O Iogue

Por Cláudio Azevedo

Extraído de Azevedo, Cláudio; A Caminho no Ser: Uma Visão Transpessoal

da Psicologia no Yoga S?tra de Pat?ñjal?, Editora Órion, Fortaleza, 2.007

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A ‘Busca do Eu’ constitui o tema em torno do qual se estrutura o caminho individual que leva à liberação. Consiste num processo difícil e prolongado de auto-investigação sutil (?tman vic?rasangraha?) com inúmeros estágios. Nesse processo, a delimitação entre os estágios e até o número de estágios é objeto de discussão filosófica, mas para o sábio (vidu?a?) essa discussão é totalmente fútil. Pode-se dizer que só existe uma cor (a branca), pois ela inclui todas as outras. Pode-se dizer que existem três cores fundamentais (vermelho, amarelo e azul) das quais surgem todas as outras. Pode-se dizer que existem sete cores no espectro da luz e pode-se dizer que existem infinitas gradações de cores constituindo todo o espectro da luz.

 


A Caminho no Ser

Assim, toda a delimitação de estágios e níveis de realidade (tattvas) é arbitrária, fruto da percepção individual de um autor, ou escola filosófica. Por isso a grande diversidade de classificações e nomenclaturas existente por toda a parte. Mas a nossa mente analítica adora isso, até porque facilita o aprendizado, embora seja apenas um instrumento de aprendizado. Na realidade, todo nível, que puder ser descrito como tal, se interpenetra e se mistura com os outros adjacentes, sendo impossível delimitá-los em seus limites: tudo é um processo gradativo (pari??ma).

Mesmo assim pode-se, arbitrariamente, considerar a existência de quatro tipos de iogues 3:206, segundo o Ha?ha Yoga Prad?pik? (IV:70-78):

  • Arambh?vasth?: estado dos iniciantes em sam?dhi ou prathama kalpika;
  • Ghat?vasth?: estado de receptáculo, ou intermediário, quando já adquiriram algumas capacidades (siddhis) – os madhubhumika;
  • Paricay?vasth?: estado de acumulação, em que já percebem a luz da pura Consciência ou prajñ?jyoti; e
  • Ni?patty?vasth?: estado mental maduro dos que, renunciantes e já absolutamente desligados do mundo, atingiram com êxito o mais alto nível, em suas práticas espirituais – os atikranta bhavaniya.

 

Esse estado transpessoal de consciência, conhecido como sam?dhi, se estende por diversos estágios e níveis de realidade, tendo que ser dominado em cada um. Esses estágios e níveis mentais de realidade são incluídos num único termo sânscrito: citta. Yoga é a cessação (nirodha) das modificações mentais (v?ttis) em todos esses níveis mentais (citta).

O ponto comum, a todos aqueles que se iniciaram na técnica do sam?dhi, é que eles obtiveram a capacidade de experimentar e manter o silêncio espiritual, que surge quando se pacifica annamaya?, pr??amaya? e manomaya? ko?a. E esse silêncio não é um fugir do externo, mas é uma total compreensão da ‘realidade’ exterior, que se iniciou com a simples observação (o Observador em ação) do externo, evoluiu com o esforço na ponderação nos opostos até que se despertou a capacidade de ‘ver os dois lados’, de ver o que ‘é’ e o que ‘não é’, simultaneamente (viveka).

Com manomaya? ko?aimóvel, a percepção consciente ultrapassa esse veículo mental e atinge vijñ?namaya? ko?a. Nesse ponto, aprofunda-se e lentifica-se de tal forma a respiração que ela pára espontaneamente (kevala k??bhaka), acarretando uma parada idêntica, e consciente, dos batimentos cardíacos: a energia vital se retira dos pulmões e do coração.

Somente aqui é que se percebe a Presença dentro de si, no centro do coração (h?daya) YS III:35, pois a ku??alin?-?akti chegou ao an?hata cakra. Testemunhar a Presença é perceber Aquele que permanece em silêncio enquanto falamos, que perdoa e esquece quando falhamos, que segue sereno quando estamos aflitos e que prosseguirá no caminho quando estivermos morrendo. Testemunhar a Presença é ‘ouvir a voz do Silêncio’:

“Escuta somente a voz que não tem som” 2:93.

