Um Triálogo sobre Paz Interior e Desafios Externos

Leila Maria Oliveira Sotero

Queridos do Caminho,

O processo de aquisição e incorporação de conhecimentos não se dá de forma linear. Assim, é que no meu “ir – e – vir”, detenho-me na seguinte frase, dita por Carlos Aveline: “…no plano individual, as áreas liberadas são os momentos de retiro, paz, introspecção, em que o guerreiro treina a si mesmo na arte de viver corretamente. Ele lê sobre coisas sagradas, ora, medita, e pratica ações altruístas.”

Para reflexão: Estarão nossos estudos e práticas convertendo-nos em centros irradiadores de paz ao nosso redor, e aos que compartilham conosco a estrada?

 

Carlos Cardoso Aveline

Amigos,

Nossa guerreira Leila Sotero destacou um ponto realmente importante, que é oportuno avaliar e comentar.

Eu perguntaria:

 

Se o guerreiro irradia paz a seu redor, então, será que Jesus está errado ao dizer no Novo Testamento que ele não veio trazer a paz, mas sim a espada, e ao anunciar que os familiares do peregrino se voltarão contra ele?

Esse trecho dos evangelhos, aliás, é essencialmente igual ao drama de Arjuna no Bhagavad Gita: combater ou não combater com aqueles que amamos?

Assim como Krishna explica a seu discípulo Arjuna por que ele deve pegar a espada, assim também Cristo ensina a todos nós que a vida do guerreiro é um combate, e nem sempre o verdadeiro discípulo despertará bem-estar de curto prazo nos que o rodeiam.

Jesus tem outras passagens “pouco amáveis”. Uma delas é Mateus, 23, em que ele, grande terapeuta, percebe que é terapêutico chamar os religiosos da sua época de hipócritas e sepulcros caiados… Quer dizer, Jesus não se preocupava com ser “politicamente correto”. Ele era espiritualmente correto.

A imagem construída de Jesus como alguém incapaz de dizer palavras ásperas não tem qualquer fundamento nos Evangelhos. Ao contrário, ele denuncia asperamente essa atitude em Mateus, 23.

Então, em que sentido seria correto afirmar,como eu afirmo em “Três Caminhos Para a Paz Interior”, que o guerreiro irradia PAZ ao seu redor? Temos que ver de que nível de consciência estamos falando.

Estamos falando da paz do coração. Da paz da consciência interna. Não estamos falando do sossego das rotinas emocionais, nem da normose de que nos falam Roberto Crema, Jean Yves Leloup e Pierre Weil.

Estamos falando da paz que surge após o tormento e após a tormenta. Da paz que não é mera repressão do conflito. Da paz que ocorre interiormente em meio a todos os desafios, choques, contrastes e frustrações. Essa é a paz do guerreiro: a paz de quem não foge à luta. A paz de quem usa a “espada” do discernimento trazida por Jesus, isto é, pela sua consciência crística, pelo centro da sabedoria eterna em seu interior. A paz de quem não foge das decisões.

Por isso Jesus trouxe imenso sofrimento emocional a todos os que o amavam, a começar por sua mãe e seus discípulos. Quantos discípulos morreram e foram perseguidos por segui-lo? A paz que o Mestre irradiou a eles não foi a paz da acomodação, mas a paz interior. Jesus desacomodou a vida tal como a vida se dava. Jesus criou muitos problemas, porque quando a sabedoria surge em nossa vida ela desacomoda tudo que estava, ou melhor, parecia, muito bem acomodado.

Onde surge a consciência crística, a consciência do guerreiro,as acomodações somem, a sensação de paz no sentido de rotina é substituída por uma in-comodação, uma in-quietude, uma busca espiritual…

No entanto, a prática demonstra que temos uma grande habilidade para explicar e racionalizar com argumentos espirituais o nosso velho apego, nosso amor ao conforto pessoal, nossa resistência a “pegar nossa cruz e seguir a consciência crística”.

A idéia geral do paradoxo entre paz e conflito é que a paz deve ser interior para ser verdadeira, e que externamente as coisas são feitas de contraste, mudança, dualidade…

Assim, o guerreiro irradia in-comodações ou in-quietações externas ao seu redor, enquanto irradia paz interior, incondicional…

Que siga a nossa investigação sobre esse tema essencial ao caminho do guerreiro!

Vale sempre o método Paulo Freire. Ninguém é tão sábio que seja o único dono da verdade. E ninguém é tão inexperiente que não tenha algo importante a ensinar aos outros.

 

Estamos investigando juntos.

Fraternalmente, Carlos C. Aveline

 

Roberto Crema

 

Mano Carlos,

 

Grato pela partilha. Concordo totalmente com a sua leitura sobre estes naturais paradoxos na relação de Cristo e de Krishna sobre uma paz, que se irradia do interior para todos e tudo e que não faz economia do bom combate. Paz é movimento no coração de Eros e de Thanatos, no apoiar e no frustrar, na mão que acaricia e na que ergue o chicote…

Quando Arjurna pensa em desistir, colocando seu arco e flechas no chão é quando Krihsna se desvela em seu corpo de Luz, admoestando-o a combater, honrando seu Dharma de Samurai. Só se ilude matar e morrer quem não provou do Ser!… Assim é que as armas do Yoga são reveladas, na sabedoria perene do Bhagavad Gita.

Da mesma forma, Cristo nos trouxe a espada do discernimento, que denuncia, implacavelmente, as contradições e normoses da sua época, que convergem com as da nossa época. Matando a morte, no berço da cruz, com um leve sopro do Amor Total…

Nenhum Samurai autêntico é coerente. A coerência é lógica e estreita; a normose é terrivelmente coerente. O ser pleno é congruente, o que é muito diferente. Trata-se da arte de assumir o exato tamanho no preciso Instante, respondendo livremente, isento da carga ilusória do passado e do conhecido, ao supremo Agora. A congruência ou transparência acolhe os paradoxos, este mundo das polaridades onde habitamos. “Contradigo a mim mesmo porque sou vasto!”, diz o poeta…

A arma suprema, de todos os Iluminados, é a do desapego, da não identificação, o que sempre assustará os despreparados…

A Paz que buscamos não é a do cemitério, naturalmente. É a da cascata, do mutirão, da transgressão lúcida do ativista de uma Utopia com Coração! Enfim, a do encontro do Amor com a Verdade… Em marcha!

Abraço, Roberto Crema.

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