A estética em busca do aborto ético – parte II

 

O problema filosófico segundo Peter Singer

Fechando a resenha proposta: um livro, um filme e uma filosofia, tomemos o último elo dessa corrente. Para tanto, seguimos, em uma adaptação, o autor Peter Singer.  

Até 1967, o aborto era ilegal em quase todas as democracias ocidentais, com exceção da Suécia e da Dinamarca. Em seguida, a Inglaterra passou, também, a permitir o aborto, e, em 1973, a Corte Suprema dos Estados Unidos admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar nos primeiros seis meses de gravidez. Os países da Europa Ocidental, inclusive os católicos, como a Itália, a Espanha e a França, liberalizaram as suas leis relativas ao aborto. A Irlanda foi o único país a não seguir a tendência.

Os adversários do aborto não desistiram. Nos Estados Unidos, presidentes conservadores alteraram a composição da Corte Suprema, que, por sua vez, vem tentando, de diversas maneiras, que alguns estados restrinjam o acesso ao aborto. Fora dos Estados Unidos, a questão do aborto voltou à tona no Leste Europeu, depois do colapso do comunismo. Os estados comunistas tinham permitido o aborto, mas, quando as forças nacionalistas e religiosas ganharam força, em países, como a Polônia, verificaram-se fortes movimentos favoráveis à reintrodução de leis restritivas. Uma vez que a Alemanha Ocidental tinha leis mais restritivas do que a Alemanha Oriental, a necessidade de introduzir uma única lei para a Alemanha unificada também provocou um intenso debate.

1. O ponto de vista conservador

Colocado como argumento formal básico contra o aborto, ele ficaria assim:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

A reação liberal tradicional consiste em negar a segunda premissa deste argumento. A discussão vai ligar-se ao problema do feto ser ou não, um Ser Humano, e a questão do aborto costuma ser vista como uma controvérsia a respeito de quando se inicia uma vida humana.

Os conservadores chamam a atenção para o continuum que existe entre o óvulo fecundado e a criança e, desafiam os liberais a apontar qualquer estágio desse processo gradual que assinale uma linha divisória moralmente significativa. A menos que tal linha exista, dizem os conservadores, devemos conferir ao embrião o status de criança, mas ninguém quer permitir que as crianças sejam mortas a pedido de seus pais e, assim, o único ponto de vista defensável está em assegurar ao feto a proteção que asseguramos à criança.

Mas, seria verdade que não existe nenhuma linha divisória moralmente significativa entre o óvulo fecundado e a criança? Examinemos quatro possibilidades.

1.1. Nascimento

O nascimento é a mais visível das possíveis linhas divisórias e a que melhor se ajusta à argumentação liberal. Até certo ponto, ajusta-se melhor também aos nossos sentimentos – ficamos menos perturbados com a destruição de um feto que nunca vimos do que com a morte de um ser que todos podemos ver, ouvir e acariciar. No entanto, será que isso é suficiente para transformar o nascimento na linha que decide se um ser pode ou não ser morto?

Os conservadores podem perfeitamente responder que o feto/bebê é a mesma entidade tanto dentro quanto fora do útero, que tem as mesmas características humanas (possamos vê-las ou não), o mesmo grau de consciência e a mesma capacidade de sentir dor. Sob esses aspectos, um bebê prematuro pode muito bem ser menos desenvolvido do que um feto que se aproxima do fim de sua gestação normal. Parece estranho admitirmos que não se pode matar o bebê prematuro, mas que podemos matar o feto mais desenvolvido. A localização de um ser – dentro ou fora do útero – não deveria configurar tanta diferença quanto ao erro que consiste em matá-lo.

1.2. Viabilidade

Se o nascimento não assinala uma distinção moral decisiva, deveríamos recuar a linha divisória ao tempo em que o feto poderia sobreviver fora do útero? Isto supera uma objeção a tomar o nascimento como o ponto decisivo, pois trata o feto viável em pé de igualdade com o bebê nascido prematuramente, no mesmo estágio de desenvolvimento. Foi na viabilidade que a Corte Suprema dos Estados Unidos sustentou que, o Estado tem um interesse legítimo de proteger a vida em potencial e que esse interesse se torna “inexorável” na questão da viabilidade, “pois, então, supõe-se que, o feto tenha a capacidade de levar uma vida significativa fora do útero materno”.

