Declaração de Vancouver

II Fórum da Unesco Sobre Ciência e Cultura

A SOBREVIVÊNCIA no século XXI

 

Vancouver, BC, Canadá, 10 a 15 de setembro de 1989

A partir do Simpósio sobre “Ciência e as Fronteiras do Conhecimento”, realizado em Veneza em 1986 notou-se a atual da crise que ameaça a sobrevivência da civilização e da própria espécie no planeta   Decidiu-se convocar o II Fórum como um simpósio com uma agenda que permitisse: necessidade de focalizar a análise das relações entre as ciências e as tradições no contexto

 

 

1. uma tomada de consciência do problema e de sua extrema urgência em nível mundial;                                    

2. o lançamento de um apelo a todos os responsáveis científicos, culturais, espirituais, econômicos e políticos para se traduzir essa tomada de consciência em ação efetiva;

3. o exame das causas, de todos os tipos, que nos conduziram ao desastre planetário e das novas vias por contemplar para que essa sobrevivência ainda seja possível a médio prazo.

 

Além dos objetivos específicos, o Simpósio conduziu a um grande número de considerações, sintetizadas a seguir.

A iminência de uma explosão demográfica que levará a população do planeta a seis bilhões de habitantes no ano 2000, num momento em que, como conseqüência da poluição e da desertificação, os recursos planetários vão se reduzindo em proporções consideráveis, está entre as principais causas. Além disso, enumera-se o esquentamento do planeta e o risco de que um terço das terras atuais seja submergido num futuro relativamente próximo, a destruição da biosfera e os gastos inimagináveis de recursos financeiros e humanos com finalidades bélicas.

A origem do problema pode ser encontrada numa concepção cientifica que. no seu aspecto reducionista e explorar os recursos com um espírito de poder e de posse suicida Esse comportamento contra a natureza e a vida conduziu o homem a privilegiar um único modelo de desenvolvimento, ignorando a complexidade cultural, econômica, espiritual e social, que constitui a verdadeira essência da espécie. atomista, conduziu o homem a considerar a natureza e o universo como um poço de riquezas sem fim e a

Essas reflexões põem em causa o conjunto dos conceitos e modelos atuais, na medida em que sobreviver j depende de uma visão global ou holística da realidade, visão esta que emana, por sua vez, das grandes | tradições e das conclusões mais recentes da física. Isso exige uma mudança radical, que se aplica a todos os níveis do saber e do fazer.

Claramente, a interação viva de todas as coisas no universo implica o nosso ambiente e a tradução de nossos conhecimentos em um processo de integração que abranja os aspectos mais sutis da realidade. Essencialmente, busca-se uma unidade total de vida entre o homem, a natureza e o corpo cósmico.

Devemos,  portanto,  procurar uma transformação radical de nossos modelos de desenvolvimento,  de educação e de civilização, baseada no reconhecimento de uma pluralidade de modelos de culturas, de espiritualidade  e  de diversificações sócio-econômicas, e no respeito a cada uma das inúmeras modalidades.

Uma redefinição de prioridades da ciência e da tecnologia para que os caminhos para o seu desenvolvimento respeitem o meio vivo e sejam acompanhados de um autocontrole que evite todas as aplicações que possam ameaçar a vida e o meio ambiente, e o desrespeito às tradições, que pode. como conseqüência, corromper a textura sócio-cultural.

O preço da sobrevivência é o resultado de uma revolução fundamental e da emergência de valores qualitativos em oposição às estruturas quantitativas e destrutivas que existem hoje.

Resumindo, é necessário facilitar o aparecimento de uma nova consciência mediante a qual o homem poderá encontrar a plenitude de seus direitos ligados à sua dignidade de ser vivo, num quadro de solidariedade e responsabilidade que comprometem cada Estado, cada grupo social e cada indivíduo.

A Declaração de Vancouver se refere a essas considerações e sintetiza as discussões que tivemos por ocasião do Simpósio que mencionei acima


DECLARAÇÃO DE VANCOUVER

A sobrevivência do planeta tornou-se uma preocupação central e imediata A situação atual exige medidas urgentes em todos os setores: científico cultural, económico e político.e uma maior sensibilização de toda a humanidade Devemos abraçar a causa comum com todos os povos da Terra contra o inimigo comum, que é qualquer ação que ameace o equilíbrio do nosso ambiente ou reduza a herança para gerações futuras Esse é o objetivo da Declaração de Vancouver sobre Sobrevivência.

