Por Cláudio Azevedo
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Transcender o mundo ilusório da manifestação e contemplar a Realidade Última é um longo caminho. Somos a tentativa mais próxima de êxito desse Observador, que na realidade somos nós mesmos.
O processo de percepção consciente se inicia na autopercepção egóica das inúmeras tendências que são frutos de nossos desejos mundanos (v?san?). Tais desejos e tendências projetam imagens mentais (pratyaya) gerando modificações mentais reativas (v?ttis) que dificultam a dissociação da Consciência de seu veículo de manifestação mental (citta) e o guiam por caminhos pré-determinados.
Há aqueles desejos e tendências que nascem de nosso temperamento (oriundos dos gu?as) ou na nossa forma de encarar a vida, e há aqueles que nascem de nosso caráter (oriundos de karm??aya?). Karm??aya? é a fonte mais profunda de nosso caráter e reflete a profunda ‘cegueira’ espiritual (avidy?) em que nos encontramos, fruto de anos e anos de acúmulo de v?san?s . Quanto mais v?san?s (impressões de nossos pensamentos, desejos, sentimentos e ações que foram frutos de asmit?) são registrados, num círculo vicioso condicionado (sa?s?ra), mais fortes as tendências de nossa ‘natureza humana’: nossos pecados capitais.
É asmit? a fonte de todos os nossos ‘pecados capitais’ (orgulho, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça), que não são propriamente pecados, mas tendências do caráter humano, posto que criam aha?k?ra (aha? – eu; k?ra – fazer dizer), nosso ego autoconsciente que nos faz dizer ‘eu’: o responsável pela sensação de uma existência individual.
Aha?k?ra pode existir em três estados qualitativos de temperamento, dependente da proporção existente das qualidades fundamentais da matéria (gu?as) que o compõe: tamas (a inércia, passividade e ignorância, de onde procedem a preguiça, o engano e a indiferença), rajas (a atividade constante proveniente do desejo e do apego, fontes de sofrimento) e sattva (o equilíbrio e a harmonia de onde surgem a verdade, a paz e a bondade). Rajas e tamas escravizam e imobilizam o homem e fazem-no perceber o não-Eu como o Eu. Para ?a?kara, aha?k?ra é uma poderosa e terrível serpente que envolve o Eu, fonte da existência corporificada (nascimento, sofrimento, velhice e morte), cujas três cabeças (gu?as) devem ser cortadas e sua vida destruída pela espada do discernimento que brota da Sabedoria VC:303.
“Quando desejos, cobiça, ganância ambição e dinamismo externo perturbam o sossego da alma, então sabe que rajas te governa. Quando estupidez, inércia e arrogante ignorância, erro, incerteza e superstição se apoderam de ti, então tamas te avassalou. BG 14:13-14 … Os que vivem à luz de sattva pairam nas alturas da consciência do Eu divino; os que vivem dominados por rajas guiam-se pela consciência do ego mental; e os que vivem em tamas só conhecem a vida corporal”. BG 14:19
Para o Ved?nta VC:142, é o poder de rajas que nos impele à ação, seguindo tendências preexistentes e produzindo mais apego e sofrimento. É por esse poder, que inclina à ação e à dispersão (vik?epa-?akt?), que rajas produz a arrogância e avareza, a luxúria, a ira, a inveja, os ciúmes, etc.. Já o poder velador (?v?tti ou ?vara?a-?akt?) de tamas nos envolve, subjuga, amarra e cristaliza VC:140-141. É ele que nos tolhe e impede o discernimento, pois faz uma coisa parecer outra. Aqueles que têm o temperamento tamásico de preguiça, embotamento, sono, ilusão e ignorância, sempre são levados pelo poder expansivo de rajas, profundamente adormecidos e sem nada perceber corretamente.
Tamas é eliminado pelo uso correto de rajas ou pelo desenvolvimento de sattva (harmonia), enquanto rajas é removido por sattva e sattva por sattva purificado VC:279: a destruição da ilusão de aha?k?ra pela contemplação do Eu VC:299-311. Vencermos nossa inércia (sthiti) pelo movimento (kriy?)(prak??a) entre inércia e movimento YS II:18 (sattva). primeiramente leva a um caos que deve ter como meta a construção de uma harmonia
Sattva é um estado em que nem rajas nem tamas predominam. Esse momento, em que as propriedades de sattva (a harmonia, o equilíbrio e a paz), mesmo que misturado com tamas e rajas, começam a surgir em nossa vida, se assemelha ao alvorecer que dissipa a escuridão: tudo adquire um novo significado com um profundo contorno espiritual. Sattva é a única qualidade da mente na qual du?kha não pode surgir 1:140.
