O Inconsciente em que se Anuncia uma Palavra

 

Hoje em dia não faltam aqueles que se digam inspirados, habitados pelo Espírito ou espíritos, ou, ainda, movidos por “energias” ou “forças” que os transcendem. Esses “espíritos” que lhes falam e lhes ensinam pedem-lhes, algumas vezes, que também ensinem, que escrevam, que falem, que curem …

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Quem são esses “espíritos”? Espíritos de defuntos? De anjos? De entidades? Seria necessário, ao mesmo tempo, perguntar quem são essas pessoas que falam e transmitem essas palavras. Qual é sua história? Sua memória? Em que estado se encontra o próprio espírito delas?

 De vez em quando, entidades dizem seus nomes, e os “veículos” ou “canais” dirão: ''Atenção, não sou mais eu quem fala, é fulano de tal. É o anjo, a Virgem Maria, é o Cristo ou então o próprio Deus”, conferindo, assim, ao que é dito uma autoridade espiritual, angelical ou divina … Essas palavras transmitidas com fé e convicção encontrarão a surpresa, o deslumbramento e a adesão de certo número de ouvintes, assim como encontrarão, às vezes, o julgamento e a condenação de outros ouvintes, que só verão em tudo isso manifestações perigosas, inúteis ou até mesmo demoníacas.

 Essas mensagens vindas do além encontrarão igualmente o ceticismo e serão consideradas “emergentes de um inconsciente” mais ou menos entulhado ou mal explorado; falaremos então de “crises repentinas de delírio”, sintomas de mal-estar em uma história particular ou, mais amplamente, de “mal-estar da civilização”.

 Resta encontrar uma atitude que não seja nem de adesão cega, nem de condenação cega, nem ainda a ironia fácil e humilhante dos psicanalistas ou teólogos burocratas. “O caminho do meio”, o dizer “entre-três” (exatamente ali onde se encontra o sujeito que escuta, entre o dizer do consciente e o do inconsciente – esse terceiro permanece o desconhecido do qual os dois primeiros dizeres tentam ser testemunhas); esse entre-três só poderia ser o centro de uma interrogação honesta ou de uma fé que busca compreender, uma fé incrédula que não está pronta a acreditar em quem quer que seja ou no que quer que seja sem examinar, mas que também não faz da dúvida incessante seu absoluto. Há  questões que só podemos compreender porque, antes de qualquer coisa, acreditamos nelas, é preciso amar o que tentamos compreender.

 A interrogação supõe, em primeiro lugar, o reconhecimento dos fatos sobre os quais nos interrogamos e o reconhecimento de que esses fatos não são tão novos e se manifestam regularmente na história. Tratar-se-á de considerar, em seguida, a interpretação que damos a esses fatos, por aí está, sem dúvida, o problema; interpretar ou não interpretar, “eis a questão”, eis também nossa liberdade.

 O exame dos fatos e de suas interpretações não diz ainda se se trata de verdadeiros ou falsos profetas, de verdadeiros ou falsos místicos, de autênticos médiuns ou de autênticos charlatães. Também não é dito se esses “ensinamentos” são mensagens reais e sinais para nosso tempo, esperança de um mundo melhor, de uma nova vida, ou ilusões, fantasias, mensagens e sinais de um tempo triste, de uma época doentia, de um ciclo que alcança o fim.

 Para encontrar alguns elementos de discernimento, será útil recorrer às pesquisas da psicologia contemporânea e à sabedoria das grandes tradições espirituais da humanidade.

 

Os fatos

Desde os tempos mais remotos, homens e mulheres dizem receber sinais ou mensagens de poderes transcendentes. Na Índia são chamados de rishis, “videntes”. Nas tradições semíticas são chamados nabhis, “inspirados” ou profetas.

 Tanto uns quanto outros dizem que o que sabem não são conhecimentos adquiridos, não se trata de um conhecimento fruto de seus estudos ou de suas investigações; esse saber lhes veio do alto ou das profundezas, eles o receberam de uma consciência mais elevada; ele lhes foi gratuitamente dado, revelado. Falaremos efetivamente então de revelação.

 O que significa? Segundo Tresmontant , a palavra francesa révélation (revelação) é um simples decalque do latim revelatio, está ligado ao verbo revelo, revelare, que significa “retirar o véu, o velum, descobrir”. A palavra latina revelatio traduz o grego apokalypsis, que significa “ação de descobrir” e está ligado ao verbo apokalyptô, que significa “descobrir, desvelar”. Em grego, Kalymma é o que serve para cobrir, o véu, a casca. Kalyptô significa “cobrir, envolver, esconder”. Apokalyptô, o contrário. O verbo grego apokalyptô, na versão grega da biblioteca hebraica, traduz o verbo hebreu galah, que significa também “descobrir, desvelar”.

