Zé. III

Partiu o Zé Hélio, Casoba. Foi na última quinta, dia 5. Menos de dois meses depois de estar em perfeito estado de saúde física pela última vez. Ainda sob as suspeitas iniciais, eu o encontrei no escritório onde funciona seu plano de saúde. Estava inteiro, uma discreta dor nas costas. Acertamos falar sobre negócios tão logo a nuvem se dissipasse.

Durante quase dois meses essa nuvem  pairou sobre sua cabeça e se adensando mais e mais. Por fim, a doença que o acometia ceifou-lhe a vida e o milagre que todos esperavam não aconteceu. Consternação e dor se seguiram.

Conheci o Zé há uns 20  anos. Eu vendia livros e ele fazia não sei o quê. Eu estava justamente numa escola a vender e lá estava o Zé, irmão do meu Chico Heli. As vendas eram uma festa, e gostei do Zé. Ele simpatizou com minha pilhéria. Essa foi sua grande característica: gostava da pilhéria. Era feliz. Tinha alegria no coração. Acho que sempre aglutinei os dados às patuscadas, às farras, aos risos. Sempre misturei o riso com o sisudo. Por isso minha grande combinação com o Chico Heli e com o Casoba. Eles, dois sisudos; eu a fina flor do sacana. O Zé estava mais pra mim. Gostava da risota. Era um sacanão, o safado. Daí em diante o Zé era só o irmão do Chico. Ele foi o amigo à sombra. Era amigo e não era. Minha ligação com o Chico era mais forte, mas… lá estava o Zé. No início não o encontrava com frequencia. Mais tarde, mais amiúde. O Zé era o grande amado do Chico, eis a verdade. Amizade não se transfere. Se A é amigo de B, e B é amigo de C, então A é amigo de C: nada está mais longe da verdade. O Zé era o próprio Chico. Não sei se me entendes. O Zé era o Chico, uma parte dele, um órgão dele. A propriedade matemática era falsa. Não existia C. C era igual a B. Percebes?

Pois bem. Mais recentemente o Zé me era conhecido. Sua alma, quero dizer. Foi fácil: homem simples, sonhador, amoroso, terno, honesto, da  paz. As esquerdas o conheciam. Foi ativo politicamente. Sua Norma o completou, sem dúvida. Só agora, depois de sua morte, percebo o que significa “completar” na relação entre um homem e sua mulher. Estavam juntos na militância política. Sem influências de parte a parte, acreditavam na mesma coisa. E, vamos e venhamos, as esquerdas atuais são as mais oníricas, não é, Casoba? Não se pode apedrejar os que crêem na pureza do homem.

O Zé se virava. Os recursos eram poucos, mas o Zé fez de tudo. Abandonou o emprego certo de parcos vencimentos à procura de outras coisas. Achou coisas que o afundaram financeiramente por acreditar nos filhos dos homens, arrependeu-se,  buscou a volta por cima, e , por fim, rendeu-se ao capitalismo. Em suma: viveu a vida de um lutador.

A  ex-mulher o perseguiu até o último instante. Não teve escrúpulos. Não respeitou nem mesmo o sentimento das filhas. Queria prendê-lo a todo o custo por causa de pensão. Ela própria devia saber ser aquilo desnecessário. Maldade. Numa única palavra: maldade.

E no enterro do Zé, a ex-mulher. Ele já não vivia. De que adiantou? Por quê não o procurou em vida? Lamentou que a vítima de sua caçada morresse sem o seu tiro de misericórdia? Hipocrisia. “Este é o mal que há entre tudo quanto se faz debaixo do sol: que a todos sucede o mesmo; que também o coração dos filhos dos homens está cheio de maldade; que há desvarios no seu coração, na sua vida, e que depois se vão aos mortos…..Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma”.

Adeus, Zé. Fique certo que nem tua vida nem tua morte foram em vão. Aproveitamos para aprender o que já devíamos saber.

É isso aí, Casoba.

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