 

l – A HUMANIDADE EM FACE DA SOBREVIVÊNCIA

Nosso planeta é instável, uma máquina térmica em permanentes transformações.

Na sua superfície, há cerca de quatro bilhões de anos a vida se desenvolveu em equilíbrio com o ambiente, onde mudanças repentinas e imprevisíveis eram a norma. A descoberta, há cerca de duzentos anos, da energia livre armazenada em combustíveis fósseis deu à humanidade o poder de dominar toda a superfície do planeta, e, num período de tempo incrivelmente curto, sem planejamento e quase sem reflexão sobre as conseqüências, nossa espécie tornou-se, sem qualquer comparação, o maior fator para a transformação do planeta.

As consequências têm sido drásticas e únicas na história da nossa espécie:

  • crescimento exponencial da população nos últimos 150 anos. de um bilhão para mais de cinco bilhões e, atualmente, dobrando a cada 30 – 40 anos.
         um aumento comparável no uso de combustíveis fósseis, conduzindo à poluição global da atmosfera e à alteração no clima e no nível das águas marítimas:

  • destruição acelerada do habitat de vida, iniciando assim um episódio irreversível de extinção em massa na biosfera, que é a base do ecossistema da Terra;

  • gastos inimagináveis de recursos materiais e de criatividade em guerras e em preparação para a guerra.

E tudo isso se faz crendo-se na inexauribilidade de recursos do planeta, sob o encorajamento de sistemas políticos e económicos que enfatizam o lucro imediato como um beneficio e ignoram o custo real da produção.

A situação que a humanidade enfrenta envolve o colapso de qualquer equilíbrio entre nossa espécie e o resto de vida no planeta. Paradoxalmente, num momento em que estamos no limiar da degeneração do ecossistema e da degradação da qualidade de vida humana, o conhecimento e as ciências estão agora numa posição de fornecer a criatividade humana e a tecnologia necessárias para se tomarem ações remediadoras e se redescobrir a harmonia entre natureza e humanidade. Está faltando apenas a vontade social e política.

 

II – AS ORIGENS DO PROBLEMA

A origem dessa situação tão angustiosa e de nossa perplexidade repousa fundamentalmente em certos desenvolvimentos científicos que essencialmente se completaram no início do século Esses desenvolvimentos, os quais foram codificados matematicamente numa visão do universo baseada na mecânica clássica, deram aos seres humanos um poder sobre a natureza que tem, até recentemente, produzido um sempre crescente e aparentemente suprimento de bens materiais.

Mergulhada na exploração desse poder, a humanidade tendeu a mudar seus valores para valores que promovem uma realização máxima das possibilidades materiais que esse poder possibilita Foram assim suprimidos valores associados com as dimensões do potencial humano, que haviam constituído os fundamentos de culturas anteriores.

O empobrecimento da própria concepção de ser humano causado por essa omissão das outras dimensões está absolutamente coerente com a concepção “cientifica” do universo como uma máquina, na qual o ser humano não é mais que uma pequena engrenagem.

A concepção que o homem tem de si mesmo é um determinante principal dos seus valores. Ele fixa a concepção do “eu” a partir da avaliação ao seu interesse pessoal.

Assim o empobrecimento ideológico associado com a visão do homem como uma pequena engrenagem em uma máquina, conduz ao estreitamento de seus valores.

Contudo, os avanços científicos do século atual têm mostrado que uma visão mecanicista do universo e insustentável em termos puramente científicos Assim, a base racionai para uma concepção mecanicista do homem tem sido invalidada.

 

III – VISÕES ALTERNATIVAS

Na ciência contemporânea, a velha e rígida visão mecânica do universo é substituída por conceitos que permitem um universo que é o produto de impulsos criativos contínuos, não condicionados rigidamente a qualquer lei mecânica. O próprio ser humano se torna um aspecto desse impulso criativo, que está ligado ao universo numa relação que não se expressa nos velhos marcos referenciais mecanicistas. Ser se torna assim, não mais uma engrenagem mecanicamente controlada dentro de uma máquina gigantesca, mas sim a manifestação de um impulso livre e criativo que está intrínseca e imediatamente ligado ao universo como um todo.                    