Segundo a Corte, portanto, as leis que proíbem o aborto com base na viabilidade não são inconstitucionais. Mas os juízes que subscreveram esta posição não indicaram por que a mera capacidade de existir fora do útero deve fazer tanta diferença para o interesse do Estado em proteger a vida em potencial. Afinal, se falamos (como faz a Corte), em vida humana em potencial, então o feto, ainda inviável, pode ser considerado um ser humano adulto em potencial tanto quanto o feto viável.

Há outra importante objeção a tomar-se a viabilidade como o ponto de desligamento. O ponto em que o feto pode sobreviver fora do corpo da mãe varia conforme o estado da tecnologia médica. Há trinta anos, em geral se aceitava que um bebê nascido mais de dois meses prematuro não tinha condições de sobrevivência. Hoje, um feto de seis meses – prematuro de três meses – quase sempre pode sobreviver, graças à sofisticação da tecnologia médica, conhecendo-se casos de sobrevivência de fetos nascidos aos cinco meses e meio de gestação. Tudo isso ameaça pôr por terra a concisa divisão estabelecida pela Corte Suprema, que separa a gravidez por trimestre, situando o limite da viabilidade entre o segundo e o terceiro trimestres.

À luz desses avanços médicos, diremos que um feto de seis meses de idade não deve ser abortado agora, mas poderia ter sido abortado há trinta anos, sem que com isso se cometesse um erro? A mesma comparação também pode ser feita, não entre o presente e o passado, mas entre lugares diferentes. Um feto de seis meses poderia ter uma boa oportunidade de sobreviver, se nascesse numa cidade onde se usa a mais recente tecnologia médica, mas não teria oportunidade alguma se nascesse num vilarejo distante da Nova Guiné. Suponhamos que, por alguma razão, uma mulher no sexto mês de gravidez fosse voar de São Paulo para um vilarejo da Nova Guiné e que, tendo chegado a este último, não havia como voltar rapidamente para uma cidade onde pudesse contar com os mais modernos recursos médicos. Devemos dizer que ela teria agido erradamente se tivesse feito um aborto antes de partir de São Paulo, mas que, agora, no vilarejo, pode fazê-lo? A viagem não altera a natureza do feto, então, por que motivo deveria acabar com o seu direito à vida?

Os liberais poderiam responder que o fato do feto ser totalmente dependente da mãe para a sua sobrevivência significa que, independentemente dos desejos dela, ele não tem direito à vida. Em outros casos, porém, não defendemos a idéia de que a total dependência de uma outra pessoa signifique que essa pessoa pode decidir se é preciso viver ou morrer. Se vier a nascer numa região isolada onde não exista nenhuma outra mulher que possa amamentá-lo, nem recursos para que possa ser alimentado com mamadeira, um recém-nascido é uma criatura totalmente dependente de sua mãe. Uma velha pode ser totalmente dependente do filho que toma conta dela, e um caminhante que quebra a perna a cinco dias de caminhada da estrada mais próxima pode morrer se o seu companheiro não vier salvá-lo. Não pensamos que, nessas situações, a mãe possa tirar a vida do seu bebê, o filho a de sua velha mãe, ou o caminhante a do seu companheiro ferido. Portanto, não é plausível sugerir que a dependência que o feto inviável tem de sua mãe dá a ela o direito de matá-lo; e, se a dependência não justifica que se faça da viabilidade a linha divisória, é difícil saber o que pode justificá-la.

1.3. Primeiros sinais de vida

É a época em que, pela primeira vez, a mãe sente o feto mexer-se; na teologia católica tradicional, pensava-se ser esse o momento em que ele ganhava a sua alma. Se aceitarmos esse ponto de vista, podemos achar que esses movimentos iniciais são muito importantes, pois, segundo a concepção cristã, a alma é o que diferencia os seres humanos dos animais. Contudo, a idéia de que a alma entre no feto quando ele começa a movimentar-se não passa de uma superstição antiga que já foi rejeitada até mesmo pelos teólogos católicos.

