No início da era cristã, os Terapeutas do deserto já postulavam uma antropologia não dual, considerando o ser humano como uma totalidade corpo/alma/espírito, “não separando o que o próprio Deus uniu”. No marco desta antropologia holística, conforme Leloup, Fílon desvelava a condição humana dentro de uma quaternário:
Basar ou soma: a dimensão corporal;
Nephesh: a alma, a dimensão psíquica;
Nous: a consciência sem objeto, a dimensão noética da psique em paz; e
Rouah ou pneuma: o sopro, a dimensão espiritual.
Saúde plena, para os Terapeutas, refere-se ao corpo, à alma e ao nous quando são habitados pelo Espírito; é a transparência do essencial no existencial. … A tarefa considerada primordial para os Terapeutas era cuidar, já que é a Natureza que cura. Antes de tudo, cuidar do que não é doente em nós, do Ser, do Sopro que nos habita e inspira. Também cuidar do corpo, templo do Espírito; cuidar do desejo, reorientando-o para o essencial; cuidar do imaginal, das grandes imagens arquetípicas que estruturam a nossa consciência; e cuidar do outro, o serviço à comunidade, implicando o próprio centramento no Ser. Nesta tradição, o templo era também hospital e escola, um jardim para o cultivo e pleno florescimento do ser humano, “sacerdote da criação”, ponto de encontro do universo consigo mesmo.
Ao mesmo tempo sacerdotes, médicos, psicólogos e educadores, os Terapeutas de Alexandria constituem, para os pós-modernos, uma admirável referência histórica, inspiradora de uma abordagem transdisciplinar-holística, aplicada ao campo da saúde integral.
Graças a Jean-Yves Leloup, com a sua inspiradora poética e sabedoria hermenêutica, a voz dos Terapeutas do deserto, emoldurada pelo dom do Silêncio, pode ser ouvida no tumultuado momento contemporâneo, nesta crise de parto de uma nova Idade da Consciência. Ph.D em psicologia, filósofo e sacerdote ex-dominicano e hesicaste, Leloup encarna, nas suas palavras e no modo de ser, a plenitude do ideal dos Terapeutas.
Roberto Crema
Nas palavras de Leloup:
Saiba mais sobre Jean-Yves Leloup
A antropologia dos Terapeutas, que cuida do ser em todas as suas dimensões, corporal, psíquica e espiritual, parece que se perdeu. Encontram-se hoje inúmeros institutos especializados em cuidar do corpo enfermo, do psiquismo perturbado ou do espírito à procura do Ser, mas bem poucos consideram o ser humano em sua integralidade. Medicina, Psicologia, Espiritualidade passam a ser domínios separados que fazem às vezes piorar em vez de curar a fragmentação do ser humano.
Os Terapeutas não viviam nem num hospital nem num mosteiro e, no entanto, aí se poderiam encontrar os “cuidados” que estes dois termos implicam. Talvez o seu modo de vida estivesse mais perto daquilo que os antigos chineses chamavam de “observatório”. Um lugar para observar e escutar o Sentido que a Vida poderia assumir num momento dado numa história particular.
Todavia hoje se nota um certo retorno do espírito dos Terapeutas e a criação de institutos que respeitam o ser humano e cuidam dele na sua integralidade. … Além da ordem dos médicos, é necessário criar a ordem dos Terapeutas. Essa ordem lembraria as exigências de um enfoque multidimensional do ser humano e favoreceria uma prática menos fragmentada, isto é, menos sectária da medicina, da psicologia e da espiritualidade.
Como se poderia esperar um mundo melhor sem rever os pressupostos antropológicos dos nossos métodos de tratamento? Um mundo melhor pede uma melhor antropologia. Neste domínio, como em tantos outros, o Novo não deve ser com certeza procurado do lado da novidade, mas de um Eterno-Fonte e das anamneses loucas ou rigorosas que faz jorrar. Devolver ao ser humano o corpo que lhe falta e a palavra perdida: Cuidar do Ser.
Extraído do livro “Cuidar do Ser: Fílon e os Terapeutas de Alexandria” de Jean-Yves Leloup
5ª Edição – Editora Vozes