RESUMO
Este artigo foi escrito no intuito de oferecer ao leitor um tempo de reflexão sobre a polêmica questão ética envolvida na interrupção intencionalmente provocada de uma gravidez. Para ilustrar este dilema humano, escolhemos a problematização contida no livro The cider house rules, “As regras da casa de cidra”, de John Irving, o qual foi roteirizado para o filme de Lasse Hallström, “Regras da vida”. O fio condutor das análises do livro e do filme é desenvolvido a partir das especulações inteligentemente provocantes, e por vezes chocantes, do filósofo Peter Singer no seu texto Ética Prática.
Palavras-chave: 1. bioética; 2. cinema; 3. literatura; 4. filosofia; 5. direito.
ABSTRACT
This article was written in intention to offer to the reader a reflection's time on the controversial involved ethical question in the interruption intentionally provoked of a pregnancy. To illustrate this human quandary, we choose the problem contained in the book, “The cider house rules”, of John Irving, which was script for the film of Lasse Hallström with de same name (in portuguese: Regras da Vida). The conducting wire of the analyses of the book and the film is developed from the intelligently provocative speculations, e for chocking times, of the philosopher Peter Singer in its Practical Ethical text.
Keywords: 1. bioethics; 2. cinema; 3. literature; 4. philosophy; 5. justice.
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Duas linguagens:
a estética – lítero-cinematográfica, e
a ética – filosófica,
a escrutinarem o mesmo dilema humano: o aborto provocado.
The cider house rules (As regras da casa de cidra) é o título do livro de John Irving (1994) que, nas suas mais de quinhentas páginas, anima seus personagens, de encanto e tristeza, que nos contaminam da mais pura magia da arte literária, dando-nos a oportunidade de identificações com situações absolutamente verossímeis. Ele consegue colocar na sua obra de ficção a exatidão de nossa realidade. Suas edições vêm-se esgotando aliviando a náusea, por catarse, de todos nós.
“Regras da vida” é o título, entre nós, do filme, com 126 minutos de duração, de 1999, baseado nesta história. Na competente direção de Lasse Hallström, com roteiro do próprio autor, John Irving, os personagens ganham forma em um fundo de extraordinária beleza, trazendo à luz paisagens, ambientes, cores, música e diálogos de cristalina singeleza, transformando a cidade de Maine, numa espécie de Paraíso Perdido, apesar de tudo.
Para quem ainda não o leu ou assistiu, e a quem já o fez, chamamos a atenção para o fato de que trabalhar com crianças, dentro de um orfanato, e não cair no pieguismo, no gesto forçado, na poluição da algazarra, em uma enfadonha mesmice sentimentalesca, mas, ao contrário, dirigir estes pequenos atores, extraindo-lhes uma consistência ímpar no riso ou no choro, na fala infantil espontânea, na inocência mostrada, e não explorada, de maneira pungente e autêntica, tudo isso, para um diretor de cena, é como se equilibrar, o tempo todo, em um fio de navalha. No entanto, do começo ao fim, somos convidados a participar do convívio daqueles órfãos, de maneira agradável e surpreendentemente realística.
“Ética prática” (Practical ethics), de Peter Singer (1998), filósofo que provoca o cisalhamento dos pilares que sustentam nossas, aparentemente, irremovíveis convicções. Singer consegue, com argumentação límpida, lógica e direta, transformar, cada um de nós, em verdadeira “metamorfose ambulante”. Sempre que lhe apresentamos uma antítese, emerge uma nova síntese, desmascarando o quanto nossas “velhas opiniões formadas sobre (quase) tudo” são efêmeras ilusões. (trechos entre aspas de Raul Seixas, 1973).
Não iremos congestionar este artigo-resenha com uma sinopse do que é vivido no orfanato e na casa de cidra. Qualquer um de nós pode consultar a videolocadora mais próxima, ou digitar uma busca pela Internet, para ler estes resumos feitos por profissionais da área. Além do que, de sinóptica já bastam nossas vidas: aquela impressão de nunca termos vivenciado plenamente nossas situações.
De termos, limitadamente, enxergado com uma única visão – syn + optikós – todos os ângulos que a existência, pacientemente, procura-nos mostrar, e de sofrermos a terrível angústia vital da irreversibilidade do tempo, impedindo-nos de reparar, concretamente, o desastroso agir diário que temos. Nossas vidas são como o trabalho de um vendedor de comerciais pela mídia. O cliente mostra sua mercadoria e o executivo da publicidade vende o tempo (chronós) de mão-única, sem retorno. Os horários não vendidos já não existem mais. Nossas vidas não vividas já não existem mais, também. Ficam as reelaborações inventadas pela memória a nos iludir.
