Ensaio sobre o Livre-arbítrio

(*) Marlos Alves Bezerra é psicólogo
Email:
marlosdoc@yahoo.com.br  

 

Uma colega psicóloga de Fortaleza, olhos de criança que esquadrinha o mundo em busca de entendimento, lançou-me o seguinte questionamento: “O que faz com que optemos(individual e coletivamente) pelos caminhos que trilhamos hoje, a partir do potencial criativo que temos?”. Tentei ser simples, sem ser simplório: “nosso livre-arbítrio”. Ao que ela rebateu: “Somos livres?” Respondi: “Sim e não”. Mas como se trata de alguém tão sensível, prometi-lhe algumas considerações sobre a questão.

 



Não tenho a menor pretensão de buscar a Verdade. Até porque sou discípulo dos gregos: Aletheia, é a verdade enquanto um desvelamento.

Notemos na pergunta um pressuposto que é sustentato na psicologia transpessoal. Cada pessoa, cada ser possui um potencial interno, um manancial criativo. Custoso é acreditar nisso quando vemos tanta miséria social, e também tanta miséria psíquica, sofrimento que só muda os matizes sócio-culturais mas que subjazem a um imenso coletivo humano como  vemos hoje.  

Na psicologia transpessoal, acreditamos que a consciência de realidade é função do estado de consciência. Há vários desdobramentos nessa proposição que infelizmente não podem ser tratados em um espaço tão curto sem as devidas articulações que a mesma merece. Por ora, utilizemos uma metáfora, ainda que imperfeita: a semente grávida da árvore, irrompe a terra e cresce orientando-se para a luz, fenômeno denominado de fototropismo (tropos= movimento, foto= luz). A consciência também movimenta-se em direção a estados cada vez mais complexos e amplos. O psiquiatra Tcheco Stanislav Grof cunhou para sinalizar o que acabamos de dizer o termo holotrópico (holos= totalidade), para indicar que a consciência se desenvolve rumo a cada vez mais amplos  níveis que incorporam e ultrapassam os níveis anteriores, mais simples, menos complexos.  O que em tese pressupõe um estado último “totalizante”. Mas que na prática cotidiana implica, até o que ordinariamente podemos alcançar, níveis de dualidade, de não saber. Portanto de inconsciência. Guardemos esse ponto.

Necessariamente a semente não vai desenvolver todo seu potencial arbóreo. Alguns impedimentos podem tornar-se óbices nesse processo. Defrontamo-nos diariamente com eventos, situações, condicionantes que nos minam as forças, que nos testam para além de nosso limite e que não raro, deixa em nossa boca o amargo sabor do fracasso, da impossibilidade de sua resolução. É como se fosse um muro intransponível. Sobre esse assunto ninguém melhor que um poeta paraibano para falar:

 

 “Tome. Doutor, esta tesoura, e… corte minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!”

 

(Augusto dos Anjos, Budismo Moderno)

 

Quantos de nós juntamente com Augusto dos Anjos não nos queixamos alguma vez dá má sorte?

Imaginemos a seguinte situação: um menino educado dentro de um rígido sistema familiar corre para abraçar o seu pai, e este lhe diz: ”Não! Homem não abraça.” A criança “congela” diante do pai. Queria expressar o seu afeto, mas não lhe foi permitido. Não é certo. Esse aprendizado se perpetua durante sua estória de vida posterior. Já adulto vê-se diante de uma amigo em um momento de entusiamo e alegria. Sente o impulso de abraçá-lo. Vem-lhe o freio novamente: a respiração prende. Por um brevíssimo instante debate-se. Não o abraça. Houve aí em uma fração mínima de instante a possibilidade da escolha. Mesmo que a escolha fosse não romper com o padrão já fortemente instalado. Aqui resgato um trecho da luta final entre o agente Smith e Neo nos derradeiros instantes do filme Matrix Revolutions (caso você não tenha idéia do que estou falando, recomendo ver este filme e os anteriores da trilogia).

“Por que você persiste Mr. Anderson?

Porque é minha escolha.”