Sattva produz o auto-respeito, a reverência, o desejo pela libertação do sofrimento e pela prática de auto-restrições (yamas) e auto-observâncias (niyamas). Isso continua até que, quando sattva se nos apresenta puro, surge uma paz e um contentamento inabaláveis que advém da real percepção do Eu, que progressivamente se nos acentua.
Kle?a-tan?kara?a |
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Kriy?-yoga? | A????gayoga |
Vijñ?na (conhecimento intelectual) | Jñ?na-d?pti? (luz interna do conhecimento) |
Dhy?na(auto-observação) | Upek?? (equanimidade) |
Pratipak?a-bh?vana? (ponderação sobre os opostos) |
Vidy? (sabedoria) |
Va??k?ra sa?jñ? (consciência de autodomínio) | |
Viveka (discernimento comum) | Buddhi sa?vedana? (autocognição) |
Pratiprasava (reabsorção de Kle?as) |
T?raka-jñ?na (conhecimento liberador) |
Viveka-jñ?nam (sabedoria discriminativa) |
Viveka-khy?ti (discernimento permanente) |
Estágios a percorrer para atingir a percepção direta da Realidade
Como os kle?as só se manifestam quando as condições apropriadas surgem, Pat?ñjal? esclarece que o primeiro passo para evitar as modificações dolorosas mais evidentes é a auto-observação 1:137: observação reflexiva ativa da mente concreta (manas inferior) pela meditação analítica (dhy?na) YS II:11. Devemos ser capazes de estar conscientes, observar as diversas fases do fenômeno mental e perceber a chegada das modificações mentais reativas (v?ttis) provenientes de nossas dores ativas (ud?r???? kle?as), ou seja, todos os nossos pensamentos ‘bons’ ou ‘ruins’.
Esse é o primeiro procedimento a ser adotado, como um firme propósito (v?rya), por quem se determina a trilhar o caminho de ‘Busca do Eu’: uma real observação de nossos hábitos (sa?sk?ras). Só assim poderemos ser capazes de transformar nossas dores ativas (ud?r???? kle?as) em atenuadas (tanu kle?as), e, posteriormente, em inativas ou latentes (prasupta kle?as).
Surge o segundo passo. Para fugir dos caminhos pré-determinados de nossa mente (citta), além de investigar sua natureza e implicações, através da auto-observação faz-se mister a ponderação sobre os seus opostos (pratipak?a-bh?vana?) YS II:33-34: humildade, generosidade, castidade, paciência, temperança, caridade e disciplina. Pratipak?a significa sair de uma situação buscando obter uma melhor visão através de outro ponto de vista. Começa a surgir a nossa capacidade de livre-arbitrar e não mais ser regido automaticamente por nossos hábitos e tendências.
À medida que o falso conhecimento (avidy?) se dissolve, e os kle?as se atenuam, começa a surgir o discernimento comum (viveka) que vem do verdadeiro conhecimento, e, paulatinamente, ele substitui a ponderação sobre os opostos. Viveka significa ‘ver os dois lados’, ser capaz de ver o que ‘é’ e o que ‘não é’ 1:146. Começamos a mudar, conscientemente, nossos hábitos e tendências (sa?sk?ra). Mas somente a mudança de hábitos não resolve o problema dos kle?as.
Enquanto houver apegos e repulsas, haverá ansiedade (t?pa), fruto de nosso medo de não obter (ou perder) objetos de apego ou de entrar em contato com objetos de repulsa. T?pa força nossa mente, diante da impermanência da vida (pari??ma), a mudarmos constantemente nossos hábitos (sa?sk?ras), como forma de busca de satisfação de nossos sentidos (preya), mas, devido à impermanência, muitas vezes, só obtemos o que queremos em relação ao objeto quando já não o desejamos.
Nesse ‘jogo da vida’ (l?l?), sempre se está insatisfeito. Quando estamos tendendo à inércia, a atividade se nos mostra à frente (ou vice-versa) gerando conflitos (virodha?) entre nosso temperamento (gu?a) e nossa mente (v?tti) YS II:15:
“Se, auto-iludido, disseres ‘não lutarei’, iludes a ti mesmo; e a própria Natureza, em virtude dos seus atributos, te obrigará a lutar. O que procuras evitar, iludido pelas aparências, a isso mesmo serás compelido finalmente, contra tua vontade, mercê das forças que vivem no íntimo do teu ser”. BG 18:59-60
Ou seja, como já vimos no início desse capítulo, para aquele que pode discernir, a vida humana se resume a quatro aflições (impermanência, hábitos, ansiedades e conflitos) e que apenas construir bons hábitos é insuficiente para se atingir a plena felicidade. Assim, à medida que nossa ignorância (avidy?) se desfaz, devido ao surgimento do discernimento (viveka), até essas causas de aflição mais sutis estarão prontas para ser paulatinamente atenuadas, ou seja, reabsorvidas à sua origem (pratiprasava): a ignorância YS II:10.
