As Várias Abordagens no Budismo (Parte I)

Quarta Abordagem: Vacuidade

Sexta e Sétima etapas do Nobre Caminho Óctuplo

Textos de apoio: Sutra do Coração e Sutra do Diamante (na tradução de Eduard Conze); Surangama Sutra; Lankavatara sutra; Nono Capítulo do Caminho do Bodisatva, de Shantideva; as obras todas de Nagarjuna; A Clarificação da Sabedoria Primordial, de Tsong Khapa (natradução de Robert Thurman).

Tudo o que disser respeito à vacuidade e à meditação fará parte dessa abordagem. Existem tradições específicas que vão focar sua prática e instrução quase que apenas aqui, como a tradição Zen em suas várias origens e expressões. O Zen chinês, por exemplo, começa com Bodidharma, cuja tradição olha tudo através da vacuidade, gerando paralelamente muitas artes como formas de expressar não só a vacuidade no sentido convencional, como também no sentido de luminosidade. Entre essas várias formas de expressão está a arte do chá e a Ikebana. No Budismo chinês a prática da meditação e a compreensão da vacuidade incluem a compaixão ativa em benefício às populações ao redor do mosteiro. Como por exemplo, no trabalho do templo Zulai em Cotia, São Paulo. Lá, existe a preocupação com a comunidade, a preocupação em trazer benefício aos seres, manifestar compaixão. Isso é algo realmente importante, é a fusão da quarta com a terceira abordagem, ou seja da vacuidade com a compaixão.

A quarta abordagem é uma forma de compreensão, uma linguagem, um processo muito sofisticado que irá nos permitir compreender a natureza da vacuidade expressa em todas as coisas. Porém, no contato entre Ocidente e Oriente, os ensinamentos sobre a natureza da vacuidade nem sempre foram bem compreendidos, gerando algumas confusões. Ao ouvir sobre a vacuidade, pode surgir a sensação de que esse ensinamento trata da falta de sentido das coisas, da sua insubstancialidade, da sua irrealidade. Ainda que isso, numa certa medida, seja realmente dito, essa não é a verdade última. A verdade última não é o fato de que os objetos ou eventos não têm sentido e de que as realidades convencionais são construídas arbitrariamente, mas, sim, que para poder ver o sentido mais profundo das coisas, nós devemos ultrapassar a estreiteza dos significados convencionais. Só assim teremos a capacidade de reconhecer a profundidade de todas as experiências nas quais corriqueiramente estamos envolvidos.

Existe uma secção dos ensinamentos nesta quarta abordagem, na qual realmente se afirma que as coisas convencionais não têm sentido. Porém, algumas pessoas do Ocidente, encontrando esse ensinamento, acreditaram ter compreendido a visão última. Dessa forma, associando essa compreensão equivocada às suas próprias depressões, as pessoas geraram uma visão completamente pessimista. Por essa razão, é necessário ter muita atenção, porque no Budismo não há espaço para qualquer visão negativa. Pelo contrário, nós vamos encontrar inseparável da compreensão da vacuidade a experiência de uma natureza muito sutil e luminosa. Vamos perceber que a noção de vacuidade é mais bem compreendida quando nós olhamos não a ausência de sua forma última, mas justo o fato de que as formas passam a ter forma através da luminosidade da natureza ilimitada. Esse é o mistério que nós vamos focar, ou seja, o processo misterioso pelo qual as coisas ganham sentido aos nossos olhos e mentes. Assim focamos o tema da vacuidade inseparável da luminosidade. A classe de ensinamentos que reconhece a vacuidade é representada pela literatura Mahayana Sutrayana, especialmente nas obras de Nagarjuna, esse grande mestre que pertence a várias linhagens.

Até aqui, nós vimos uma indicação geral do que seja essa abordagem, mas qual seria o seu conteúdo? Essencialmente, seria a compreensão de que os objetos em sua materialidade não têm as propriedades a eles atribuídas. Mas essa é a compreensão mínima, apenas o primeiro ponto. Avançando nessa análise, nós vamos ver que os objetos manifestam as suas propriedades através da inseparatividade com o observador. E avançando ainda um pouco mais, nós vamos reconhecer que o observador também não tem propriedades intrínsecas. Isso é chamado de “A dupla ausência de identidade intrínseca, a vacuidade do objeto e do observador. Mais adiante, a vacuidade não só será compreendida como a ausência das propriedades do objeto, do observador e a inseparatividade entre eles, mas também como a própria expressão da luminosidade. Ela será vista como um espaço ilimitado e inseparável do princípio ativo que produz todas as experiências.