 Eis o que dizia o profeta Amós no século VIII antes de nossa era: “Pois o senhor Iahweh não faria coisa alguma sem antes revelar [galah] o seu segredo [sôdô] a seus servos, os profetas” (Am 3,7).

 Segundo o pensamento bíblico, a história humana é a criação que continua no homem e com o homem. A criação do homem é uma etapa na história da criação. E essa criação do homem não está completa desde o início. A história humana é a de uma gênese orientada em direção a um término.

 Na história da criação da humanidade, existe um momento que constitui uma etapa nova nessa gênese: é a criação de um povo que tem uma função germinal para o conjunto da humanidade por vir. Israel não é um povo escolhido entre outros povos preexistentes. Israel é o começo, o germe de uma “humanidade nova”, ou que se considera como tal, e veremos que é um fenômeno que se produz com freqüência: uma revelação dada a um homem ou a um grupo com a esperança que nasça um mundo novo.

 A criação de uma humanidade nova começa pela criação de um germe que contém uma ciência, que traz em si uma sabedoria, destinada à humanidade inteira. Esse povo, ou essa porção da humanidade, não foi criado para se enclausurar em si mesmo, fechar-se em si mesmo. Ele foi constituído para levar e comunicar para a humanidade inteira a ciência que nela está inserida. Portanto, é essencialmente um povo profético, se permanecer fiel àquilo que o constituiu no início, ao que foi sua razão de ser inicial.

 O que é a revelação?  É a comunicação feita por Deus ao homem  a respeito de um conhecimento, de uma ciência, de uma inteligência, por meio de um homem que, em hebraico, se chama nabhi, o que os tradutores judeus alexandrinos da bíblia hebraica traduziram em grego pela palavra prophètès, os latinos traduziram como propheta e os franceses, por prophète (profeta). A palavra grega prophèthès vem do verbo prophèmi, que significa “dizer ou anunciar com antecedência”. O prophètès na língua grega clássica é o intérprete de um deus, aquele que transmite ou explica a vontade dos deuses. É também o intérprete das palavras de um oráculo ou de um adivinho, o intérprete de uma doutrina. É, enfim, aquele que anuncia o futuro. Na tradição hebraica, nabhi é o homem através de quem Deus comunica a sua mensagem.

 Sobre que versa a revelação? Ela versa sobre o que o homem não poderia descobrir e conhecer por seus próprios meios, usando unicamente sua análise com base na experiência. Versa essencialmente sobre a significação da obra criadora de Deus, sobre sua finalidade última. Somente o autor do poema, o compositor da sinfonia, sabe qual é a conclusão que ele visa em sua obra, e aquele a quem ele comunica seu segredo. A revelação é a comunicação do segredo de Deus, de suas intenções. A mensagem comunicada é aquela que os autores hebreus chamam de a palavra de Deus: é o conteúdo da mensagem, sua substância.

 Conhecemos os nomes dos profetas: Moisés, Elias, Isaías, Jeremias, Amós … É necessário que não esqueçamos aqueles que os precederam: Zoroastro, ou os grandes rishis da Índia, por exemplo, na origem dos Vedas. Eles também falavam de um plano do real que não atingimos pela razão ou pela simples experiência humana, mas pela revelação.

 A tradição hebraica dirá que a revelação é fechada e cingida pelos textos da Torá, atribuídos a Moisés e aos profetas. Foi lá que Deus falou, não há nada a acrescentar. A partir de então, o profeta cede lugar ao místico: seu papel não será falar em nome de Deus, mas interpretar sua palavra dita e escrita de uma vez por todas e revelar os diferentes níveis de interpretação. A inspiração está, a partir de então, dada não mais ao profeta, mas ao intérprete mais ou menos “místico”, segundo seu nível de consciência, ou ao hermeneuta do texto sagrado. Isso levará Marc-Alain Ouaknin a dizer, após vários outros rabinos, que os hebreus não são as “pessoas do livro”, mas “o povo da interpretação”, um povo de profetas que se deveria tornar povo de místicos ou de hermeneutas.

 Vem a seguir a tradição cristã, que considera Jesus de Nazaré não somente um profeta eminente – “Ninguém jamais falou como esse homem”, dizia o centurião –, mas o considera o messias, o Cristo, “aquele que anunciavam os profetas”; não somente alguém que fala em nome de Deus, lembrando os profetas e cumprindo a lei, não somente um receptáculo de uma palavra sobre Deus, mas a palavra do próprio Deus,  Deus encarnado – verbo feito carne. Seu próprio ser é revelação, manifestação do ser e do amor de Deus.