“Regras da vida” tem de ser saboreado a cada segundo e de maneira global. Em especial, através de seus dois personagens centrais: O Dr. Wilbur Larch, interpretado por Michael Caine, e Homer Wells, corporificado pela inocência nascente de Tobey Maguire. Estas duas figuras se colocam como antípodas na questão básica, o aborto. Cada qual puxa o fio de sua meada ao longo dos fatos correntes. Além deles, é claro, as crianças, objeto primeiro das discussões éticas e estéticas.
Cada uma delas trazida nos seus momentos mais pungentes: Curly, “The One“, sentindo-se sempre o mais rejeitado de todos por não ser adotado pelos casais que aparecem no orfanato; a menina-moça, a mais velha, descobrindo e burilando seu poder erótico de órfã sedução; o pequeno “Fuzzy”, filho de mãe alcoólatra, bronquítico crônico, vivendo numa carinhosa tenda de oxigênio que lhe foi feita especialmente pelo Dr. Wilbur, que nos comove com seus “por quês” sérios e graciosos; a amizade fraterna, sincera e respeitosa oferecida por Buster a Homer, o seu sofrido recolhimento, não se despedindo de Homer, quando este resolve pegar sua carona para o mundo; Homer, que depois de duas adoções equivocadas, acaba nas mãos do próprio Dr. Wilbur, que irá dedicar-lhe um profundo amor paternal, além de prepará-lo a “ser útil” na vida, ensinando-lhe a arte da medicina; a extremosa dedicação das duas enfermeiras-mães se dividindo entre todas as crianças em igual dose.
O que é vivido fora de St. Cloud's acrescenta ao drama os elementos necessários para a grande experiência que Homer irá viver: a paixão por Candy Kendall (Charlize Theron), o trabalho fora da medicina, o contato com pessoas tão diferentes de si, com suas vidas nômades e construídas à base de regras próprias. Irving e Hallström mesclam em sua criatividade, imagens, sons, diálogos e situações, envolvendo-nos na trama do cotidiano deste povo simples, e colocando-nos diante de um impasse cruel: o surgimento uma gravidez por incesto paterno.
De uma coisa temos certeza: todos os personagens desta história são sensíveis, ricos em sentimentos, e, portanto, não há presença de personalidade psicopática, ou sociopática, neste meio. A única exceção, talvez, seria de uma figura bem distante do núcleo das nossas atenções: um catador de maçãs rebelde e agressivo, mas que logo desaparece de cena. Dizemos isso, pois o tema do aborto poderia facilmente associar-se com questões da marginalidade social. Há cenas emocionantes as quais desvelam temperamentos de grande afetuosidade nas figuras temáticas centrais.
Nós lecionamos Filosofia na Universidade Anhembi Morumbi, na cidade de São Paulo. Quando chegamos ao capítulo de Ética e introduzimos a questão do aborto em Bioética, vimos há quatro anos seguidos, apresentando este filme para nossas turmas semestrais. Centenas de alunos têm participado desta experiência. Com cerca de dez turmas por semestre, formadas, em média, por quarenta alunos cada uma, ao longo destes oito últimos semestres. Selecionamos um probando de cerca de 400 alunos, que multiplicado por oito semestres, chega à cifra de 3200 reações individuais ao filme “Regras da vida”.
Mesmo com alunos de postura rigidamente contra qualquer tipo de aborto, não encontramos um sequer que não tenha cooptado a decisão de Homer, em interromper aquela gestação incestuosa. E, a partir daí, com debates de calorosa argumentação, ficamos surpresos com a flexibilização alcançada por nossos alunos em suas posturas, que nos pareciam, a princípio, irremovíveis.
Não podemos reduzir esse debate somente a um SIM ou um NÃO. Cada gestação indesejada surgida vem lambuzada pelo contexto daquelas vidas. A lógica aristotélica binária não dá conta da situação. Newton da Costa nos dá a ferramenta da lógica paraconsistente, aonde, entre o SIM e o NÃO, há muito o quê ser considerado.
Estão em ação inúmeras dimensões humanas nesta questão. Antes de expormos a ética prática da filosofia de Peter Singer, passemos, rapidamente, pelo viés legal e jurídico que contempla a prática do aborto.
O problema legal e jurídico
Pelo Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal Brasileiro capitula o aborto como ato punível a quem praticá-lo ou com ele colaborar. Há penas de detenção e reclusão, sendo esta mais severa (Salles Jr., 2000).
O artigo 124 reza: “Provocar aborto em si mesma ou permitir que outrem lho provoque: Pena-detenção, de um a três anos”.
