Ciência, Tecnologia e Games

“O chip vai além da minha compreensão”

Em entrevista exclusiva ao Link, o Dalai Lama fala de ciência, tecnologia e do efeito maléfico dos games violentos


por Otávio Dias e Ricardo Anderáos


 

Aos 7 anos, como muitos meninos dessa idade, ele desmontou um antigo relógio e se meteu numa enrascada. Mas ele era um garoto diferente dos outros. E aquele relógio também.

A preciosidade era uma herança deixada por sua encarnação anterior, o 13º Dalai Lama. Foi um dos itens que o menino reconheceu como seus, aos 3 anos, diante da comissão que o confirmou oficialmente como o 14º Dalai Lama, líder político e religioso do Tibete.

Ele conseguiu remontar o velho relógio de bolso, peça por peça. A atividade transformou-se num hobby que o acompanhou pela vida afora. Até o surgimento dos relógios eletrônicos. “Meu hobby ficou bem menos interessante – se você abrir um deles, não verá praticamente nenhum mecanismo”, como conta no livro 'O Universo em um Átomo', lançado pela Ediouro durante a visita do Dalai Lama ao Brasil, semana passada.

O livro é um mergulho nas comunicações, para muita gente inusitadas, entre essa religião milenar e áreas de ponta da ciência ocidental. Nele, o Dalai Lama mostra que a idéia de que o tempo é relativo, base das teorias de Einstein, já havia sido defendida pelo filósofo indiano Nagarjuna no século 2º de nossa era. E que as mais recentes descobertas da Física Quântica estão em consonância com o conceito budista de vacuidade.

Isso soa estranho. Afinal, a separação entre ciência e religião é um dos dogmas da civilização ocidental. Mas desde 1987, quando começou a se encontrar periodicamente com cientistas de várias áreas numa série de conferências conhecidas como “Mind and Life”, o Dalai Lama busca convencer a comunidade científica a olhar sem preconceito nem dogmatismo para as práticas espirituais.

Como fruto dessa iniciativa, pesquisadores ocidentais começaram a investigar os efeitos da meditação Budista no cérebro humano. Desde 2002, Richard Davidson, professor de Neurociência na Universidade de Wisconsin, vem colocando centenas de eletrodos na cabeça de monges que já meditaram por anos a fio.

Os resultados deixaram os pesquisadores impressionados. Eles comprovam a habilidade dos meditadores experimentados em controlar todos os tipos de ondas cerebrais. Para falar sobre o assunto, o Dalai Lama foi convidado a fazer a palestra de abertura da Conferência Anual da Sociedade de Neurociência norte-americana, em Washington D.C., no final do ano passado (2005).

Na última sexta-feira, em São Paulo, o Dalai Lama voltou à carga no auditório do Anhembi, com uma palestra intitulada “Ciência e Espiritualidade”. Antes, recebeu o Link numa entrevista exclusiva, para falar sobre ciência e o impacto das novas tecnologias de informação na vida cotidiana.

Nessa conversa perguntamos se, além do interesse que desenvolveu nos últimos anos pela neurociência e pela física quântica, ele havia transferido a paixão pelos antigos relógios mecânicos para aparelhos mais modernos. Mas parece que o menino que desmontava relógios ficou mesmo traumatizado com os circuitos integrados. “O chip vai além da minha compreensão”, afirmou. Se ele usa laptops e telefones celulares? Nem pensar.

“A tecnologia mudou o mundo, mas por dentro continuamos os mesmos”

Vivemos, neste início de século 21, uma revolução tecnológica, caracterizada pela comunicação instantânea e em qualquer lugar e pela ampla oferta de informação via internet. Sob um ponto de vista budista, quais são os aspectos positivos e negativos desta revolução?

A revolução tecnológica é positiva. Um dos principais objetivos do budismo é a iluminação. E iluminação significa saber mais. Se a tecnologia facilita o acesso à informação e a comunicação entre as pessoas, ótimo. Portanto, os equipamentos tecnológicos são, em princípio, bons. O problema é quando eles são usados para atacar, destruir, espionar ou criar problemas para os outros.

Nos dias de hoje, os jovens, principalmente, se relacionam uns com os outros de forma virtual, por meio de mensageiros instantâneos, comunidades virtuais. Esses relacionamentos virtuais muitas vezes substituem os reais. O que o Sr. diria a esses jovens, que estão começando a aprender a se relacionar e a conhecer os valores humanos, sobre a importância dos relacionamentos de verdade, baseados na compaixão?

Essa é uma questão importante. A informação sozinha, ou mesmo uma palavra sozinha, não carrega ou traduz o sentimento real. Por exemplo, todos conhecemos a palavra dor e sabemos, até certo ponto, o que ela significa. Entretanto, quando presenciamos o que é dor na vida real, quando experimentamos ou vemos isso de fato, o sentimento é muito mais forte do que o que a palavra consegue transmitir. Portanto não há problema em estabelecer contato com alguém via computador, mas isso não é suficiente para realmente conhecer o outro, compreender suas necessidades, seus problemas. A palavra não substitui o convívio presencial.