Estar no ‘Espaço de Silêncio’ é a condição sem a qual não se consegue o progresso no caminhar. É um estado ampliado de consciência, de alta vibração, onde se percebe ‘Aquele que É’, e se reconhece sua Presença em nosso caminhar. Percebemos o presente (o ego só pode experienciar o passado e projetar o futuro a partir dele) com suas inúmeras (ou infinitas) possibilidades (ações) e efeitos (conseqüências), sem julgamentos (quem julga e cataloga é o ego) e com plena aceitação. É somente no ‘Espaço de Silêncio’ que o real pode emergir, que o novo, que independe do velho, pode surgir.

Deixa-se de caminhar através do ego e passa-se a caminhar através do Ser, ouvindo a sua voz em meio aos barulhos do cotidiano; ouvindo aquela ‘Voz do Silêncio’ que nos conforta, aconselha, acalma e encanta. Somente nesse ponto é que nos aprofundamos como Observadores de nós mesmos. Somente nesse ponto, respirando ‘nas costas’, é que conseguiremos ‘ver e ouvir’ o outro, centrados que estamos no Ser.

O real valor das palavras está no espaço de silêncio entre elas, onde o seu verdadeiro peso se situa. Muitos passam a viver no nobre silêncio, mas alguns outros, alternando com o seu silêncio, começam a expressar no falar o que lhes ocorre no íntimo, comunicando ao outro quem realmente são e o que descobriram. Não se deve confundir silêncio com passividade ou indiferença, pois o verdadeiro Silêncio embute em si mesmo o poder da verdadeira ação:

“Os grandes mestres sabem ser severos e rigorosos sem renegarem a mais perfeita quietude e benevolência”.

Caminhar no “Espaço de Silêncio” é caminhar com o coração, o centro de todas as coisas. Não no sentido sentimentalista, mas no sentido de se caminhar silenciosamente atento. Passamos a nos abrir para a vida, gerando mais vida e energia e nos expondo ao julgamento do outro. Ao mesmo tempo, a mudança gerada no karma pessoal, pelo cumprimento do pr?rabdha karma programado, faz com que contratempos surjam, frutos da liberação de novos ‘pacotes’, que estavam armazenados em karm??aya?como sañcita karma.

Quando se atinge essa ampliação da consciência, passa-se a interagir, mais intensamente, com o inconsciente coletivo da humanidade e com as sincronicidades. Em outras palavras, a cada ampliação da consciência surge a necessidade de transmutar um novo pacote de sañcita karma (pessoal ou coletivo), o que pode ocasionar medo no buscador, agora um iogue: são as ‘provações’ do caminho do autoconhecimento, presentes principalmente no campo familiar e profissional, mas também no grupo de caminhada espiritual.

Desentendimentos pessoais, antipatias, ambições individuais, rancores, sentimentos inferiores velados por uma ‘aura espiritual’ num processo de auto-ilusão do qual ninguém está livre. Surgem problemas financeiros, acusamos o outro, baseados em ‘certezas intuitivas’, provindas da energia mental, principalmente, do inconsciente coletivo. Cada vitória nossa, nesse ponto da caminhada, é uma vitória da humanidade, cada vitória tem um peso realmente importante na evolução coletiva.

Muitos passos descritos até agora podem ser muito fáceis para alguns, quase um relembrar (‘deja-vú’), mas sempre que novos desafios surgem, frutos do avanço no caminhar, uma sensação de desânimo começa a pairar sobre o buscador, fazendo-o mudar de foco e desistir da caminhada. Aqui de novo a fórmula mágica: abhy?sa (perseverança na prática – exercícios e estudo) e vair?gya (desapego ao visto e ao não visto) YS I:12. O silêncio é o único caminho à introspecção e ao sam?dhi, ao Vazio e à Luz Eterna.