 Portanto, os valores humanos se tornam, nessa nova visão cientifica, expandidos para valores muito mais em consonância com aqueles que prevaleceram em culturas anteriores. Nesse complexo de imagens convergentes do ser humano, que os recentes desenvolvimentos científicos e culturais nos proporcionam, é onde procuramos visões de um futuro que permitirá ao ser humano sobreviver com dignidade e em harmonia com seu ambiente.                                                                                            

A humanidade atingiu, não somente suas limitações externas, mas também suas limitações internas de ambiente sócio-cultural em transformação. Ao mesmo tempo, a evolução da ciência parece permitir a aceitação de outras formas de conhecimento que dariam ao ser humano a capacidade de recuperar a riqueza das crenças e a variedade de experiências espirituais. No contexto dessas considerações e da presente situação crítica, a maneira como a humanidade tem ocupado o planeta exige novas visões, ancoradas em uma variedade de culturas, para contemplar o futuro: compreender as complexidades resultantes de seus próprios atos, bem como sua capacidade de viver num

  • a percepção de um macrocosmo orgânico que recaptura os ritmos da vida permitirá ao ser humano reintegrar-se na natureza e restaurar seu relacionamento no espaço e no tempo com a vida como um todo e com o mundo físico;

  • o reconhecimento pelo ser humano de que ele é parte do mesmo padrão que define o universo j amplia sua auto-imagem e permite-lhe transcender o egoísmo, que é a principal causa de desarmonia entre indivíduos e entre a humanidade e a natureza;

  • a superação da fragmentação da unidade corpo-mente-espírito. resultado de uma ênfase desequilibrada de algumas partes, em detrimento de outras e do todo, lhe permitirá redescobrir em seu próprio íntimo o.reflexo do cosmo e seu princípio unificador supremo.

Tais visões pedem uma transformação radical dos modelos de desenvolvimento: a eliminação da pobreza, ignorância e miséria; o fim da corrida armamentista; novos processos de aprendizagem, sistemas educacionais e atitudes mentais; melhores formas de redistribuição para se assegurar equidade social um novo estilo de vida baseado na redução do desperdício, no respeito pela biodiversidade, numa diversificação de sistemas sócio-econômicos e na diversidade cultural, transcendendo os conceitos desatualizados de soberania.

Ciência e tecnologia são indispensáveis para se atingirem essas metas, mas somente poderão ter resultados positivos mediante uma reintegração da ciência e da cultura de modo a assegurarem um sentido de finalidade, bem como um enfoque integrativo com o objetivo de se superarem as fragmentações que conduziram a uma interrupção nas comunicações culturais.                                       

Se falharmos no redirecionamento da ciência e da tecnologia para as necessidades fundamentais os avanços na informática (repositório de conhecimento), biotecnologia (patenteamento de formas de vida) e engenharia genética (traçado do genoma humano) conduzirão a conseqüências irreversíveis em detrimento do futuro da vida humana.

O tempo é escasso e pede rapidamente a conclusão de uma paz ecocultural com a ajuda da ciência e da causara um maior custo para a sobrevivência.

Devemos conhecer a realidade de um mundo multirreligioso e a necessidade do tipo de tolerância que permitirá a cooperação mútua das religiões, quaisquer que sejam suas diferenças. Isso contribuirá para satisfazer o que se requer para a sobrevivência humana e para se manter o núcleo comum dos valores de solidariedade, direitos e dignidade humanos. Isso é uma herança comum de toda a humanidade e deriva de nossa percepção do significado transcendental da existência humana e de uma nova consciência global.

Vancouver, Canadá, 15 de setembro de 1989

 

Daniel A Akyeampong (Físico; Ghana), Ubiratan D'Ambrósio (Matemático; Brasü), André Chouraqui (Biblicista. Israel), Nicolo Dallaporta (Físico; Itália), Pierre Danserau (Ecólogo; Canadá), Mahdi Elmandjra (Economista, President Association Internacionali Futuribles; Marrocos), Santiago Genovés (Antropólogo; México), CarIGoran Hedén (Biólogo, President, World Academy of Arts And Sciences; Suécia), Alexander King (President, Club de Roma), Eleonora Masini (Socióloga, President, World Future Studies Federation; Itália), Digby Mciaren (Geólogo, President, Royal Society of Canadá), Yujiro Nakamura (Filosofia; Japão), Lisandro Otero (Novelista; Cuba), Josef Riman (Genética Molecular, President, Czechoslovak Academy of Sciences, Checoslováquia), Soedjatmoko (Ex-Reitor da Universidade das Nações Unidas, Indonésia), Henry Stapp (Física; USA).

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