Casar-se, por exemplo, através do computador, pode ser muito perigoso (risos). O casamento exige conhecer a natureza profunda da outra pessoa. A atração física é importante, claro, mas também é preciso respeitar os pensamentos, o comportamento do outro. Isso exige muitos encontros pessoais. Do contrário, acontece o que é tão comum hoje em dia: as pessoas se casam e se divorciam, se casam e se divorciam…

Atualmente, muitas pessoas passam horas e horas jogando videogames ou interagindo em universos virtuais, onde vivem vidas paralelas. Existe o risco de esse tipo de comportamento isolar as pessoas em uma espécie de bolha?

Não sei dizer. Mas preocupo-me com a violência nos videogames. Isso é muito perigoso porque causa um impacto nas pessoas mesmo que não haja uma intenção violenta deliberada. O jogador pratica a violência sem avaliar ou mesmo sentir as conseqüências dela. Parece uma simples brincadeira, mas, ao atirar e matar alguém, mesmo que não haja uma intenção clara e seja apenas um jogo, há um impacto na mente em níveis mais sutis. Isso não é bom.

Desde criança, o sr. tem interesse pela tecnologia. Gostava de observar o céu do Tibete com o telescópio que herdou do 13º Dalai Lama, desmontava e montava relógios, era apaixonado por cinema. O Sr. usa computador, laptop, celular, iPod?

Não, nada. Tenho interesse pela tecnologia de máquinas menos sofisticadas, mecânicas. Mas não entendo nada de eletrônica. Chips estão além da minha compreensão (risos).

Qual é a importância da internet e dos computadores para os tibetanos, cujo país vive sob o domínio chinês há cerca de meio século?

É muito importante. Principalmente para os tibetanos que estão no Tibete. Porque eles não estão apenas isolados fisicamente, mas também politicamente, já que não têm acesso à informação através dos meios de comunicação e dos jornais locais. Só através da internet podem ter uma noção real do que acontece no mundo e ter acesso a informações verdadeiras, já que é bem mais difícil para o governo chinês controlar o acesso a esses novos meios.

Neste novo mundo em que vivemos – globalizado, hi-tech, no qual as noções de tempo e espaço são cada vez mais relativas –, é necessário que se discuta e se estabeleça uma nova ética?

Espaço e tempo ainda são bem reais, afinal levei dez horas para vir de Chicago até São Paulo (risos). Mas é verdade que o mundo está ficando mais pequeno e interdependente. Entretanto não acho que precisemos de uma nova ética. O mais importante do ponto de vista ético é a compaixão humana, a noção de perdão. Isso é o coração do que chamamos de ética, junto com o senso de responsabilidade. Isso é assim hoje, como era há cem anos, há mil anos, mesmo há 2.500 anos. A maneira que nascemos, crescemos e vivemos não mudou muito hoje se comparada à realidade de mil anos atrás. No futuro, talvez daqui há milhares, dezenas de milhares de anos, pode ser que haja mudanças tão grandes, até mesmo na aspecto físico de nossa existência, que uma nova ética seja necessária. Mas hoje temos o mesmo corpo físico, as mesmas emoções, a mesma mente dos nossos antepassados. A modernidade, a tecnologia são mudanças externas. Mas a ética diz respeito aos valores internos do ser humano. Se você olhar para dentro de si, verá que nada mudou.

Uma ponte entre ciência e religião

Budismo não tem Deus nem se baseia em reza; busca eliminar o sofrimento analisando o funcionamento da mente.

“Para mim, o budismo é a ponte entre o materialismo e o espiritualismo”, afirmou o Dalai Lama, ao ser questionado sobre a relação entre a milenar religião oriental, da qual ele é um dos principais líderes, e disciplinas mais modernas como a psicologia e a neurociência.

“Alguns estudiosos dizem que o budismo não é uma religião, mas uma ciência da mente. Há uma lógica nessa afirmação, pois todos os objetivos do budismo são atingidos por meio do treinamento da mente e não da reza”, continuou Tenzin Gyatso, durante entrevista exclusiva ao Link na última sexta-feira.

“Isso é algo único do budismo em relação às outras religiões importantes do mundo. Mas não quer dizer que o budismo seja uma religião melhor. Não é”, disse.

Nos últimos anos, diversos pesquisadores ocidentais deram início a investigações para tentar avaliar, com base em métodos científicos, os efeitos da meditação budista no cérebro humano. O próprio Dalai Lama foi convidado a participar, no final de 2005, da Conferência Anual da Sociedade de Neurociência norte-americana, em Washington D.C.

A participação do líder religioso do budismo tibetano no importante congresso, assim como as pesquisas sobre os efeitos da meditação, provocaram polêmica por tocar em um dos pilares do universo científico ocidental: a incompatibilidade entre ciência e religião.