“E no profundo silêncio ocorrerá o misterioso acontecimento que comprovará que o caminho foi encontrado. Não importa como tu a chames; é uma voz que fala onde não há ninguém para falar – é um mensageiro que vem, um mensageiro sem forma nem substância: ou antes, é a flor da alma que se abriu. Este acontecimento não pode ser descrito por qualquer metáfora. Pode, porém, ser pressentido, buscado e desejado mesmo em meio ao furor da tempestade. O silêncio pode durar um momento ou prolongar-se por mil anos. Porém, terá fim. No entanto, levarás contigo a força dele…”  2:59-61.

 

Agora nossa percepção consciente está em vijñ?namaya? ko?a, cônscia da ‘Voz’ no Silêncio. Quando vijñ?namaya? ko?ase acalma passamos a perceber luzes por toda nossa tela mental, constatamos que aquela Presença é Luz e atingimos o vazio pleno em ?nandamaya? ko?a. É nesse ponto que a ku??alin?-?akti atinge o vi?uddha cakra: experimenta-se o vazio (?k??a) da Consciência Cósmica, vibrando por todo o Universo.

A dimensão mais sutil da mente só é percebida quando se alcança a plenitude do vazio, através de cinco etapas: cid?k??a, par?k??a, dar?k??a, ?tm?k??a e mah?ka?a. Essa percepção só ocorre quando a ku??alin?-?akti atinge o ?jna cakra e caminha, em seu trajeto final, até o sah?srara cakra. No ?jna cakra, livre de todos os ko?as e centrado em ?tman, se experimenta o mais alto nível de sab?ja sam?dhi e no sahasr?ra cakra ?tman obtém a emancipação final, em nirb?ja sam?dhi.

Todos esses estágios antes da emancipação, por vezes, duram alguns milésimos de segundo, mas deixam seus rastros registrados na memória consciente facilitando o retorno a eles. Desperta em nosso íntimo um sentimento de saudade (bhakti), semente da verdadeira devoção. O fogo da ku??alin?-?akti acendeu a luz interna de nosso Ser e nos capacitou a facilitar o processo de acender a luz interna do outro. Uma alma desperta é como uma vela acesa, apta a acender outras velas, despertando outras almas no silêncio, doando fogo sem nada perder.

Pat?ñjal? descreve tecnicamente todo esse processo de desenvolvimento superconsciente da percepção, que se amplia e passa a vivenciar outros níveis de realidade através de nossos ko?as mais sutis, em sab?ja sam?dhi. Aqui mais uma grande armadilha e obstáculo à consecução do objetivo final de perceber o reino da Realidade, conhecer Deus: o apego às alegrias obtidas pelas experiências espirituais. Conhecido como rasa? sv?da 1:102, esse apego nos mantém preso nos estados intermediários de evolução espiritual e se desenvolve um total desinteresse por um maior progresso.

 

BIBLIOGRAFIA

  • As referências bibliográficas acham-se assim indicadas: xx:yy, onde ‘xx’ é o número da referência contido na BIBLIOGRAFIA (no final do livro) e ‘yy’ é a página onde se encontra.

  • Quando precedendo ‘xx’ estiver escrito YS, a obra referenciada é o Yoga S?tra de Pat?ñjal?, BG quando for Bhagavad G?t?, VC quando for o Viveka Ch?d?mani, TB quando for o Tattvabodha? e SS quando a obra referenciada for o ?iva S?tra (obra de referência no ?ivaísmo de Cachemira). Nesses casos ‘xx’ é o capítulo e ‘yy’ é o s?tra.

  1. Bhaskarananda, Swami; Meditação: a Mente e a Yoga de Patânjali; Editora Lótus do Saber, Rio de Janeiro, 2.005;

  2. Collins, Mabel; Luz no Caminho, Editora Teosófica, Brasília, 1.999;

  3. Satyananda, Paramahansa; Four Chapters on Freedom; Bihar School of Yoga, Bihar (India), 1.979;

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