Se deixarmos de lado essas doutrinas religiosas, os primeiros sinais de vida tornam-se insignificantes. Não passam da época em que se percebe que o feto começa a movimentar-se por conta própria; o feto está vivo antes desse momento, e pesquisas realizadas com ultra-som mostraram que, na verdade, os fetos já começam a fazer seus primeiros movimentos na sexta semana depois da fecundação, muito antes desses movimentos poderem ser sentidos. Seja como for, a capacidade de movimento físico – ou a falta dela – nada tem a ver com a seriedade do direito que alguém possa ter à continuidade da vida. Não vemos a falta de tal capacidade como uma negação do direito que os paralíticos têm de continuar vivendo.

1.4. Consciência

Na medida em que constitui um indicador de alguma forma de consciência, poderíamos pensar no movimento como algo dotado de uma importância moral indireta – e a consciência e a capacidade de sentir prazer ou dor possuem uma importância moral concreta. Apesar disso, nenhum dos lados envolvidos na questão do aborto tem mencionado devidamente a questão do desenvolvimento da consciência no feto. Os que se opõem ao aborto podem mostrar filmes sobre o “grito silencioso” do concepto ao ser abortado, mas, por detrás de tais filmes, existe apenas a intenção de mexer com as emoções dos que ainda não tomaram partido. Na verdade, os adversários do aborto defendem a idéia de que o ser humano tem direito à vida desde o momento da concepção, seja ou não consciente.

Para os que defendem o aborto, o apelo à ausência da capacidade de consciência tem parecido estratégia arriscada. Com base nos estudos que mostram que o movimento já se evidencia na sexta semana depois da fecundação, ao lado de outros estudos que constataram a existência de alguma atividade cerebral já na sétima semana, sugeriu-se que o feto pode ser capaz de sentir dor nessa fase inicial da gravidez. Essa possibilidade tornou os liberais muito cautelosos em seu apelo ao surgimento da consciência como o momento em que o feto passa a ter direito à vida.

No que diz respeito ao aborto, até o momento, as discussões mostraram que a busca liberal de uma linha divisória moralmente crucial entre o recém-nascido e o feto não produziu nenhum fato, nem descobriu um estágio do desenvolvimento que possa arcar com o peso de separar os que têm direito à vida daqueles que não o têm. E, de um modo que mostre, claramente, que os fetos pertencem à última categoria quando estão no estágio de desenvolvimento em que a maior parte dos abortos é feita. Os conservadores pisam em terreno firme quando insistem em que o desenvolvimento que vai do embrião ao recém-nascido é um processo gradual.

2. Alguns argumentos liberais

Alguns liberais não contestam a afirmação conservadora de que o feto é um ser humano inocente, mas afirmam que, não obstante, o aborto é admissível. Examinemos três argumentos que dizem respeito a esse ponto de vista.

2.1. As conseqüências de leis restritivas

O primeiro argumento é o de que as leis que proíbem o aborto não acabam com ele, mas levam-no a ser feito clandestinamente. Em geral, as mulheres que pretendem abortar estão desesperadas e procurarão um abortador de fundo de quintal ou usarão remédios populares. O aborto feito por um médico qualificado é uma operação tão segura quanto qualquer outra, mas as tentativas de procurar fazer aborto com profissionais desqualificados, geralmente resultam em graves complicações médicas e, às vezes, até mesmo na morte. Portanto, o resultado da proibição do aborto não é tanto a redução do número de abortos realizados, mas, sim, o aumento das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada.

Esse argumento tem influenciado a conquista de apoio para a criação de leis mais liberais sobre o aborto. Foi aceito pela Real Comissão Canadense da Condição Feminina, cuja conclusão foi: “Uma lei que tem efeitos mais nocivos do que benéficos não é uma boa lei. (…) Enquanto existir, em sua forma atual, milhares de mulheres irão transgredi-la”.

