Sylvia Paula de Almeida Torres Vilhena
Mestranda em Educação (UNINOVE). Pesquisadora do Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade e da Culturalidade – NIIC, no Grupo de Estudos em Educação e Complexidade – GRUPEC. Integrante do Grupo de Estudos Contemporâneos da Associação Palas Athena.
A feliz associação entre o biólogo chileno Humberto Maturana e a psicóloga alemã Gerda Verden-Zöller, no livro Amar e Brincar, dá continuidade à Teoria de Santiago (Maturana e Francisco Varela) e amplia sua abrangência, penetrando nos campos da antropologia da educação, da sociologia e da política.
A parceria dos autores, mais que oferecer uma possibilidade de reflexão sobre um encaminhamento histórico que redundou na emergência, no limiar do séc. XXI, do existir num mundo globalizado que, discursivamente, apregoa a democracia e, concomitantemente, expande a sujeição, a miséria, a desigualdade de saberes e poderes, traz também a denúncia da morte da infância pela cultura do contínuo preparar-se para o futuro, sem o viver aqui e agora, acrescida dos malefícios advindos pelo distanciamento corporal e emocional da criança com o adulto.
Tanto para Maturana, como para Verden-Zöller, essa situação é incompatível com a democracia. E aí está a grande colaboração de ambos.
Maturana, em seus ensaios, articula idéias antropológicas que buscam explicar a atual condição humana, notadamente na cultura ocidental, pelo processo de aculturação e mudança cultural. Em uma viagem no tempo, retoma a história evolutiva do grupo de primatas bípedes que, a partir da emoção, na linguagem, faz surgir a linhagem humana.
Criando e conotando termos como matrístico, linguajear, emocionar e conversar, Maturana sustenta que todo o viver humano ocorre em redes de conversações. Enfatizando o linguajear sustentado no emocionar, desvela como pode ser mudado o curso da cadeia subseqüente. A história da humanidade seguiu e segue os passos do emocionar, dos desejos e não de recursos disponíveis, das oportunidades, idéias, valores, símbolos. Todos esses têm significação a partir de sua aceitação, de como são conotados emocionalmente. É o emocionar que os torna orientadores de nosso viver.
O que se deve tentar desvendar é o caminho percorrido pelo emocionar na trajetória histórica da humanidade, as mudanças das conversações que, por sua vez, modificam o emocionar e, ainda, as circunstâncias que estabilizam, ou dão origem, a novos emocionares.
O viver da comunidade depende dessas redes de conversações. As alterações ocorrem por conta das mudanças no emocionar e se conservam a partir do desenvolvimento das crianças nessa nova rede.
O autor percorre os caminhos do viver numa cultura matrística, cuja relação é com a terra, suas sazonalidades, seu renovar constante, o olhar voltado para o chão, para o verde, para o lobo que espreita mas também tem direito de comer, Maturana introduz o viver do pastor. Viver que, para o apascentamento, mantém o humano isolado, tentando o diálogo com a imensidão dos céus, sofrendo o medo das intempéries e descobrindo que estabelecer redil e acabar com lobos tornam-no mais forte. Expõe, assim, sua compreensão do surgimento do patriarcado europeu, ao qual nos filiamos como cultura, e que se mantém, geração após geração, independente das conseqüências que traz. É o início do emocionar pela violência, por adotar comportamento destrutivo em grande quantidade. É um emocionar que exige, desde pequeno, a valorização de quem, sozinho, enfrenta as adversidades e despreza os de menor força (a mulher), do entendimento da mulher como posse, é o domínio sobre a sexualidade feminina..
Nesse trajeto, chega aos dias atuais, à questão do exercício da democracia em diferentes culturas, que trazem em si contrários, os quais, devido ao lastro do emocionar patriarcal, na prática, se excluem.
As explanações de Gerda Verden-Zöller sobre sua pesquisa, cujo objeto é o desenvolvimento da consciência individual e social da criança, são apresentadas de maneira tão prática que, sem omitir os fundamentos teóricos, possibilitam a pais e educadores uma resposta exeqüível à clássica pergunta: o que fazer? As explicações sobre a gradação de conversas e exercícios desenvolvidos junto às mães, nas oficinas materno-infantis, oferecem um rumo a ser experimentado, já que viabiliza a tomada de consciência dos pais sobre a importância da aceitação “mútua, em total confiança”, na relação adulto-criança. As boas ilustrações favorecem o entendimento das etapas percorridas pelas mães e crianças nesse caminhar na e para a democracia consciente. A solidariedade, a liberdade na igualdade das diferenças, é exercida no amor. Amor que, embalando o indivíduo desde os primeiros passos, passa a ser parâmetro do viver.
Os ensaios apresentados por Maturana, assumidamente, são fruto das conversas mantidas com Gerda Verden-Zöller sobre sua pesquisa: a relação materno-infantil, o papel da emoção e da corporeidade na formação do indivíduo, de sua sociabilidade. Por sua vez, a pesquisa tem, declaradamente, muito das obras de Maturana sobre biologia do conhecimento e biologia do amor. Assim, Amar e brincar é o retrato vivo da interação entre dois humanos que assimilaram, segundo as estruturas de cada um, o que de melhor o outro tinha para oferecer. Tratando de diferentes áreas do conhecimento humano, complementam-se e, solidariamente, compartilham conosco seus saberes. Sabem o que fazem e fazem o que sabem.
À Editora Palas Athena cumpre reconhecer a cuidadosa tradução, o projeto gráfico e a escolha da obra, uma vez que também faz o que sabe e sabe o que faz: trabalhar pela paz com qualidade de vida.
MATURANA, Humberto R. e VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004, 266p.