“Quem virá no próximo ano? O papa?”, perguntou um dos pesquisadores contrários à recente participação de Dalai Lama no encontro científico americano.

“Muitas pessoas ainda consideram ciência e religião como sendo opostas. Embora eu concorde que alguns conceitos religiosos conflitem com certos princípios e fatos científicos, acredito que representantes desses dois universos podem estabelecer uma discussão inteligente”, escreveu Dalai Lama em artigo publicado no jornal The New York Times em novembro de 2005.

Diplomático, o líder tibetano chegou a sugerir que o budismo deveria abandonar algumas de suas crenças que já tenham sido provadas como erradas pela ciência. E introduziu nos monastérios budistas sob sua orientação a obrigatoriedade do estudo de disciplinas como física, química e biologia.

Mas, afinal, o que no budismo justificaria uma maior colaboração com a ciência?

O budismo é uma religião, mas é mais ainda um sistema ético, filosófico e psicológico que visa a auxiliar as pessoas a entender as razões de seus sofrimentos e construir uma vida mais feliz e em harmonia com os outros.

Busca-se esse objetivo por meio de uma análise minuciosa do funcionamento da mente, através de práticas de meditação surgidas na Índia há mais de 2.500 anos e constantemente aprimoradas no Oriente desde então. Por isso, alguns estudiosos do budismo o definem como uma “tecnologia (para o controle) da mente” ou “tecnologia da iluminação (despertar da mente)”.

No Ocidente, o estudo científico dos fenômenos psíquicos e do comportamento, chamado genericamente de psicologia, teve grande desenvolvimento a partir do final do século 19. No século 20, foi a vez da neurociência, que estuda a estrutura, o funcionamento e as doenças do sistema nervoso (principalmente do cérebro).

Desde 1987, o instituto Mind and Life, do qual o Dalai Lama é presidente de honra, promove, a cada dois anos, em Dharamsala (capital do governo tibetano no exílio, no norte da Índia), uma semana de conferências com o objetivo de estabelecer uma colaboração entre a ciência moderna e o budismo.

Segundo o neurocientista de origem chilena Francisco J. Varela (1946-2001), um dos fundadores do instituto (www.mindandlife.org), o budismo é uma “excelente fonte de estudos sobre a mente humana, realizados durante muitos séculos com grande rigor teórico, e, ainda mais significativo, com exercícios e práticas muito precisas voltadas para a exploração individual”. “Esse tesouro de conhecimento é um complemento insubstituível para a ciência”, completou o estudioso, cuja carreira foi baseada na França.

O próprio Sidartha Gautama, fundador da religião no ano 550 a.C, sempre urgiu seus discípulos a não aceitarem a validade de suas próprias afirmações, por simples reverência. Aconselhava-os a testar a verdade do que ele dizia através de um exame meticuloso e da experimentação pessoal.

Ou seja, o próprio Buda histórico adotou, desde o início, uma postura científica de experimentação constante dos princípios teóricos e das práticas budistas.

Mais: o Buda não é considerado Deus. Na verdade, o budismo nega a existência de um criador supremo. Seu objeto principal é o sofrimento e a possibilidade de cessação do sofrimento, não questões teológicas ou ontológicas.

Em artigo intitulado “Religião e Ciência”, publicado em 1930 na New York Times Magazine, Albert Einstein escreveu: “O budismo tem as características que se poderia esperar de uma religião cósmica para o futuro. Transcende a idéia de Deus, evita dogmas e a teologia. Trata tanto do natural quanto do espiritual e é baseada em uma noção religiosa que aspira à vivência de todas as coisas, naturais e espirituais, como uma unidade cheia de sentido”.

“Da perspectiva do bem-estar humano, não podemos dizer que a ciência e a espiritualidade não estão relacionadas”, escreve o Dalai Lama no prólogo do livro O Universo em um Átomo – O Encontro da Ciência com a Espiritualidade, lançado no Brasil na semana passada, pela editora Ediouro. “Precisamos de ambas, já que o alívio do sofrimento deve acontecer tanto no nível físico quanto no psicológico”.

O.D e R.A

Budismo ganha espaço na internet

A popularização da internet representou uma grande oportunidade para o budismo tibetano. Perseguidos em sua terra natal pela ocupação chinesa que já dura 50 anos, os tibetanos fizeram da rede mundial um trampolim para romper o isolamento e preservar sua cultura. No site www.asianclassics.org, importantes documentos da rica tradição budista tibetana, muitos deles recuperados clandestinamente no Tibete ocupado, foram digitalizados e disponibilizados para o público. Já o site www.dharma-haven.org/tibetan/prayer-wheel.htm  tem como tema as famosas rodas de oração tibetanas e, inclusive, disponibiliza algumas para colocar em seu PC.

O.D

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *