Declaração de Belém

III Fórum da Unesco Sobre Ciência e Cultura

EM DIREÇÃO À ECOÉTICA: VISÕES ALTERNATIVAS DE CULTURA, CIÊNCIA, TECNOLOGIA E NATUREZA

Belém, Pará, Brasil 05 a 10 de abril de 1992

Introdução

Nos três anos que se seguiram à Declaração de Vancouver, resultado do II Fórum da UNESCO sobre Ciência e Cultura, a situação do mundo tem piorado consideravelmente em todas as dimensões relevantes

  • a pobreza cresceu em grande escala e atingiu uma nova dimensão qualitativa por exemplo, “novos pobres” têm aparecido em paises e grupos sociais que eram até ontem razoavelmente prósperos;

  • entre os paises prósperos, a marginalizacão daqueles menos favorecidos atingiu um nível crítico, conduzindo a uma mudança na situação sócio-psicológica, e mesmo a um sentimento generalizado de desespero,

  • a erosão de ideologias tradicionais conduziu a uma perda de apoio “cultural” para o reviver de esperança para o pobre e o menos favorecido, e isso traz prejuízos para o equilíbrio social já profundamente abalado em muitas áreas do mundo;

  •  tem havido uma crescente intolerância a virtualmente todas as manifestações de diferenças humanas (sejam estas de ordem econômica e social, de origem étnica, de tradições religiosas, etc.), incluindo o florescimento de violência e de guerras locais de enorme virulência; a  criminalidade  organizada  está  em  ascensão, conduzindo não apenas a um poderio econômico mas também político de profundas repercussões internacionais.

Soluções para os problemas globais não podem ser impostas ao mundo por força econômica política ou militar. A resolução de tais problemas deveria, antes, ser baseada em considerações de ordem social e ética. Todos devem pagar sua parcela do custo para se atingir estabilidade e sobrevivência com dignidade.

A pobreza generalizada, que afeta cerca de 80 % da população do mundo, é imoral, e medidas urgentes são necessárias para combater essa situação, especialmente interromper o fluxo de capital do Sul para o Norte. Essas medidas são preliminares essenciais para qualquer proposta de melhora das relações do homem com a natureza, para se atingir a paz global.

Visão integral de ciência, cultura e natureza

A ciência tem aumentado as potencialidades da vida humana e tem aberto caminho para um florescimento completo da capacidade criativa do ser humano Mas é precisamente uma certa concepção “científica” da posição do ser humano na natureza, primeiro sugerida no século XVII, que está na origem de nossos crescentes problemas econômicos, ecológicos e éticos Nessa concepção, que remonta a trezentos anos, a ciência é encarada como um instrumento de dominação do homem sobre a natureza, e o homem se vê como um componente mecânico de um universo que é como uma máquina.

Esse quadro “científico” do homem e da natureza tem mudado profundamente durante o século corrente. O desenvolvimento da física, da biologia e das ciências cognitivas tem mudado a idéia do homem como uma peça numa máquina gigantesca, determinística, para a idéia do homem como um componente orgânico de um todo não-determinístico, um componente que tem um papel essencial no processo criativo que dá forma e definição ao mundo que nos cerca. Essa nova imagem do homem fornece os fundamentos intelectuais de um sistema de valores mais em harmonia com os valores tradicionais e pode servir como fundamento moral de uma ordem mundial ecologicamente aceitável.

População

Por volta de 1850, a população do mundo atingiu um bilhão e continuou à aumentar num ritmo crescente Dobrou em 1930 e atingiu 3 bilhões em 1950, A bilhões em 1974 e 5 bilhões em 1988 Ela vai atingir 6 bilhões até 1998. Embora as razões de crescimento tenham começado a declinar, o número adicionado cada ano, correntemente cerca de 95 milhões, continuará a crescer por outros 10 a 20 anos, e a próxima duplicação, no ritmo atual, é prevista para meados do próximo século. Seria difícil exagerar a seriedade desse números. O crescimento populacional é uma das maiores causas de pobreza e uma ameaça para a sobrevivência. O mundo todo está superpovoado, e as tendências atuais devem ser reduzidas e revertidas.

A situação exige medidas imediatas para se alcançar a plenitude de direitos para a mulher, assim como sua conscientização e educação,reduzindo-se assim a fertilidade   Embora o desenvolvimento econômico e a educação possam conduzir a uma maior redução do nível de natalidade, é necessário notar que o tempo é curto. A eliminação da miséria e da pobreza não solucionará todos os problemas, mas nenhum problema poderá ser resolvido se não enfrentarmos o fator pobreza.

Tecnologia

Muitas inovações tecnológicas do passado tiveram como resultado danos não planejados e não previstos ao homem e ao meio ambiente. O futuro deverá requerer uma reorientação maciça que nos possibilitará emergir das presentes dificuldades, e nessa situação a ciência deverá ter um papel preponderante. Atualmente, pelo uso excessivo dos recursos da Terra e pelo desenvolvimento da tecnologia, estamos tomando emprestado das gerações futuras, e, ao exaurirmos recursos renováveis (por exemplo, solo e água), estamos reduzindo as possibilidades de inúmeros seres ainda não nascidos. As relações entre a tecnologia e o sistema econômico deveriam ser estruturadas de modo que servissem ás possibilidades e ao bem-estar de todos A partir de tecnologias não violentas e menos danosas, deveríamos dar um passo em direção a práticas ambientalmente amigáveis A distensão da Guerra Fria certamente demanda uma transferência de tecnologia militar para usos civis.