A experiência diária mostra que a maioria dos abortos se dá com o consentimento da gestante pela prática, embora, com alguma freqüência, encontre-se, também, o auto-aborto (Matielo, 1994, p. 57).
O artigo 125 reza: “Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena-reclusão, de três a dez anos”.
Quando o crime for contra menor de 14 anos de idade, ou em pessoa com debilidade mental, torna-se praticamente impossível provar que houve consentimento da gestante (Idem, pp. 57-58).
O artigo 126 reza: “Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena-reclusão, de um a quatro anos”.
Neste caso à gestante caberá as sanções do artigo 124, e àquele que pratica a manobra, incorrerá no artigo 126.
O artigo 127 prevê o aborto qualificado: “As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”.
O artigo 128 externa os casos de permissão legal para o aborto, dividido em aborto necessário (inciso I) e aborto sentimental (inciso II): “Não se pune o aborto praticado por médico”:
Inciso I do artigo 128: refere-se ao aborto necessário ou terapêutico, executado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.
Inciso II do artigo 128: refere-se ao aborto ético, sentimental ou humanitário, permitido quando resultante de estupro contra a gestante.
Para estes dois incisos é desnecessária a autorização judicial inicial.
A Constituição Republicana de 1988 é ostensivamente contra o aborto, quando insere como cláusula pétrea, o seu artigo 5º, que define como garantia fundamental a inviolabilidade do direito à vida, esvaziando o artigo 128 do Código Penal de 1940. Na revisão do Código Civil de 2002, o artigo 2º vai mais longe ao estabelecer que a personalidade civil começa com o nascimento, mas os seus direitos estão garantidos desde a concepção.
No momento em que escrevo este artigo, está em pauta na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, o projeto de lei nº. 1.135/1991, ao qual estão apensos mais de vinte projetos de lei com o objetivo de legalizar o aborto no Brasil (Bassuma, 2005).
O nosso Código Penal não permite o aborto eugênico, isto é, aquele praticado face à possibilidade de vir o nascituro a portar deficiência física ou mental, por herança genética. A aceitação de tal procedimento faria com que se retornasse aos tempos remotos da antiga Roma, onde se jogavam de penhascos as crianças nascidas com deformidades, sob o pretexto de que os nascidos sem “aparência humana” não eram pessoas, não eram seres humanos (Idem, p. 63).
São puníveis, também, os chamados:
(a) aborto honoris causa: praticado em função de gravidez extra-matrimonial, e que seria realizado “em defesa da honra”;
(b) aborto econômico: quando praticado por questões ligadas à precariedade das condições financeiras da gestante, incapaz de manter a criança e educá-la com dignidade.
Por ser considerado crime contra a vida, o julgamento dos delitos de aborto é feito pelo Tribunal do Júri, constituído por jurados escolhidos do meio social. É o chamado Júri Popular.
Observação: Segundo recente relatório do IBGE, mais de 90% da população brasileira assume uma posição religiosa. Na sua maioria, ainda é a católica apostólica romana, religião que se opõe a qualquer tipo de aborto. Talvez, por isso, os magistrados, os médicos e a direção dos grandes hospitais, se mostram extremamente desconfortáveis quando se deparam com um caso de interrupção de gravidez, mesmo que prevista e autorizada pelo nosso Código. Aqui a religião fala mais alto e cala a lei no fundo do peito. Vejamos a posição oficial da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) nesta questão.
O problema religioso
Ao longo de toda a sua história, não houve um momento sequer no qual a ICAR tenha compactuado com a prática do aborto. Ao contrário, sempre condenou veementemente a interrupção precoce da gravidez; até mesmo o denominado aborto terapêutico, conta com a aversão da ICAR, sob o argumento de que desde o instante da concepção passa a existir um ser humano dotado de sensibilidade e teoricamente apto para a vida. Assim, considera-se o embrião como uma pessoa qualquer, embora em fase de aperfeiçoamento físico.
Face ao exposto, conclui-se que, tratando a ICAR do embrião ou do feto como sendo na verdade “alguém”, e não “algo”, deixa patente que essa visão rotula de assassinato a prática abortiva. A teoria encontra substrato histórico em dois princípios religiosos básicos: (1º) o quinto mandamento, onde expressamente consta “não matarás”; (2º) a idéia do pecado original, que atribui a todos, desde a concepção, o pecado da desobediência no mito de Adão e Eva, quando do princípio dos tempos. Para livrar-se dele, após o nascimento a pessoa deve ser batizada, donde se infere que o aborto impediria a efetivação do batismo e, portanto, comprometeria a alma do ser em formação e a do próprio autor das manobras, pelo pecado de cercear o sagrado direito do nascituro.