O que há de mais importante nesse argumento é o fato de ser contra as leis que proíbem o aborto, e não de ser contra o aborto. Trata-se de uma distinção importante, quase sempre negligenciada nos debates. Uma mulher poderia aceitá-lo coerentemente e defender o ponto de vista de que a lei deve permitir o aborto sempre que solicitado, achando, ao mesmo tempo, que seria errado abortar. É um erro pressupor que a legislação deve sempre reforçar a moralidade. Pode acontecer que, como se alega no caso do aborto, as tentativas de reforçar a conduta certa levem a conseqüências não desejadas por ninguém e não produzam um decréscimo de erros; pode acontecer também que exista uma esfera da ética privada na qual o Direito não deve interferir.

Portanto, esse primeiro argumento é sobre as leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. Mesmo dentro desses limites, porém, está aberto à contestação, pois é incapaz de atender à afirmação conservadora de que praticar o aborto é tirar deliberadamente a vida de um ser humano inocente pertencendo assim o aborto à mesma categoria ética do assassinato. Os que têm essa visão não se deixarão contentar pela afirmativa de que tais leis restritivas sobre o aborto não fazem mais do que levar as mulheres aos abortadores de fundo de quintal. Vão insistir em que essa situação pode ser mudada e que se pode exigir o cumprimento apropriado da lei. Também podem sugerir medidas que tornem a gravidez mais fácil de ser aceita, no caso das mulheres que engravidam sem querer. É uma resposta perfeitamente racional, dado o juízo ético inicial sobre o aborto; por isso, o primeiro argumento não consegue esquivar-se à questão ética.

2.2. Nada a ver com a lei?

O segundo argumento é também sobre as leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. Adota o ponto de vista de que, como foi colocado pelo governo britânico que investigou as leis sobre a homossexualidade e a prostituição: “Deve continuar existindo uma esfera da moralidade e da imoralidade pública que, grosso modo, nada tem a ver com a lei”. Esse ponto de vista é muito aceito pelos pensadores liberais e suas origens podem ser atribuídas a “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill. Nas palavras de Mill, o “princípio muito simples” dessa obra consiste na afirmação de que o

“único objetivo em nome do qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de impedir que os outros sejam prejudicados”. “(…) Ele não pode ser legitimamente forçado a agir ou a abster-se de agir porque será melhor que o faça, porque assim será mais feliz, porque, na opinião dos outros, agir desse modo seria mais sensato, ou mesmo mais certo”.

O ponto de vista de Mill é comum e adequadamente citado em apoio da revogação de leis que criam “crimes sem vítimas” – como as leis, que proíbem os relacionamentos homossexuais entre adultos que desejam mantê-los por mútuo acordo, o uso da maconha e outras drogas, a prostituição, o jogo, etc. O aborto costuma ser incluído nessa relação. É o que faz, por exemplo, o criminologista Edwin Schur, em seu livro Crimes Without Victims.

Os que consideram o aborto um crime sem vítimas dizem que, enquanto todos têm o direito de defender um ponto de vista sobre a moralidade do aborto e agir de acordo com ele, nenhum segmento da comunidade deve tentar coagir os outros a aderirem ao seu ponto de vista específico. Numa sociedade pluralista, devemos ser tolerantes com os que defendem idéias diferentes das nossas e deixar a decisão de fazer um aborto a cargo da mulher que está vivendo o problema.

A falácia de incluir o aborto entre os crimes sem vítimas deve ser evidente a todos. Em grande parte, a discussão sobre o aborto é uma discussão sobre o fato dessa prática ter, ou não, uma “vítima”. Para os adversários do aborto, a vítima é o feto. Os que não se opõem ao aborto podem negar que o feto possa ser visto como uma vítima grave. Talvez digam, por exemplo, que um ser só pode ser uma vítima se seus interesses forem violados e que o feto não tem interesses. Contudo, sejam quais forem os termos em que se dê essa discussão, não se pode simplesmente ignorá-la com base na afirmação de que as pessoas não devem coagir as outras a seguirem as suas concepções morais particulares.