As duas novas tecnologias genéricas, biotecnologia e informática, estão agora indicando que terão um impacto maior e mais abrangente que todas as tecnologias industriais anteriores, e possivelmente um maior impacto que aquele resultante da revolução neolítica que nos deu a agricultura.

Essas duas novas tecnologias são caracterizadas por menor uso de matéria-prima e de energia Sua esperada penetração exponencial na economia poderia muito bem resultar na redução das pressões populacionais sobre os recursos do planeta Contudo, como se relacionam tão diretamente com biologia e cultura, elas também levantarão inúmeras questões éticas

O impacto de ambas as tecnologias será sentido diferencialmente através da divisória Norte-Sul Para fazer uso suficiente dessas potencialidades, é essencial manter a expansão do treinamento científico e o suporte financeiro de pesquisa original em todos os níveis Sem o florescimento de uma tal base, novas tecnologias continuarão a criar dependência. Um elo deve ser estabelecido entre biotecnologia e conservação da diversidade biológica para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

 

Natureza e Culturas

Há necessidade de reconhecer a integridade da natureza e do homem como uma parte integral dela. Apesar de as tecnologias avançarem permanentemente, devemos reconhecer que há valiosos aspectos das culturas tradicionais que oferecem uma importante mensagem para hoje e para o futuro Tais culturas podem parecer simples no ambiente científico de hoje, mas muitas são o resultado de um equilíbrio com o ecossistema que vem de longa data, e detêm uma lição de ecoética para a sociedade. A preservação da biodiversidade nas florestas tropicais úmidas depende da autonomia cultural dos povos indígenas que valorizam, usam e protegem essas florestas.

A diversidade cultural constitui a reserva que a humanidade possui de respostas ao ambiente apreendidas ao longo dos tempos e que tornam possíveis a coexistência e o auto-reconhecimento. A diversidade cultural deve ser respeitada e preservada, não apenas para a dignidade de seus membros, mas também para a sobrevivência da herança comum da humanidade. A coexistência cultural implica respeito mútuo e deve evitar a dominação de uma cultura sobre outras.

Crescentemente tem sido reconhecida a existência de maneiras válidas de conhecer outras culturas. Isso inclui o conhecimento de medicinas e plantas utilizadas pêlos povos das florestas úmidas e por grupos semelhantes em outras partes. Além disso, há vastos depositórios de conhecimento em filosofia, psicologia e medicina em civilizações não ocidentais. Alguns desses modos de conhecer poderiam muito bem conduzir a uma relação simbiótica com a ciência moderna, enriquecendo ambas.

A preservação de ecossistemas está ligada à exploração e coletânea museológica, jardins botânicos e zoológicos, arquivos e bibliotecas. A canalização de recursos para a tecnologia tem deixado baixa prioridade para inventários e coleções de materiais biológicos dos países em desenvolvimento. Fundos adequados são essenciais, nesse caso, para a pesquisa científica e a educação.

Mulheres

As capacidades das mulheres para enfrentar situações de desastre ecológico que ameaçam sua sobrevivência e as de seus filhos têm sido preservadas por séculos em contextos culturais distintos Essas capacidades devem ser mantidas para a utilização de sociedades futuras Mulheres são forcadas pelas circunstâncias a reconhecer desastres ecológicos, pois elas são muitas vezes as primeiras a sofrer pêlos seus efeitos.

Elas são também capazes de mobilizar ações comunitárias menos violentas e a longo prazo. A educação das mulheres é uma prioridade para se diminuir e reverter o crescimento populacional.

Globalização e localização

As fontes de conhecimento não ocidentais estão diminuindo rapidamente, enquanto uma cultura hegemônica envolve todo o globo. Essa tendência à globalização está sendo muito favorecida pelr telecomunicação e pelas redes de computadores que circundam o mundo e que podem fazer com que uma decisão financeira em um país tenha um efeito imediato sobre e sorte de um pobre fazendeiro num outro.

Essa tendência ocorre num tempo de revoltas étnicas dispersas que vão em direção contrária. Muitas vezes essas revoltas levam ao confronto entre vizinhos que por séculos têm tido suas culturas permeáveis A violência sem sentido contra civis, que é uma marca desses conflitos, dificulta o fluxo horizontal de culturas e ao mesmo tempo deixa uma brecha para a globalização A importância das culturas locais è perversamente diminuída à medida que a revolta e a sua supressão se tornam mais violentas.

Há necessidade urgente de permanecer alerta aos efeitos de culturas locais e de globalização.

Conclusão

Não estamos exagerando quanto à magnitude da crise que a humanidade enfrenta hoje. Por outro lado, ainda temos capacidade de criar um espaço sustentável na natureza Para isso é necessária a mudança para uma nova moralidade extraída de muitas fontes que se complementam. Essa fontes incluem os achados objetivos da Ciência, assim como os sentimentos mais profundos em direção à natureza, que se exprimem em vários grupos culturais. Essa nova moralidade, uma ECOÉTICA, pode ser não só a essência de uma nova visão de um futuro sustentável para a nossa espécie, mas também um guia para ação efetiva.

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