Branco e Marrom

Clínico de roça, fui médico operador e parteiro. Fui delegado de polícia sanitária e chefe de posto epidemiológico. Conheço todas as clínicas a de “lombo de burro” que experimentei no interior de Minas, a de caminhão e dos fords que pratiquei nos cafezais do Oeste Paulista, a clínica dura do subúrbio carioca e a clínica elegante dos arranha-céus do centro.

Entrei em todas as casas, desde a choça do sertão e dos barracos do morro, aos solares dos ricos e aos palácios presidenciais. Vi as agonias da carne e da alma. Todas as misérias do pobre corpo humano. Todas as suas dores, todas as suas desagregações, todas as suas mortes. Além de todas as doenças, vi, também, toda qualidade de doente. O rico e o pobre, o veraz e o fabulador, o amigável e o hostil, o cooperante e o e o negativista, o reconhecido e o ingrato, o deprimido e o otimista, o realmente doente e o doente imaginário. E VI TAMBÉM OS COLEGAS. O santo, o sábio, o heróico, o desprendido, o dedicado, o sincero, o altruísta vivendo para os doentes e tratando dos doentes O HOMEM DE BRANCO. E o pérfido, o imprestável, o ignorante, o comodista, o rapace, o egoísta, o fariseu vivendo para si e tratando só do próprio ventre.O MÉDICO MARROM. Sou dono da experiência humana nascida de cinqüenta e sete anos de convivência com tudo que o nosso semelhante pode dar de mais alto e de mais sórdido. Guardei dessa lição só o seu lado positivo e apesar das decepções, das amarguras, das ingratidões que sofri insisto, me obstino, persevero, me afinco no entusiasmo intacto e no amor à nossa profissão. E tenho a mais profunda fé no bem, na purificação e no pentecostes que ela representa para quem a exerce com sinceridade e na compreensão inteira do que significa o alto papel de ser Médico. E como ! amigos, pus toda alma na configuração desse personagem. Nele fui sincero.O que fiz, fiz não fingi que fiz. Porque os que fingem que estão sendo e que se fazem pagar por isto, na realidade não são vivem na permanência duma espécie de carona. Cumpri dentro das minhas forças o juramento que pronunciei naquela manhã na Secretaria da Faculdade, lendo suas letras e sentindo que elas se gravavam em mim como marca de fogo e não como palavras soltas ao vento, pronunciadas por pronunciar, no decurso de uma cerimônia. Por isso posso retomar os mandamentos do Pai da Medicina e fazer por eles o meu exame de consciência de Médico que sempre “ foi dos bons “. Nunca, em meio grande e depois que adotei a Reumatologia, exerci a medicina geral ou me intrometi na especialidade alheia mesmo limítrofes à minha. Sempre procurei ser útil aos clientes e jamais servi-me da Medicina para corromper os costumes. Nunca traí o segredo profissional, nunca usei o meu crédito junto aos doentes para obter marmelada em meu benefício. Antes, sempre evitei com escrúpulo aos que me deviam favores porque aquele a quem se serve é tabu. Sempre procurei impedir a intromissão dos falsos moralistas e dos preconceitos religiosos na elaboração da decisão médica porque professo que os assuntos relativos à saúde devem ser decididos só pelo médico e pelo a quem o problema interessa. Jamais cobrei honorários levando em conta a fortuna dos doentes, tendo o mesmo preço para todos que me podiam pagar. Tratei sempre gratuitamente os pobres e necessitados, os meus parentes, meus amigos , meus companheiros de infância e do Colégio Pedro II, meus colegas de profissão e as pessoas deles dependentes. Nunca cobrei honorários judicialmente e mesmo, nos últimos anos, deixei de mandar a conta de serviço só sendo pago voluntariamente pelos que têm consciência e decoro. Em suma, repetindo Amato Lusitano, depois de Hipócrates_ “ jamais fiz cousa de que se envergonhasse um médico preclaro e egrégio”. E nada devo ao acaso, à sorte, à dicotomia, ao bambúrrio, ao cambalacho, aos compadrios e à propaganda charlatanesca. Só do trabalho obtive a mediana posição que consegui na vida e o direito de dizer MERDA! Àqueles que dela precisam.Creio ter sido honesto: não matei o Mandarim… Verdade que nunca o Diabo veio me tentar na calada da noite e mostrar-me a campainha em cima da mesa. E digo isto invocando “ Apolo-médico, Higia, Panacéia e todos os Deuses e Deusas que faço meus juizes”.

 

É duro viver no meio de bestas,

Mas vivo. E procrio, e fundo

A cidade germinada

Rancho-de-palha/suspiro de Sísifo.

 

( Guilhermino César: o enterro )
 

NAVA, PEDRO, 1903-1984

Galo-das-trevas ( As doze velas imperfeitas )

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