Sendo vedada a todas as pessoas, mas principalmente aos católicos a infração à Lei Divina, matar alguém – e abortar equivaleria a isso fazer – é tido como das mais graves afrontas ao Criador que comete o homem em sua passagem terrena.
Procurando amainar a intransigência da ICAR, em tempos recentes conceituados juristas alegaram que se poderia abortar quando verificada, e comprovada, a chamada “legítima defesa”, que estaria caracterizada quando se interrompesse a gestação com o fim único de proteger a vida da gestante, por um ou outro motivo, ameaçada em função do estado gravídico. Respondendo aos bem-intencionados estudiosos, o então Papa Pio XI disse: “De maneira nenhuma! Existe o direito de defesa até ao sangue somente contra o injusto agressor. Quem chamará injusto agressor a uma criatura inocente?”
Diante dessa surpreendente dedução, alicerçada na teoria penal da legítima defesa, que entre seus indeclináveis pressupostos coloca a repulsa a uma injusta agressão sofrida pela outra pessoa, restaram sem efeito os apelos dirigidos ao Vaticano. Isso porque realmente não se vislumbra, no caso formulado pelos juristas, a agressão do embrião ou feto à gestante, com o que esta não estaria autorizada a “defender-se”.
Apesar disso, equipes, reconhecidamente capazes de médicos ofereceram a sua solução, tentando receber o consentimento da ICAR para a realização de abortos quando em risco a vida da mulher. Para tanto, lançaram mão do próprio argumento do Vaticano, dizendo que se a prática não era permitida porque se estaria impedindo o batismo, poder-se-ia modificar o sistema e batizar o embrião ou feto no próprio ventre materno, com a aplicação intra-uterina de água benta esterilizada em ínfimas porções. Calcado, porém, no mandamento que ordena “não matarás”, o Papa João Paulo II rejeitou o plano médico, embora não tenha expendido explicações sobre a viabilidade, ou não, do batismo intra-uterino se se deixasse de lado a questão do mandamento de Deus.
Abrindo pequena brecha no rigorismo católico, vários Papas, entre os quais, Clemente VIII, toleravam o provocação do aborto precoce, pois admitiam que o produto da concepção somente adquiriria alma quarenta dias após a fecundação, no caso de geração de um ser masculino, e oitenta dias depois da mesma, quando se estivesse gerando um ser feminino. Todavia, a denominada “doutrina da animação tardia” sofreu de imediato avassaladoras críticas, tendo sido logo substituída pela “teoria da animação imediata”, ou seja, o novo ser receberia a alma no exato instante da fecundação. Assim, fecharam-se as portas para novas tentativas de evolução em relação à matéria, retornando-se à primitiva idéia.
Essa posição tem sido preservada com fervor através dos séculos, mesmo com as inovações alcançadas em legislações mais recentes, como, por exemplo, a autorização para aborto terapêutico, empregado quando indispensável à sobrevivência da gestante. A orientação da ICAR é clara e intangível: embora correndo real perigo de vida a mulher, ninguém tem permissão religiosa para provocar o aborto, ainda que imbuído de espírito humanitário, eis que somente Deus tem poder de vida ou de morte sobre as criaturas. Em casos definidos, a Igreja consente com a aceleração do parto, por meio de cesariana, contanto que o feto tenha perfeitas condições teóricas de sobreviver por si só após a retirada de dentro do ventre da mãe, ou seja, deve estar “maduro”. Nisso inclui-se a hipótese em que a gestante falece e ainda há possibilidades de extração do feto com vida do útero, tornando viável o batizado do mesmo.
Por outro lado, jamais aceita a ICAR que se provoque a expulsão de um feto imaturo, incapaz de sobreviver desagregado do corpo materno, mesmo que manobra direcionada à preservação da vida da mulher. Surge, aqui, outra base a amparar a vedação, traduzida nos dizeres do evangelista Paulo de Tarso: “Não se fará o mal para conseguir o bem”, ou seja, não se deve abortar com o fim de obter a salvação da vida da grávida. Isso resume fielmente a forma como a Igreja encara o aborto terapêutico, já que quanto às demais formas de cessação antecipada do estado gravídico não recebem qualquer outra explicação para a proibição a não ser a necessidade de respeito à ordem divina de não matar. Aliás, a questão do aborto terapêutico somente teve atenção por parte da Igreja devido às várias correntes que defendiam, com bons argumentos, a liberação, forçando-a ao oferecimento de parecer minucioso e forte motivação para justificar sua posição contrária (Matielo, 1994, pp. 16-19).