As Várias Abordagens no Budismo (Parte I)

Segunda Abordagem: Buscando a Perfeição

Segunda, terceira e quarta etapas do Nobre Caminho Óctuplo

Textos de apoio: Dhammapada e os primeiros capítulos do Caminho do Bodisatva, de Shantideva

A segunda abordagem vai tratar dos obstáculos internos aos nossos esforços por gerar uma ação positiva. Para abordar esse aspecto, os ensinamentos vão falar sobre o carma, sobre a prisão, sobre samsara, ciclos de morte e renascimento, experiência cíclica. Os ensinamentos vão apontar o fato de que todos nós estamos perdidos de alguma maneira. Nós tomamos decisões e sequer conseguimos cumpri-las, decidimos não mais agir de forma negativa e, no entanto, todas as emoções perturbadoras brotam automaticamente, nos impulsionando a ações que sabemos impróprias.

Ao nos darmos conta de que não basta apenas a decisão de agir com um bom coração, fica claro o que seja o carma. Nós nos surpreendemos ao perceber que há uma dimensão dentro de nós operando de forma autônoma. Essa dimensão nos confunde e nos divide. Para que possamos efetivamente fazer aquilo a que nos dispomos é necessário uma natural presença e autonomia do corpo, uma energia natural, uma operação mental e uma paisagem que justifique e apóie o que será feito. Se esses quatro níveis estiverem operando, então efetivamente algo será realizado, caso contrário, nós nos sentiremos divididos, ou seja, estaremos simultaneamente com o corpo, a energia, a mente e a paisagem em lugares completamente diferentes.

Por outro lado, essa multiplicação revela complexas características internas. Nós podemos nos multiplicar de forma lúcida ou podemos ficar presos a esse processo. Essa categoria de ensinamentos é muito vasta e importante no Budismo. Ela nos conecta diretamente à psicologia budista porque ela vai tratar do cotidiano, das dores da vida. Para esses ensinamentos existem ainda várias abordagens como, por exemplo, a saúde do corpo, a saúde mental, as aflições emocionais, o reconhecimento do carma, as aspirações religiosas pela purificação do nosso coração e assim por diante. Ao olharmos cada uma dessas abordagens é necessário mantermos uma perspectiva geral que, sem tirar a importância de cada uma delas, localize-as dentro de um conjunto. É importante também lembrar que, neste ensinamento, nós estamos adotando uma perspectiva na qual não iremos falar de identidades, mas trataremos o carma de forma impessoal.

 Considerando que a nossa característica básica a liberdade, o carma seria a sua restrição. Essa é a linha que irá nos conduzir para a compreensão desses ensinamentos. A expressão da liberdade é como a liberdade do espelho que mesmo refletindo várias imagens, não é perturbado pela presença de nenhuma delas. Isso é a inseparatividade. Caso não haja essa compreensão, nós iremos nos perder como em um jogo de espelhos, no qual não se sabe se a liberdade é uma condição do carma ou se o carma surge por liberdade. No sentido budista, o carma é uma expressão da liberdade original e não a liberdade uma expressão do carma. A própria repetição das nossas ações surge por liberdade.

Vida após vida, nós estamos fazendo as mesmas coisas. Nós estamos agindo por impulsos e esses impulsos foram todos programados. Se nós observarmos, hoje nós temos impulsos que não tínhamos há 20 anos e da mesma forma, os impulsos de 20 anos atrás não estão mais presentes. Portanto, os impulsos são móveis. Por outro lado, existem impulsos de tempos longínquos que sequer foram movidos ao longo dessa vida. A partir desses impulsos nós nos confundimos, dizendo: “Eu sou isso”. Assim surge a prisão e ela nos é tão íntima que chegamos a afirmar: “Eu sou isso”. Nós tomamos as paredes da prisão como a nossa identidade. As nossas prisões vão se tornando as nossas seguranças e não só as seguranças, como as nossas próprias definições.

E como isso acontece? Nós simplesmente esquecemos da liberdade e nos transformamos na representação perfeita da nossa prisão. A descrição completa das grades que nos aprisionam pode surgir, por exemplo, na forma de um cartão de visitas contendo todas as definições pelas quais nos reconhecemos. Essas definições estabelecem e perpetuam a prisão. Nós passamos a reconhecer o mundo ao redor de forma natural, como se tudo estivesse perfeito e nada faltasse na nossa visão. Os médicos olham pelas grades de um médico; os advogados, os artistas, os engenheiros, todos olham através das grades da sua prisão. Esse reconhecimento se torna tão automático que não percebemos mais a forma como ele se dá. Nós simplesmente olhamos o mundo pelas grades e dizemos: “O mundo é assim.” Esse é o ensinamento sobre o carma.

 A partir dessas grades surge o natural impulso das seis emoções perturbadoras. Surge o orgulho, a inveja, o desejo e apego, o medo, a carência e a raiva. O carma vai se manifestar naturalmente desde a paisagem onde operam essas emoções. As ações vão surgir e se justificar a partir da paisagem. Mas o carma não só atua a partir da paisagem, como também a partir de uma inteligência que se manifesta no nível da mente, das emoções e do corpo. O corpo se posiciona, responde, atua segundo a paisagem, segundo a mente e a disposição emocional. O nosso objetivo, portanto, será produzir uma experiência de liberdade frente a qualquer um desses níveis.

Na classe de ensinamentos da segunda abordagem, nós não só vamos encontrar um estudo detalhado sobre o carma, como também várias práticas de purificação. Essas práticas existem porque mesmo tendo recebido ensinamentos muito sofisticados, eventualmente existem regiões que não foram tocadas, nas quais permanecem resíduos a serem purificados. Assim, nós vamos precisar passar por uma malha fina, localizar dentro de nós todos os elementos que devem ser ultrapassados. Se isso não for feito, nós podemos pensar que determinados aspectos foram transformados, quando na realidade eles continuam dentro de nós, nós simplesmente não os estamos vendo. Por isso a importância dessa malha fina. Ela vai nos ajudar a identificar pontos que, de outra forma, dificilmente seriam trabalhados.

É preferível que as práticas de purificação sejam feitas a partir das perspectivas e métodos mais sofisticados. De modo geral, na segunda abordagem, as práticas de purificação ainda estão ligadas a um processo pessoal, no qual nós dizemos “Eu deveria isso, eu deveria aquilo…”. No entanto, nesse nível pessoal, as práticas são menos poderosas. As práticas de maior poder estão ligadas a uma abordagem mais ampla. Por essa razão, nós vamos tratar do item da purificação na perspectiva do Prajnaparamita, ou seja, ultrapassando o nível pessoal. Com essa explicação torna-se ainda mais clara, a importância de mantermos uma visão ampla ao tratarmos das diferentes abordagens para os ensinamentos. Essa visão irá nos permitir entrar em secções específicas dos ensinamentos, protegidos das dificuldades e obstáculos que poderiam comumente surgir.

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