 E São João da Cruz dirá: “Deus só tem uma palavra, ele nos disse tudo em seu Filho, e quem buscar conhecimento e salvação em outro lugar lhe causará grande sofrimento”. Com Jesus Cristo, a revelação será considerada realizada, conduzida à sua plenitude. Não há mais nada além dele a esperar e o espírito que ele nos prometeu para nos “lembrar todas as palavras que ele disse” e nos revelar seu sentido profundo, o sentido ao mesmo tempo concreto e místico.

 Depois vem a tradição muçulmana, que pretende recapitular o ensinamento dos profetas precedentes; nesse contexto, Jesus é considerado também um profeta que anunciaria a vinda daquele que viria seis séculos mais tarde: Maomé, “selo da profecia”. Na tradição muçulmana, é dito claramente que não há nada a ser esperado após o Alcorão, que é a única e autêntica palavra de Deus; todas as outras escrituras teriam sido deformadas, pervertidas pelos homens.

 Maomé é o último dos profetas e, se qualquer outro se apresentar, evidentemente é necessário fazê-lo calar-se como herege e blasfemador ou, então, matá-lo, como, por exemplo, no caso de Bahá'u'lláh na Pérsia no século XIX, um homem que também pretendia ser um profeta enviado de Deus e apresentava um livro santo recapitulando as outras escrituras: “Aquele cuja vinda foi prometida a todos os povos do mundo apareceu. Todos os povos e comunidades estavam esperando uma revelação e ele, Bahá'u'lláh, o mestre e educador, é vindo” (Abdu'I-Bahá).

 No século XX, ao lado dessas revelações antigas, bem instituídas e estabelecidas, não faltaram novas revelações: Revelação de Ares,  Revelação de Aquário e outras. Também não faltam profetas que pretendem transmitir a palavra de Deus ou encarná-la. Isso é algo afirmado por eles mesmos: Moon, por exemplo, apresenta-se como o messias anunciado no Apocalipse, “estrela que vem do Oriente”. Mas isso nem sempre ocorre de acordo com sua vontade: Krishnamurti foi reconhecido inicialmente como uma encarnação divina, como o instrutor mundial, o avatar para nossa época, pois, como diz Krishna no Bhagavad Gita: “Cada Vez que a lei [darma] se apaga e sobe a injustiça, então eu renasço para a proteção dos bons e para a destruição daqueles que fazem o mal; para o estabelecimento da lei espiritual, eu me encarno uma era após a outra” (Bhagavad Gita, IV,6-8).

 Krishnamurti teve a coragem de proclamar que era simplesmente um homem e que era como homem que queria testemunhar sobre o real e sobre essa verdade que é “um país sem caminho”. Para isso, ele não precisava dessa aura de homem-Deus ou de profeta dos novos tempos.

 Mas é muito grande a necessidade do homem de fazer deuses que sejam semelhantes a ele e o confortem; não deixaremos tão cedo de erigir ídolos a partir de homens e mulheres que nos dispensem de pensar por nós mesmos e nos libertem, como dizia Dostoiévski, “do Fardo da liberdade”. Os bezerros místicos ou ideológicos de nossa época não deixam nada a desejar se comparados aos bezerros de ouro de outros tempos. Não vale nos demorarmos neles, nem nos sucessores da pitonisa e dos oráculos de Delfos.

 Por enquanto, vamos nos restringir aos médiuns, canais, profetas das grandes tradições, porque eles não representam somente minorias, mas milhões de homens e mulheres que, ainda hoje, em nome de Deus e de sua palavra revelada e transmitida por seus profetas, fazem a guerra …

 E podemos dizer um basta! Mas dizer um basta não é suficiente! Fazer grandes agrupamentos pela paz é bom, mas será que isso resulta em grandes mudanças? Nossas grandes declarações e nossos beijos de paz não passam de beijinhos nos bastidores da história: a cena permanece sangrenta.

 É necessário procurar compreender, compreender as palavras proféticas, ou seja, interpretá-las. Pois como todos os nossos sonhos, com suas imagens e seus símbolos, a palavra de Deus está entregue à nossa interpretação e, dependendo do sentido que dermos a essas palavras, elas podem nos matar ou ser fermento de libertação: “a letra mata, é o espírito que vivifica (II Cor 3,6), a letra não interpretada, não atualizada pelo espírito.

