Ante o leitor vai sendo criado, passo a passo, um modelo integrado que explica tentativamente, em capítulos específicos, os mitos, os rituais, a meditação e as “near death experiences”. Temos, na realidade, em mãos um quadro de fundo que descreve quase todos os aspectos que interessam a uma compreensão abrangente e polifacetada do que os autores chamam de “mente mística” (“mystical mind”).

3.1.2. A “mente mística” (= “mystical mind”)

Devido à linguagem “transdisciplinar” usada pelos autores não é tarefa simples dizer em poucas palavras o que seja a “mente mística”, nome criado por d'Aquili e colaboradores para designar o modo de captação do mundo presente em todas as culturas e em todos os seres humanos, exatamente porque obediente a necessidades inseridas no próprio processo evolutivo. Resumo apenas e muito brevemente o essencial do que escrevem a respeito os autores. A intuição mestra deles, o que querem comprovar é algo relativamente simples.

Sabemos que o cérebro humano, devido às notáveis potencialidades que possui em virtude de um modelamento sofrido por milênios e milênios de evolução, traz em si mesmo certas capacidades “inatas” que adquirem feições próprias em cada cultura concreta. Por exemplo, todos os seres humanos e todas as culturas desenvolvem alguma forma de expressão musical ou de cálculo numérico. Existem algumas extremamente cultivadas e refinadas e outras que são toscas e primitivas. Mas são o mesmo corpo, o mesmo aparelho fonador, as mesmas mãos e o mesmo cérebro que criaram tais formas. O mesmo se diga da poesia ou do teatro. Ora, todas essas manifestações nascem da ação conjunta dos dispositivos e padrões culturais e dos padrões e redes neuroquímicas de que o homem é dotado. Porque não hipotizar o mesmo a respeito da religião ?

Sublinhemos dois aspectos que os autores vêem como importantes para se compreender o que pretendem ao postularem uma “mente mística”. Após minuciosa descrição do funcionamento do cérebro e da mente (que para eles, na prática, acabam sendo dois nomes para uma só e mesma coisa), eles passam a fundamentar aquele conceito com dois argumentos. Baseiam-se, primeiro, no fato de as funções exercidas pelo cérebro/mente levarem, por si mesmas, a experiências de tipo místico, construídas sobre uma percepção espontânea e natural do maravilhoso que transcendente. D'Aquili e Newberg descem a pormenores neurofisiológicos 46 de como isto se dá. Como segundo ponto de partida 47 tentam demonstrar que o cérebro e a mente têm condições intrínsecas para gerar estados místicos e para nos fazer vivenciá-los 48. Assim sendo é válido usar o adjetivo “místico” para caracterizar algo que a mente/cérebro possibilitam e fazem de fato. Não é de uma especulação de filósofos e teólogos e sim uma realidade biológica humana que precisa ser reconhecida em todas as suas reais dimensões e aspectos.

Os autores buscam tornar acessível a compreensão do adjetivo “místico” aposto à palavra mente, comparando a neurofisiologia à física quântica. No funcionamento do cérebro/mente dar-se-ia um fenômeno similar que se verifica na física atômica. Há experimentos que mostram que, dependendo da maneira como é medido, um elétron parece agir como se fosse simultaneamente uma onda e como se fosse uma partícula. Não se pode objetivamente dizer que o elétron seja uma partícula, mas tampouco se pode defini-lo como sendo uma onda. A única coisa que se pode logicamente deduzir desse experimento é que o elétron só pode ser definido – simultaneamente — como onda e como partícula. Isto não é uma contradição nos termos. É algo que pode ser verificado em laboratório.

Semelhantemente pode-se dizer da mente e do cérebro que eles não são duas realidades separadas e distintas. São simultaneamente neurônios e imagens mentais. São sentimentos e produtos do espírito. São a um só tempo realidade “mística” e realidade “material”.

Neuro-psiquicamente falando, na experiência de arrebatamentos místicos como já apontava William James, há, em geral, uma diminuição e até uma completa ausência de diferenciação entre os objetos. Na experiência mística os contraditórios se dissolvem; tudo tende a uma “oneness” não diferenciada, a uma conjunção de contrários. A experiência mística só pode ser compreendida enquanto produto do cérebro e da mente, enquanto sim e não, enquanto imanente e transcendente. As imagens e percepções religiosas vividas na experiência do divino são em si mesmas “místicas”, isto é, são resultantes de uma fusão de contrários análoga à identificação da onda e da partícula descrita pela física quântica.

