Quem são os Ícones da Paz em Nosso Meio?

  

Outro dia essa questão surgiu assim no canto de uma reunião, aflorando sem planejamento ou premeditação. Resultado: levou à percepção de que há uma dificuldade considerável em identificar pessoas que encarnem de forma contundente e inconfundível o valor da paz.

Será que isso também acontece em sua cidade, em seu universo local? Quem é da paz por aí? E o que dizer do assunto se a escala mudar do âmbito local para o âmbito nacional, ou continental?

Quantos Gandhis existiriam por aí sem a atenção devida? Quem é o líder da paz na escola, no trabalho, na família?


Será que desenvolvemos uma estrutura de comunicação social, midiática, que impede a plasmação desses perfis apaziguadores?

Ícones da fama, do poder e da riqueza são assuntos diários. Há revistas especializadas em listar os mais ricos do mundo, mostrando a centralidade do valor. Ícones do crime e da contravenção também ocupam espaços gigantescos. A violência é memorável e a paz não?

Que revista 'especializada?' publica regularmente uma lista com ícones da construção de paz? Venderia?

Entre a paz e os bumbuns, o público consumidor tem mostrado fidelidade aos últimos. Espera-se a cada semana enxergar algo diferente nas mesmas cenas – condição desejante? (Um amigo meu garante que cada uma é realmente diferente da outra, há sempre uma coisinha a mais – obviamente, está certo).

Mas de onde viria o desejo de paz? A paz pode ser representada como desejo? Como traduzi-la em termos das teorias da mente humana? Vemos em vários modelos que ela acaba sendo apresentada como homeostase, ou seja, como equilíbrio dos conflitos.

É muito pouco quando percebemos a paz como construção positiva em torno do indivíduo (uma cura), como malha ética do todo social (uma utopia), como preservação do planeta (uma urgência)…

A fome de paz aparece em tudo quanto é canto, um sinal de que anda muito mal acomodada em nosso cotidiano. As mensagens de auto-ajuda aumentam a cada dia. Uma enxurrada de imagens consoladoras, de pequenas estórias encantadas ou salvacionistas do indivíduo.

Aumentam, aliás, na mesma proporção do comércio da espiritualidade. E o comércio da espiritualidade, traição da própria espiritualidade, é um sintoma agudo da ausência de paz. Uma traição a Buda, Jesus ou Oxalá.

Obviamente existe o Prêmio Nobel, uma iniciativa em âmbito global, que tem projetado pessoas que se envolveram em questões significativas para todos. Mas, tirando isso, o resto parece um deserto de iniciativas.

Principalmente porque a necessidade de paz é sentida em todos os níveis. Desde o ambiente psíquico de cada cabeça-mundo até as raias dos conflitos armados, passando pelo grupo familiar, pela comunidade de bairro, pela cidade, região, estado e país.

Também não ajuda muito, vivermos nós, seis bilhões de cucurutes humanos, sob um sistema mundial que premia o que mais lucra, o que mais rapa, como disse Gregório de Mattos em meados dos 1600 na Bahia do capital comercial:

Neste mundo é mais rico o que mais rapa…
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa...

Foi isso que conseguimos inventar de mais eficiente e criativo? Nós, uma espécie cuja matéria constituinte é basicamente sonho, como lembrava Shakespeare?

Logo haverá quem observe que nessa situação sistêmica de valorização dos mais aptos para a riqueza, a ausência de conflito já é em si, uma violência insuportável. Esconde a rapinagem sistêmica.

Para diminuir essa violência urge então explicitar os conflitos, resistir ao sistema. Uma guerra santa. Um breve período de ditadura do proletariado para garantir a inevitabilidade da revolução – segundo Atali, Marx concebia esse período sem perda da liberdade de imprensa.

Logo se vê que ser ícone da paz não é coisa fácil. Aparentemente requer uma travessia por entre a questão da justiça no mundo. Mas como tratar de forma racional a necessidade de justiça e equanimidade desses seis bilhões de cucurutes?

Descartes fez uma contribuição desconcertante ao tema. Observa que o bom senso é a coisa mais bem compartilhada no mundo. Ninguém se sente privado desse bem de consumo. E se todos se sentem possuidores de bom senso, quem vai perceber onde está o bom senso de fato?

A defesa da paz parece sinalizar que a paz é um valor mais abrangente que a própria racionalidade. A paz seria dessa forma uma racionalidade transcendente e radical, uma garantia de continuidade do bom senso, do planeta e da própria racionalidade.

Agora só falta avisar ao mundo.

Paulo Costa Lima

Compositor, professor da Escola de Música da UFBA

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2658050-EI8214,00.html

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