 Tomemos um único exemplo no Alcorão, mas poderíamos fazer a mesma coisa com a Bíblia ou com outro texto considerado sagrado, ou com os textos das revelações contemporâneas:

 

Casem-se como desejarem

Duas, três ou quatro mulheres (4,3).

 

Os homens têm autoridade sobre suas mulheres, devido à preferência que Deus lhes concedeu sobre elas e por causa das despesas que fazem para garantir seus cuidados … Batam naquelas sobre as quais suspeitem de infidelidade, releguem-nas a quartos separados e batam nelas. Se elas lhes forem submissas, não busquem mais discussões com elas. Deus é elevado e grande (4,34).

 Será que é realmente Deus quem fala? Ou seria um homem? Uma sociedade em particular? É uma questão que algumas vezes podemos nos fazer, nem que seja pelo menos para não colocar nas costas de Deus os meandros de nossa própria subjetividade, com seus inconscientes e suas vontades de poder. Deus jamais fala diretamente, mas sempre por intermédio de um homem que, por mais puro que seja, tem um inconsciente e, pelo simples fato de falar, pertence a certa sociedade, civilização, história, com todos os seus limites.

 Trata-se então de separar a mensagem, cuja origem deve ser divina, do mensageiro, cuja origem é certamente humana, já que é como humano que ele fala para outros humanos. Não se trata, de maneira alguma, de negar o fato da inspiração; trata-se de lembrar as condições nas quais aconteceu essa inspiração.

 Claude Tresmontant observa, retomando o assunto já tratado por Tomás de Aquino na Suma teológica, no capítulo sobre a profecia:

 Imaginamos mais ou menos que a inspiração divina possa substituir a inteligência do profeta, que o profeta é totalmente passivo e inerte sob a inspiração, como uma secretária dos dias atuais a quem o patrão dita uma carta. Mas não. Insuficiente estudar mais de perto os grandes profetas hebreus, Amós, Oséias, Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros, para perceber que eles são ativos, principalmente na obra profética. Eles operam com inteligência, coragem, santidade, temperamento. O profetismo hebreu é obra conjunta de Deus e do homem. Deus não substitui o homem. Ele o ensina, instrui, ilumina, informa a partir de seu interior. Ele o recria. Prepara-o a partir de dentro.

 Eis o que nos diz o livro de Jeremias (século VII antes de nossa era): ''A palavra de Iahweh me foi dirigida nos seguintes termos: ‘Antes mesmo de te modelar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses da madre, eu te santifiquei. Eu te constituí profeta (nabhí) para as nações'” (Jr 1,4-5). O profeta é pré-adaptado à função que será a sua: comunicar à humanidade a ciência que vem de Deus. Ele é humanamente preparado para essa obra, e isso se vê em seu caráter, quando estudamos sua obra de perto.

 No século XIX, e ainda no século XX, estudiosos imaginavam que ou é Deus que ensina na biblioteca que chamamos Bíblia ou é o homem. Ora, a ciência que constitui a crítica bíblica mostra que são manifestamente homens que se exprimem, com as idéias de seu tempo, de seu temperamento e mesmo de seus defeitos. Portanto, não é Deus.

 Esse foi o sofisma de Renan. O erro de base é imaginar que é necessário admitir o pressuposto “ou isso, ou aquilo”. Na realidade, não há alternativa: são Deus com o homem e o homem com Deus que falam. Dizer isso não chocará ninguém em um país ocidental; já em um país muçulmano, isso está na ordem da blasfêmia: é reduzir a palavra de Deus (o Alcorão) a uma palavra Humana.

 Maomé não era um homem? Não podemos negar o fato, mas acrescentaremos que o espírito do profeta era um canal totalmente “virgem”. Aliás, Schuon faz uma ligação entre a virgindade de Maria e a virgindade intelectual de Maomé, pura morada do logos divino. O Alcorão é o livro nascido do virgem Maomé: uma imaculada conceição. Dizer que as faculdades intelectuais de Maomé não entram em jogo na elaboração do Alcorão é dizer que ele estava em estado de coma profundo, com o eletroencefalograma plano. É igualmente ignorar as fases de realização do Alcorão, pois Maomé recebeu de início, na solidão de uma das cavernas do monte Hira, inspirações, depois palavras que repetirá para sua primeira esposa, Khadija; esta o encorajará a transmitir as mensagens que recebeu; virão os discípulos, escutarão e, como é costume nas tradições orais, aprenderão essas palavras de cor. Somente muito mais tarde esse texto “descido diretamente do céu”, segundo alguns, será organizado e constituído por escrito.