Nossa opinião de que o que Hitler fez aos judeus é errado traduz um ponto de vista moral, e, se houvesse qualquer possibilidade de um ressurgimento do nazismo, certamente nos empenharíamos ao máximo para forçar os outros a não agirem contrariamente ao nosso ponto de vista. O princípio de Mill só é defensável se se restringir, como Mill o restringiu, aos atos que não prejudicam os outros. Usar o princípio como um meio de evitar as dificuldades de resolver o embate ético sobre o aborto equivale a dar por certo que o aborto não prejudica um “outro” – o que é, exatamente, o ponto que precisa ser comprovado antes que possamos, legitimamente, aplicar o princípio ao caso do aborto.

2.3. Um argumento feminista

O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto é um ser humano inocente é o de que uma mulher tem o direito de escolher o que fazer com o seu próprio corpo. Esse argumento adquiriu notoriedade com a ascensão do movimento de libertação feminista e foi elaborado por filósofos norte-americanos simpáticos à causa feminista. Um argumento influente foi apresentado por Judith Jarvis Thomson através de uma analogia.

Imagine, diz ela, que um dia você acorda pela manhã e descobre que está num leito de hospital, ligado de alguma forma a um homem que se encontra inconsciente numa cama ao lado da sua. Você é então informada de que esse homem é um famoso violinista com uma doença renal. Ele só poderá sobreviver se o seu sistema circulatório for ligado ao de uma pessoa que tenha o mesmo tipo sangüíneo, e você é a única pessoa que tem o sangue adequado.

Portanto, foi seqüestrada por uma sociedade de amantes da música, a ligação foi feita, e ali está você. Como se trata de um hospital bem-conceituado, você poderia, se quisesse, chamar um médico e pedir-lhe para desligá-lo do violinista; este, porém, morreria com certeza. Por outro lado, se você continuar ligada a ele por só (só?) nove meses, o violinista irá recuperar-se e você poderá então ser desligado dele sem que ele corra perigo algum.

Thomson acredita que, se você se encontrasse inesperadamente numa situação difícil como essa, não teria nenhuma obrigação moral de permitir que o violinista usasse os seus rins durante nove meses. Poderia ser generoso, de sua parte, permitir que ele o fizesse, mas, nas palavras de Thomson, dizer isso é bem diferente de dizer que, se não o fizesse, estaria cometendo um erro. Observe-se que a conclusão de Thomson não depende de negar que o violinista seja um ser humano inocente, com o mesmo direito à vida que tem qualquer outro ser humano inocente. Pelo contrário, Thomson afirma que o violinista realmente tem direito à vida – mas que o fato de tê-lo não dá a ninguém o direito de usar o corpo de outra pessoa, mesmo que, sem esse uso, alguém possa morrer.

O paralelo com a gravidez, sobretudo a gravidez resultante de estupro, deve ficar evidente. Graças a uma escolha que não foi dela, uma mulher que engravidou por ter sido estuprada vê-se ligada a um feto de uma forma muito semelhante à da pessoa ligada ao violinista. É verdade que, normalmente, uma mulher grávida não precisa ficar nove meses, presa a uma cama, mas os adversários do aborto não vêem nesse argumento uma justificativa suficiente para a prática do mesmo.

Permitir a adoção do recém-nascido talvez seja mais difícil, psicologicamente, do que se separar do violinista no fim da sua doença; mas, em si, isso não parece constituir uma razão suficiente para que o feto seja morto. Se admitirmos, apenas a título de argumentação, que o feto é um ser humano plenamente desenvolvido, o fato de abortar quando o feto não é viável tem o mesmo significado que o de desligar-se do violinista. Portanto, se concordamos com Thomson que não seria errado desligar-se do violinista, teremos de admitir também que, sejam quais forem as condições do feto, o aborto não é um erro – pelo menos quando a gravidez resulta de estupro.

3. O valor da vida fetal

Voltemos ao início. O argumento central contra o aborto era o seguinte:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

A fragilidade da primeira premissa do argumento conservador está no fato de fundamentar-se em nossa aceitação do status especial da vida humana. “Humano” é um termo que se subdivide em duas noções específicas: ser um membro da espécie Homo sapiens e ser uma “pessoa”. Uma vez o termo assim desmembrado, a fragilidade da primeira premissa conservadora se torna evidente. Se “humano” for tomado como equivalente de “pessoa”, a segunda premissa do argumento é claramente falsa, pois não se pode argumentar que o feto seja um ser humano.