Essencialmente, esse é o foco da quarta abordagem. A partir dessa compreensão, dessa experiência básica, nós vamos contemplar as várias experiências, tudo o que se referir aos órgãos dos sentidos e seus objetos, assim como, o próprio sentido abstrato da mente. Nós também vamos reconhecer a criação incessante de observadores que surgem como identidades contemplando mundos específicos inseparáveis deles mesmos. Essa contemplação é a prática do Prajnaparamita. Seguindo assim chegamos num ponto muito curioso, porque, eventualmente, nesse nível de análise, nós percebemos que os nossos sentidos são limitados. Por quê? Porque nós estamos desenraizando o automatismo de considerar absoluto um mundo que surge através dos nossos órgãos dos sentidos. Ao fazer isso, nós nos damos conta de que esse é um mundo muito restrito. Até os cientistas sabem que esse mundo é uma pálida expressão do que pode ser visto, uma vez que os nossos sentidos físicos são uma pequena expressão das várias possibilidades. Através dos olhos, nariz, ouvidos, língua e corpo nós podemos perceber apenas parte de tudo o que poderia ser visto, ouvido, sentido pelo olfato, pelo paladar ou pelo tato se estes fossem mais abrangentes. Assim, mesmo com respeito a abordagem convencional, nos vemos limitados a uma visão de mundo estreitada pela característica dos nossos órgãos dos sentidos. Ainda assim, em meio as nossas experiências o mundo convencional parece completo e nada parece estar faltando.

Quando buscamos desenraizar nossa experiência de mundo limitado, o que é que desenraizamos? Apenas isso, estamos presos a esse mundo, sustentados pela experiência dos sentidos. No entanto, é possível a mente se dar conta da vastidão onde verdadeiramente surgimos e nos movimentamos além de espaço, tempo, nome, forma e separatividade. O Prajnaparamita, o ensinamento sobre a Perfeição da Sabedoria, vai nos oferecer um roteiro para contemplação de todos esses elementos, assim como, de outras classes experiências sutis como os “doze elos da originação interdependente”. Nós vamos examinar os doze elos e ver que a vacuidade também se aplica a eles. Enfim não há verdadeira substancialidade no sofrimento, nas experiências da vida, nas experiências de surgimento e existência. E não só isso, a vacuidade se aplica aos próprios ensinamentos budistas, às Quatro Nobres Verdades, ao Nobre Caminho de Oito Passos. Nós vamos entender que os ensinamentos são provisórios, são remédios que produzem resultados e a seguir são abandonados. Eles são catalisadores de experiências de lucidez, mas eles mesmos não são a experiência de lucidez. Eles apenas nos conduzem à experiência. Da mesma forma que os catalisadores são deixados ao final das reações químicas, os ensinamentos também são abandonados quando surge a realização. Os ensinamentos do Buda apenas acionam o processo de lucidez, eles mesmos são provisórios e serão abandonados ao final.

A experiência de lucidez é a culminância da quarta abordagem. Mas nós não podemos dizer que essa experiência de lucidez seja uma experiência de sabedoria, propriamente. Na experiência de lucidez, a sabedoria é um catalisador. Quando a lucidez está presente, nós não precisamos necessariamente lembrar dos ensinamentos, dos textos. A lucidez pode se expressar através dos ensinamentos, mas ela não depende deles. A lucidez se torna a realização, o final do caminho. A culminância desse ensinamento vai ser justamente o reconhecimento de que a vacuidade enquanto ausência de propriedades não é o aspecto mais interessante. O aspecto mais interessante é a combinação da ausência de propriedades com o próprio surgimento das propriedades. Ao final dessa quarta abordagem, o ponto fundamental é percebermos como as propriedades surgem e se tornam as nossas experiências. Alguns autores consideram que o Mahayana se estende até aqui e que, da quarta para a quinta abordagem, ocorre uma transição em que o foco de atenção passa a ser a natureza original que se manifesta como luminosidade e liberdade.

Continua…

Que todos os seres possam praticar o Darma!

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