 Três grandes etapas marcam essa constituição ou reconstituição da palavra inspirada a Maomé:

 

• a recitação de memória;

• a fixação por escrito em materiais disponíveis: omoplatas de camelo, pedaços de couro etc.;

• a reunião dos elementos esparsos em um compêndio no tempo do califa Uthman (genro do profeta, Uthman foi o terceiro califa e dirigiu a comunidade muçulmana de 644 a 656, correspondente a 25-35 da hégira).

 

A caligrafia antiga, mantida até o século X, não comportava nem sinais diacríticos nem vogais breves. Esses textos eram utilizados como um lembrete incompreensível aos estrangeiros, daí as diversas interpretações ou “leituras”. Até o século XII houve sete lições autorizadas (sete alcorões?).

 A recensão de Uthman havia suscitado críticas dos xiitas, que o reprovavam por ter voluntariamente suprimido textos relativos a Ali. Foi a gráfica que determinou o conteúdo do Alcorão de maneira definitiva. A edição reconhecida como oficial pelas mais altas autoridades muçulmanas foi impressa pela primeira vez no Cairo em 1923; é a edição chamada de Boulag.

 Assim, os textos têm sua história; conhecê-la melhor nos convida a não crer menos neles, mas a idolatrá-los menos. Aí também está a verdade, mas não toda, e podemos imaginar que, onde cresce a cultura, declina o fanatismo. Compreendemos igualmente que em certos países se venham a matar e a exilar aqueles que representam essa cultura e que, ao afirmarem a possibilidade plural da interpretação, lembram ao homem sua liberdade em face dos outros homens, mas também em face de Deus, com quem ele é capaz de discutir ou de “dialogar” sua palavra.

 Os textos sagrados têm sua história. Os médiuns, os profetas também têm sua história, que vai influenciar para melhor ou para pior a qualidade de sua mensagem. Quando alguém se apresenta como o canal de uma palavra ou de uma revelação que vai além dele, não seria errado nos interrogarmos sobre o local, a profundidade de onde lhe vem sua inspiração. Da mesma maneira que não é ruim perguntar sobre esse espaço em nós mesmos, de onde nasce uma palavra, de onde nasce um desejo.

 De onde é que eu falo? A questão deve ser colocada não somente com relação ao contexto social, como fizemos nestes últimos anos, mas também com relação ao nível de consciência ou de inconsciência no qual se encontra o locutor.

 Eis um esquema, com todos os limites que esse gênero de representação implica, capaz de nos indicar a pluralidade dos níveis de onde pode se originar uma palavra apresentada como sagrada, ou seja, portadora de uma alteridade a qual ela deve servir ou traduzir. Esse esquema tenta levar em conta o que algumas correntes da psicologia contemporânea nos dizem, mas também as tradições com relação ao que permanece inconsciente no homem.

 

1. Persona – ego

2. Inconscienre pessoal/id-superego

3. Inconsciente familiar

4. Inconsciente parasita

5. Inconsciente coletivo

6. Inconsciente “físico” (cósmico)

7. Inconsciente angelical

8. O self-Imago Dei

9. Deus – O princípio-ser (A origem que não falta)

10. A deidade – O diferente do ser (A origem que falta – O aberto)

 

O espaço que está no centro do círculo também é o espaço que o contém. “O espaço que está no interior do cântaro é o espaço que preenche todo o universo.” Espaço mais ou menos entulhado de memórias e de inconscientes. Mas por que somente um cântaro vazio teria o poder de cantar?

Jean-Yves Leloup

Excerto do Capítulo II do livro

“Seitas, Igrejas e Religiões – Elementos Para Um Discernimento Espiritual”


Esse é um texto de Jean-Yves Leloup que apresenta uma reflexão sobre alguns elementos comuns de todos os caminhos espirituais. Apesar de utilizar o exemplo da tradição judaico-cristã e fundamentar a sua argumentação no aspecto psicológico, a crítica de Leloup é válida para todas as tradições e serve como um alerta para os possíveis desvios que podem acontecer no caminho, pois, como diz o autor, “é muito grande a necessidade do homem de fazer deuses que sejam semelhantes a ele e o confortem; não deixaremos tão cedo de erigir ídolos a partir de homens e mulheres que nos dispensem de pensar por nós mesmos e nos libertem, como dizia Dostoiévski, ‘do Fardo da liberdade’.

 

Acredito que o movimento teosófico, em certa medida, não está isento desta análise crítica.

 

Fraternalmente,

 

Luiz Cláudio Dias.

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