Por outro lado, se “humano” for tomado apenas com o significado de “membro da espécie Homo sapiens“, então a defesa conservadora da vida do feto tem por base uma característica que carece de significação moral e, portanto, a primeira premissa é falsa. A esta altura, a questão já nos deve ser familiar: em si, o fato de um ser pertencer, ou não, à nossa espécie não é mais relevante para o erro de matá-lo do que ele ser, ou não, um membro de nossa raça. A crença em que, a despeito de outras características, o mero fato de ser membro de nossa espécie faz uma grande diferença quanto ao erro de matar um ser é um legado de doutrinas religiosas que até mesmo os que se opõem ao aborto hesitam em trazer ao debate.

O reconhecimento desse simples fato transforma toda a questão do aborto. Agora podemos examinar o feto do jeito que ele é – com as características concretas que possui – e avaliar a sua vida em pé de igualdade com as vidas de seres que possuem características semelhantes, mas não são membros de nossa espécie. Fazendo uma comparação justa das características moralmente relevantes – como a racionalidade, a autoconsciência, a consciência crítico-reflexiva, a autonomia, o prazer, a dor, etc. – aves e mamíferos que normalmente comemos, surgem bem à frente do feto em qualquer dos estágios da gravidez, ao passo que, se fizermos a mesma comparação com um feto de menos de três meses, um primitivo peixe daria mais indícios de possuir uma consciência.

4. O feto como vida em potencial

Uma objeção constante ao aborto é a de que só se leva em conta as características reais do feto, deixando de lado as suas características potenciais. Com base nas suas características reais, alguns adversários do aborto hão de admitir que o feto se compara desfavoravelmente a muitos animais.

A questão do potencial do feto pode-se colocar da seguinte maneira:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano em potencial.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potencial.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

É problemático saber se um feto é realmente um ser humano – isso vai depender do que queremos dizer com o termo – não se pode negar que o feto é um ser humano em potencial. Isso é verdade tanto se, por “ser humano”, estivermos nos referindo a um “membro da espécie Homo sapiens“, quanto se tivermos em mente um ser racional e autoconsciente, uma “pessoa”. Contudo, a força da segunda premissa do novo argumento é conseguida à custa de uma primeira premissa mais fraca, pois o erro de matar um ser humano em potencial – até mesmo uma pessoa em potencial – é mais sujeito à contestação do que o erro de matar um ser humano real.

Não se duvida, por certo, de que a racionalidade e a autoconsciência potenciais do Homo sapiens fetal (bem como outros atributos semelhantes) superam essas mesmas qualidades do modo como se manifestam num animal não humano; daí não se segue, porém, que o feto tenha um direito mais forte à vida. Não existe regra que afirme que um X potencial tenha o mesmo valor de um X, ou que tenha todos os direitos de um X. Há muitos exemplos que mostram exatamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que derrubar um venerável carvalho. Colocar uma ave viva dentro de uma panela com água fervente seria muito pior do que fazer o mesmo com um ovo. O príncipe Charles é rei da Inglaterra em potencial, mas, no momento, não tem os direitos de um rei.

CONCLUSÃO 'INDA QUE PROVISÓRIA

Até aqui expomos os argumentos prós e contras à interrupção deliberada da gravidez humana. Mas, não queremos nos furtar a uma posição bem definida sobre esta questão.

Somos contra, por princípio, ao aborto. Entretanto, pensamos que ele é admissível em certos casos, e que estes devem ser previstos em lei justa, precisa e universal. Portanto, somos a favor de sua legalização. Achamos indiscutíveis que, por exemplo, gravidezes por estupro, ou, que coloquem em severo risco a saúde mental e/ou física da mãe, ou de embriões gravemente malformados, devam ser contempladas favoravelmente à sua interrupção imediata pela lei.

                                                      *      *      *

Bibliografia

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