Luiz Carlos Lisboa (Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1929) é um escritor e jornalista brasileiro. Autor de cerca de 40 obras, entre ensaios, contos, uma trilogia (romance), traduções, cinco guias literários e livros de entrevistas com artistas e intelectuais brasileiros do nosso tempo. Ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura em 1973. Desde 1992 é membro da Academia Paulista de Letras (cadeira nº 6).
Lisboa reside há quinze anos em Princeton, nos Estados Unidos da América, onde já foi correspondente de jornais brasileiros. Atualmente faz ali palestras e organiza cursos de cultura geral. Seu livro mais recente, O Som do Silêncio, foi traduzido pela Obelisco Ediciones de Barcelona, Espanha, e está sendo distribuído também para países de fala hispânica. Sua tradução de A Nuvem do Desconhecimento, um clássico anônimo inglês do misticismo medieval, foi publicado em 2007 pela Lótus do Saber, uma editora do Rio. Ele também traduziu as poesias e textos poéticos da editio princeps do livro “Autobiografia de um Iogue”. Lisboa é autor de uma trilogia sob o título geral de “Memórias de um Gato”, uma coletânea de contos (“Ante-Sala”), livros de ensaios e de artigos (“A Arte de Desaprender”, “Olhos de Ver, Ouvidos de Ouvir” e “Jejum do Coração”), além de guias de leitura (“Pequeno Guia da Literatura Universal”), tendo ainda organizado quase duas dezenas de biografias de contemporâneos para a Editora Rio. Ele entregou em 2009 a uma editora de São Paulo um romance de cunho autobiográfico (“Oito Vezes Samsara”), e tem em preparo um novo romance (“Flora”), bem como um ensaio sobre a vida e a obra de Mestre Eckhart, místico renomado do século XIV.
Esse problema imenso da violência no mundo, doença que contaminou todas as sociedades desse sistema de vasos comunicantes que é a cultura humana moderna, tem sido encaminhado sempre para as alternativas inevitáveis da punição e da advertência de fundo moral. Difícil encontrar uma colocação que não tome essas feições, ou que não acumule ambas para encurtar os caminhos e lavar as mãos. O homem de hoje é o mesmo de sempre, com sua animalidade e seus temores, desejos e agressividade, mas também com sua divindade muito característica. Alguma coisa detonou, nos últimos vinte anos, uma reação em cadeia que trouxe à tona o pior e relegou ao fundo do esquecimento o 'sal da terra'. A violência, como se sabe, é altamente contagiosa, e uma sucessão de causas e efeitos incorporou à vida humana o hábito da resposta violenta.
A abordagem do problema da violência por esses ângulos cansados do castigo e da advertência já não atende à necessidade de entender, que algumas pessoas começam a intuir como a única alternativa. Não é a violência que interessa, é o violento – é o fenômeno enquanto vivo, a brutalidade como ação.
Não é só uma questão de linguagem, há mais coisa envolvida nisso do que parece à primeira vista. Quando falamos em violência, estamos nos distanciando dela, estamos constatando sua existência longe de nós, em outro, ou até em tese. Somos os observadores da violência, da qual estamos separados. Essa é uma das ilusões sutis que a linguagem permite. Para entender a violência, perceber sua genealogia, seu surgimento e auge, é preciso conhecer nossa violência pessoal, atuando nesse nível discreto em que ela costuma atuar nas pessoas ditas civilizadas. Não é de psicólogos e sociólogos que precisamos para entender o fenômeno, mas de penitentes dispostos a um ato de contrição sem qualquer laivo de culpa, apenas interessados no problema. A descoberta da violência em nós, interna e externamente, nos nossos desejos e temores, na ação e na reação, é a extinção da violência no mundo – de início, em nosso mundo.
As ameaças de punição, o medo do castigo, a repressão, enfim, são técnicas inadequadas porque supõem a continuação da ignorância, isto é, da violência.
Ninguém deixa de ser violento fazendo força para não praticar atos violentos, dominando a própria vontade. O ímpeto está dominado provisoriamente, mas muito em breve haverá outra irrupção, talvez mais forte. Policiamento, cerceamento, prevenção podem obter resultados, é verdade, mas não curam uma epidemia dessa dimensão.
Toda perseguição estimula secretamente o perseguido, dá a ele uma “razão para viver”, um motivo por que combater. Os vícios de fundo psicológico são fortalecidos, como ninguém ignora, pelas restrições que desencadeiam. Os hábitos, as necessidades, as deformações ganham energia quando reprovados e combatidos.
As advertências e conselhos de fundo moral são o que existe de improfícuo com respeito à violência. Primeiro, porque ensejam uma sátira que supõe inteligência e espírito em quem a exercita; depois porque esse tipo de apelo é dirigido à consciência, e a violência deita suas raízes em terreno um pouco mais profundo. Na época em que vivemos, os conceitos de ordem moral repercutem fracamente.
A compreensão é uma forma diferente de abordagem, ignorando todo discurso e desconhecendo toda forma de coação. A apreensão de determinado fato ou fenômeno contém uma dinâmica muito peculiar, quando é abarcante e integral. O problema coloca-se todo diante de nós, sem escolha ou engano de qualquer ordem. A violência em nós é flagrante nas pequenas e menores reações, é perceptível na impaciência, na ansiedade, no menosprezo pelos demais, no insignificante e superficial espírito de competição. Essa é uma porta real para um problema terrível que ameaça a todos.
O dramático na questão da violência é que ninguém está a salvo de suas investidas. Os mais pacíficos e inocentes são atingidos pela onda de insanidade que está nas relações sociais, no trânsito, no mundo dos negócios, no convívio familiar, no grande desencontro afetivo entre homens e mulheres, nas injustiças sociais, no desprezo pelas minorias. Há violência porque falta seriedade – não a sisudez mal humorada ou a austeridade fingida, mas a honestidade de propósitos interior – porque poucos estão interessados nas causas e nas conseqüências de suas próprias ações. Os livros, as correntes, os mestres já ensinaram o que tinham de ensinar, já disseram tudo a respeito, e nós, pessoas comuns, temos somente de viver a vida, sem maiores complicações. Não somos pagos para pensar, para observar, para entender. Há quem faça isso por nós. Por essas razões ficamos distantes da violência, enquanto isso é possível. Nosso único contato com ela ocorre quando somos suas vítimas.
A violência prolifera no caldo de cultura da ignorância, e se alastra pelo exemplo e pela imitação. Cada um de nós – não os outros, não os violentos do outro lado da rua – tem em si próprio a violência que abomina nos demais e que deseja remover do mundo pela repressão ou pelo discurso indignado. A maneira de deixar a teoria de lado e passar aos fatos consiste na constatação da nossa violência miúda (mas virulenta), no dia-a-dia, na simplicidade de cada instante, na relação com os outros, nas escolhas e decisões, no prazer e na dor, no entusiasmo e no tédio, na ingenuidade e no ceticismo. Nesse caleidoscópio de cada momento, que é impossível reproduzir e que pertence exclusivamente a cada homem, está o conhecimento das coisas, inclusive a violência.