  Os defensores arraigados do determinismo diriam, a partir de seus campos específicos, que não podemos escapar aos ditames da cultura, da história,  da economia, da genética. Dentro de uma certa vivência de realidade, eles estão totalmente certos. Há um modo de produção injusto, estruturador de uma sociedade cindida, fraturada e agenciador de subjetividades, nos moldes de um individualismo massificador. Há a ideologia enquanto idéias da dominação que mascaram as diferenças e as apresenta como “naturais”(nesse sentido a idéia de indivíduo como sujeito livre, autofundante, à parte do social). Há um certo determinismo psíquico, pois já nascemos em uma casa, com um lugar que devemos ocupar, recebemos um nome antes mesmo de nascer e temos um código cultural a introjetar e com ele papéis e regras. Há um determinismo genético que se mostra nos circuitos neurais, nas organelas celulares, nas hélices helicoidais de DNA, enfim nas predisposições que trago na organização biológica. Todos, enfim, estão certos de acordo com o nível da realidade com que a consciência pode abarcar. Como também o estavam os berlinenses que nunca imaginariam que sua Alemanha pudesse ser reintegrada e, muito menos, que o muro não era tão sólido quanto parecia.  

Lembro-me de uma amiga querida que se queixava do distanciamento de suas irmãs. Pai falecido ainda menina. Mãe a demonstrar maior apreço pelas outras duas, em algumas situações imputando-lhe injustas penas por erros de julgamento.  Havia entre elas uma mágoa profunda de uma situação do passado a separar duas irmãs para um lado e minha amiga para o outro. Todos os aniversários  das irmãs de minha amiga eram as mesmas coisas: convites atropelados e de última hora de um lado e um curso, um treinamento, uma atividade inadiável de outro.  Um dia, eu estava em sua casa, voltando com ela de um curso que fizéramos juntos. Estava chorosa. Uma irmã havia ligado sobre o aniversário de outra e novamente as informações truncadas e atropeladas. Parecia que sua presença era realmente indesejada. A festa seria na casa de uma amiga de infância. Manifestou o desejo que gostaria de deixar lá um buquê de flores, mas talvez a festa tivesse acabado, ou a floricultura estivesse fechada, ou… Foi quando perguntei se queria que eu fosse junto para procurarmos as tais flores e irmos entregá-las. Veio, então a fração do segundo da escolha… E ela decidiu ir. Compramos as flores e fomos ao endereço. Grande desapontamento! A festa havia acabado. Ninguém a não ser a dona da casa estava lá. Mas… a dona da casa, perguntou-lhe se não queria ir à casa da aniversariante. Poderia fazer-lhe o mapa. Novamente o instante da escolha. Voltaria para casa vitimada pelas circunstâncias? Seria novamente a irmã escanteada? Poderia romper aquele padrão? Eternamente o urubu pousaria em sua sorte?

Durante muito tempo, no início da mecânica quântica os físicos debateram-se em uma polêmica. A luz comportava-se como onda ou partícula? A questão era polêmica pois havia indícios de ambos os comportamentos, o que deu origem a muitas rusgas entre os pesquisadores. Até que finalmente percebeu-se o paradoxo: a luz comportava-se ora como onda, ora como partícula. Não se tratava de onda ou partícula. Era, isto sim, onda e partícula.  Existe um ponto como no nível subatômico que algumas questões perdem o sentido e é possível experienciar outras possibilidades.

A realidade percebida depende da atividade da consciência. A questão da escolha versus determinismo depende do nível da realidade em que se opera. Sair da fragmentação é sair do dualismo. O que isto quer dizer?

Em tese, significa que haverá um nível de realidade em que não haverá mais escolha. Lembro de um teólogo que questionado se Jesus foi obrigado a sofrer, ele simplesmente respondeu que se tratava de um ser tão evoluído que já não havia o que escolher. Escolha implica ainda em dualismo, dialética, conflito, oposição.

Na prática, significa em cada situação buscar o mais além dos automatismos condicionantes. Exorcizar os fantasmas do inconsciente. Romper os padrões familiares e ancestrais que começam na minha bisavô que já não acreditava em casamento feliz. Manobrar em meio as condições objetivas de vida, fazendo o melhor possível (claro que nem todo mundo precisa chegar a presidente da república!).  E a minha amiga? Foi até a  casa da irmã naquela mesma noite. Conversaram longamente, voltou ao carro, rosto banhado em lágrimas. Há marcas ainda do passado, mas uma nova e mais saudável relação está em andamento.

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