Entretanto, somente o surgimento do discernimento não é suficiente, no início, para vencer a inércia de um vício instalado. Aha?k?ra é inteligente, melindroso, esquecido e, principalmente, é medroso. É por isso que ‘esquecemos’ de praticar o que já sabemos que tem que ser feito: por medo(bhaya). É por isso que freqüentemente nos flagramos repetindo o mesmo vício (por ‘esquecimento’) ou repetindo-o de formas mais sutis e disfarçadas (inteligentemente ‘enganando’ o Eu). Aha?k?ra é muito inteligente! E de nada adianta tentar mudar impondo à aha?k?ra a mudança. Melindroso que é e ‘sentido’ que fica, desloca o hábito para camadas mais subconscientes e continua o ciclo vicioso de maneira imperceptível.
Então, antes que aqueles dois passos façam florescer em aha?k?ra suficiente discernimento (viveka-jñ?nam), a firmeza de propósitos (v?rya), que vem junto com o discernimento (viveka), é a única forma de manter a atenuação de nossas aflições (pela reabsorção – pratiprasava) e a barreira contra a reativação de nossos maus hábitos, apesar de existirem algumas tendências que ainda sejam mais fortes que a própria ponderação consciente sobre seu oposto.
Mas essa firmeza de propósitos deve ser direcionada para o convencimento e não para a imposição. Aha?k?ra deve ser tratado com atenção, carinho e compaixão para que se possa obter as mudanças necessárias de forma real, não por imposição, mas pelo poder do convencimento, e toda mudança de hábitos deve consistir de pequenos ganhos: pequeno, devagar e sempre.
Somente então, com a atenuação de quase todos os nossos hábitos e conseqüente serenização maior da mente, é que o buscador se torna apto ao caminho do a????gayoga de Pat?ñjal? YS II:29:
Aw yaeganuzasnm!.1.
atha yog?nu??sana?
(I-1) Agora (atha) uma exposição do ensinamento (anu??sana?) para (obter-se) o estado de yoga.
Agora, com a prática ininterrupta desse caminho, obtém-se a capacidade de despertar aquela luz interior que nos torna independentes de orientação externa (jñ?na-d?pti?) YS II:28 e, após sete estágios (saptadh?), consegue-se a percepção direta da Realidade (prajñ?-?tambhar? YS I:48-49 ou viveka-khy?ti). YS II:26
O primeiro estágio é a aquisição da percepção de que todo o conhecimento vem de dentro (jñ?na-d?pti?) YS II:28, através de um processo de interiorização: se conhece o que deve ser conhecido. Há uma clareza de percepção não racional, mas por um processo mental superior de intuição (pr?tibh?d) YS III:34. Então se passa a perceber que todas as experiências são internas, que tudo somente consiste de percepções mentais com seus sentimentos associados. Quando se é consciente de que todas as dores e alegrias são apenas os próprios processos mentais, e se consegue inibi-los, é plantada a semente da equanimidade (upek??) YS I:33 e cessam todos os sofrimentos: se elimina o que deve ser eliminado. Esse é o segundo estágio!
“Quem a ninguém ofende nesse mundo, nem se sente ofendido por ninguém, mas paira acima de gozo e dor, liberto de cólera e temor… Quem nada aceita nem nada rejeita em interesse próprio… – esse me é querido”. BG 12:15-16
O terceiro estágio vem com a aquisição, a partir de si mesmo, da sabedoria (vidy?), que vem após a neutralização total da mente seguida da compreensão da própria mente: a consciência se individualiza (se separa da mente). Assim individualizada, surge a compreensão de todo o Cosmos: desperta a consciência da própria onisciência. É uma compreensão que prescinde de todo e qualquer processo de aprendizagem. Adquire-se a plena satisfação do conhecimento.
Então se percebe que o Cosmos já é perfeito e que todas as coisas estão em seus devidos lugares: a consciência se aquieta, calma e serena. Nada há para alterar e nada há para se fazer. Tudo é e está da forma que tem que ser e estar. Surge então o quarto estágio, que é a consciência de autodomínio (va??k?ra sa?jñ?) YS I:15, em que não há mais desejos, mas apenas uma plena satisfação na não-ação: o buscador, agora um caminhante centrado no Ser, torna-se um akarta (não fazedor).
Surge então, como conseqüência, um estado mental de plena atenção imperturbável, fruto da percepção do Observador em si mesmo (autocognição), em que se perde o desejo egóico de fazer (ni?k?ma karma). Nesse quinto estágio (buddhi sa?vedana?) YS IV:22, embora ainda possam persistir antigos hábitos, tendências ou impressões mentais (sa?sk?ras), eles perdem a capacidade de perturbar a mente (citta-v?tti). Agora é somente questão de tempo para que a mente seja dissolvida e ‘descartada’ (mano-n??a ou citta-n??a) pelo conhecimento transcendente (t?raka-jñ?na) YS III:54 e a inteligência pura (buddhi) brilhe em todo o seu esplendor: a Libertação. Esse é o sexto estágio!
“Quem é sereno e equilibrado em face de amigo e inimigo, imperturbável em face de louvores e vitupérios, em face de calor e frio, em face de prazer e sofrimento, livre de qualquer escravidão – esse me é querido”. BG 12:17
Restará então somente o sétimo estágio da consciência pura auto-iluminada: a Emancipação na contemplação ininterrupta do Eu pelo Eu BG 9:34, pelo discernimento permanente (viveka-khy?ti) entre o Real e o irreal YS II:26. Atinge-se o estado mental de Kaivalya em dharma-megha?-sam?dhi.
Saptadh? prajñ? | |
Segundo Pat?ñjal? | Segundo Vy?sa |
Vyutth?na citta (consciência ordinária YS III:9 e III-37) |
Parijñata prajñ? (se conhece o que deve se conhecer) |
Nirm??a citta (consciência individualizada YS IV:4) |
Heyak???a prajñ? (se elimina o que se deve eliminar) |
Pra??nta citta (consciência serena YS III:10) |
Pr?pyapr?pti prajñ? (se alcança o que deve se alcançar) |
Ek?grat? citta (consciência atenta YS III:11-12) |
K?rya?uddhi prajñ? (se faz o que se deve ser feito) |
Nirodha citta (consciência inibida YS III:9) |
Karit?dhik?ra prajñ? (se obtém o que se deve ser obtido) |
Chidra citta (consciência dissolvida YS IV:27) |
Gu??c?ta prajñ? (a inteligência pura) |
Paripakva citta (divy?? citta) (consciência pura) |
Svar?pam?trajyoti prajñ? (a consciência auto-iluminada) |
A Consciência Pura (Puru?a) empreendeu uma viagem de autopercepção unindo-se à matéria (Prak?ti). Durante essa viagem, a Consciência foi sendo modificada pelos vários planos da matéria e sua percepção, que nasceu da interação entre os dois, levou-o a se identificar com o veículo material da mente (citta) YS II:23-24.
A Consciência não poderá reconhecer a Si mesma, em todo o Seu esplendor, enquanto a percepção não transcender e dissociar-se YS II:25 de todos os níveis mentais pelos quais viajou YS II:20, dissolvendo todos os níveis de auto-identificação (asmit?), e atingir aquele estado mental iluminado permanente de discernimento entre o Real e o irreal (viveka-khy?ti).
Assim, na realidade o Yoga é um caminho de desunião (viyoga) e separação progressiva entre Puru?a e todos os níveis de Prak?ti com os quais se uniu, até que Puru?a perceba que Prak?ti é uma manifestação d’Ele mesmo, que só existe para que Ele possa perceber a si mesmo YS II:20-21. Então, é somente quando se atinge o mais alto nível de consciência que viyoga se transforma em Yoga.
BIBLIOGRAFIA
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As referências bibliográficas acham-se assim indicadas: xx:yy, onde ‘xx’ é o número da referência contido na BIBLIOGRAFIA (no final do livro) e ‘yy’ é a página onde se encontra.
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Quando precedendo ‘xx’ estiver escrito YS, a obra referenciada é o Yoga S?tra de Pat?ñjal?, BG quando for Bhagavad G?t?, VC quando for o Viveka Ch?d?mani, TB quando for o Tattvabodha? e SS quando a obra referenciada for o ?iva S?tra (obra de referência no ?ivaísmo de Cachemira). Nesses casos ‘xx’ é o capítulo e ‘yy’ é o s?tra.
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Desikachar, T. K. V.; o Coração do Yoga, Editora Jaboticaba, São Paulo, 2007.