 

 

 


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22 Cf Damásio, A., 1995 e 1999.
23 Para citar um exemplo brasileiro, menciono as pesquisas de Espere A . Cavallheiro, do laboratório de Neurologia Experimental da Unifesp de São Paulo. Ele estudos a fundo porque dois cérebros com lesões iguais desenvolvem enfermidades disrtintas (por exemplo, em um a disfunção neuronal gera a epilepsia, em outro provoca um derrame, dois quadros nosológicos que nada têm em comum. Para uma informação sumária, cf. Arantes, Tadeu, Memória seletiva, em Pesquisa -PAPESP, Suplemento especial-Infraestrutura 3, , 2001, No. 66, p. 32-35.
24 O que acontece de fato, como o MRI o demonstra, é que a maioria das pessoas, de língua inglesa ou não, contam normalmente só quatro letras “F”, (deixando de contar os “F” das preposições “of”). A razão é a seguinte: o cérebro processa palavras curtas que nos são familiares como se fossem um símbolo, isto é, não as divide em unidades menores, como aprende a fazer com palavras mais longas ou pouco familiares (caso mais freqüente quando se trata de outra língua). Os dois tipos de palavra (as curtas com “of” e as de tamanho normal) são processados em áreas diferentes do cérebro ainda pouco conhecidas. As novas tecnologias estão permitindo “ver” diretamente isto na tela.
25
26 Cf CARTER, Rita, 1999. Várias das observações deste parágrafo são tiradas deste livro, escrito por uma jornalista especializada.
27 Nesta hipótese os doutorandos de amanhã se alvoroçarão ante a possibilidade de poderem conceber e redigir suas dissertações com a ajuda de laboratório de neurociências.
28 Observe-se que vanguardas controvertidas da especulação trans-psicológica pensam que este gênio já chegou na pessoa de Ken Wilber (nascido em 1954), batizado por alguns deles de ” o Einstein do conhecimento”. Cf. VALLE,, Edênio, 1998, 226.
29 CRICK, Francis, 1994.
30 Damásio fala aqui de um “saber” que não é o do animal. Trata-se de um saber noético e axiológico. É uma “scientia” e é uma “com-scientia”.
31 CONCAR, David, 2000, 14.
32 J.P. Henry e P.M. Stephens ajuntaram a estes três um quarto cérebro. De fato, segundo eles, o quarto cérebro seria representado pelo hemisfério cerebral dominante (o esquerdo) que filogeneticamente seria o mais recente e apanágio exclusivo da espécie humana. Apud Turner, 2000, p. 4.
33 Cf Ledoux, Joseph, 1998. Este autor faz uma excelente descrição de todo este processo deixando bem delineado o que é novo na visão das relações entre o tálamo e a amígdala, de um lado, e o neocórtex, do outro.
34 MAGNANI, José G., 1996. Cf também VALLE, Edênio, 1998, p. 201 – 228.
35 A repressão, mecanismo de defesa do ego, postulado pela psicanálise, à essa luz, carece de uma revisão e complementação sérias.
36 Sem qualquer exagero um leigo (e mesmo um médico formado) levaria anos para ter condições de ler bem um livro como o de MacLean, ,1990.
37 Cf JAMES, William, 1995, 20 ss.
38 D'Aquili e Newberg dizem que não há como negar que existe certa evidência teórica e fática em favor dessa tese, que é herdeira direta do “materialismo médico” do qual se queixava já William James. O novo é que a tese se apresenta de maneira bem diversa da que era à época do grande pioneiro norte-americano.
39
40 Veja em TURNER, V., 2000, 1-4 uma informação e discussão a respeito dos rituais religiosos. Turner esteve na reunião de Londres de 1965. Mais de trinta anos após, senhor de grande bagagem de conhecimentos antropológicos, ele voltou ao assunto, escrevendo um artigo de peso a respeito dos rituais, vistos na perspectiva da neurologia, da antropologia e de várias outras abordagens científicas do fenômeno religioso. Turner enumera entre os presentes ao simpósio de Londres: Julian Huxley, Konrad Lorenz, R.A . Hinde, W.H. Torpe, Desmond Morris, N.M. Cullen, F.W. Braestrup, I. Eible-Eibesfeld, Edmund Leach, Meyer Fortes, Erik Erickson, R.D. Laing e G. Morris Caister, Maurice Bowra, E. H. Gombric, Basil bernstein, H. Elvin, R. S. Peters, David Attenborough, William Wise e outros.
41 Cf Turner, V. , 2000, 20.
42 As opiniões de Albright e Ashbrook serão tratadas em sala de aula com o o apoio dos artigos elencados na bibliografia.
43 Este comentário se encontra na contracapa do livro de d'Aquili, E. e Newberg, A. B.,1999. É de autoria da revista de resenhas “Publisher Weekly”, de Nova York.
44 Cf d'Aquili, Eugene e Newberg, Andrew B., 1999, 163 – 195.
45 Trata-se de um artigo escrito para a revista Zygon, fundada exatamente para discutir as fronteiras entre a ciência e a religião. Cf : d'Aquili , Eugene e Laughlin, Charles, 1975.
46 Cf d'Aquili e Newberg, 1999, 77 – 94.
47 Cf d'Aquili e Newberg, 1999, 48.
48 Um argumento, meio filosófico-epistemológico, que d'Aquili e Newberg vêem como controvertido e a ser discutido é se o cérebro e a mente “causam” ou se apenas “criam condições” para o aparecimento da experiência mística.
 

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