Holismo e Medicina

 

Introdução

A palavra paradigma foi usada pelo físico e filósofo Thomas S. Khun 1 em seu livro The Structure of Scientific Revolutions com o significado de modelo ou padrão a ser seguido para o estudo dos fenômenos e da realidade. Segundo R. Crema 2 traduz “muito mais que uma teoria, pois implica uma estrutura que gera teorias, produzindo pensamentos e explicações e representando um sistema de aprender a aprender que determina todo o processo futuro de aprendizagem”. Khun salientou que a ciência nem sempre progride de modo harmônico e ininterrupto, como comumente se admite, mas apresenta, por vezes, rupturas em seu desenvolvimento, estas provenientes, com freqüência, de processos intuitivos que se estabelecem independentemente de comprovação em ensaios ou pesquisas científicas e que contribuem para demonstrar a falibilidade das teorias convencionais. 

 

A evolução da medicina como ciência começou a se dar com Alcmaeón de Croton (séc. VI a.C.), que desfez o mito de magia da prática médica e passou a considerar as doenças como resultado de um desequilíbrio entre as potências da natureza (o úmido e o seco, o frio e o quente, o doce e o amargo e outras). Hipócrates (séc. V a.C.) aprofundou esses conceitos e renegou a concepção vigente de que as doenças representavam uma punição dos deuses, ao estabelecer que ‘cada doença tem sua própria natureza e surge de causas externas’, além de insistir na importância da ética no exercício da medicina. Galeno, médico grego que exerceu a profissão em Roma a partir de 164 a.D., sem dúvida o mais ilustre de sua época, introduziu inúmeros conceitos de anatomia e fisiologia (é considerado o criador da fisiologia experimental), que são pertinentes até hoje. Realçou sobretudo a natureza orgânica das doenças 3,4. A medicina atual segue os mesmos princípios éticos estabelecidos por Hipócrates e conserva a visão organicista das doenças de Galeno. A partir dos séculos XVI e XVII, foram as ciências em geral, e a medicina em particular, bastante influenciadas pelo pensamento dos grandes gênios da época, principalmente Galileo Galilei (1564-1642), mestre da dedução teórica, Francis Bacon (1561-1626), criador do empirismo da investigação e René Descartes (1596-1650), o pai do racionalismo. Descartes desenvolveu o método científico racional dedutivo, é o criador da geometria analítica e defendeu o dualismo da natureza, isto é, a matéria (res extensa) e o pensamento (res cogitans), o que contribuiu para a diferenciação entre corpo e alma do ser humano, ambas sob o amparo de Deus, cuja existência ele demonstrou. Distinguiu duas fontes de conhecimento: a intuição e a dedução e afirmou que todo conhecimento humano depende da razão ou do pensamento e não da sensação ou da imaginação. Em seu livro Regulae ad Directionem Ingenii (1628), estabeleceu 4 regras fundamentais para o raciocínio:

  1. Não aceitar nada como verdadeiro, a menos que seja evidente por si;
  2. Dividir os problemas em suas partes mais simples;
  3. Resolver problemas evoluindo do mais simples para o mais complexo;
  4. Reavaliar a razão.

Por último, considerou que todos os corpos materiais, incluindo o humano, são como máquinas, cujo funcionamento obedece a princípios mecânicos 5. A seguir, foi Isaac Newton (1642-1727) quem consolidou o método racional dedutivo de Descartes 5 ao criar os princípios da mecânica – e assim surgiu o paradigma cartesiano-newtoniano. 

Este paradigma, portanto, se caracteriza por propor uma visão mecanicista do conhecimento, composto de várias partes menores que se unem e se entrelaçam. Para entender o funcionamento da máquina, é preciso desmontá-la ou dividi-la em suas partes. Isto é, fragmentar para conhecer. A influência deste paradigma foi e tem sido constante em praticamente todas as ciências do mundo moderno e, em medicina, favoreceu o conhecimento do corpo humano pelo estudo sistemático de seus componentes e de sua fisiologia, o que possibilitou um avanço significativo no desvendamento da fisiopatologia e, consequentemente, na prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças. Externou de tal forma a complexidade das doenças que justificou o desenvolvimento das diferentes especialidades médicas, nas quais o médico aprofunda seu conhecimento em determinado órgão ou sistema orgânico, relegando a segundo plano o conhecimento geral da medicina. Isto é, tem um conhecimento horizontal limitado e vertical profundo. (Os críticos do relativismo, que coordena as especializações, costumam dizer que o especialista sabe quase-tudo de quase-nada) 2

No entanto, os médicos modernos são cheios de incertezas e convivem simultaneamente com uma euforia e uma perplexidade: euforia por se julgarem donos de um saber enorme, proporcionado pela evolução do conhecimento médico, e perplexidade por sentirem que, mesmo com tanto saber, são incapazes de solucionar grande parte dos problemas de seus pacientes. Ainda, que o conhecimento atual e os recursos técnicos de que dispõem são fugazes, pois amanhã podem não mais ser úteis, por obsolescência. Estas constatações fazem com que o sucesso do médico se constitua um desafio constante, ainda mais levando em conta que novas doenças surgem diariamente, pelos mais diferentes motivos (iatrogenia, desequilíbrios pessoais, ecológicos, mutações e outros). 

Os críticos do método analítico cartesiano reconhecem que ele foi um dos pilares da fantástica evolução do mundo moderno, mas é igualmente inegável que contribuiu para o descaso dos sentimentos íntimos do ser humano, em virtude da ênfase na abordagem mecanicista. Serviu, por exemplo, para criar confusão entre riqueza material e felicidade individual – e isto explicaria os desequilíbrios sociais, que tão bem conhecemos, e a destruição sistemática do nosso ecossistema, o qual, realizado em nome do progresso, ameaça a existência da vida na terra, inclusive a humana. Justificaria ainda, no parecer dos mesmos, a triste realidade que vivenciamos, qual seja, mesmo com todo seu poder e saber, não foi a ciência ainda capaz de fazer o homem descobrir o amor e a felicidade! O sábio Jiddu Krishnamurti 6 (1895-1986), alerta: “temos progresso técnico sem um progresso psicológico equivalente e, por este motivo, há um estado de desequilíbrio; têm-se realizado extraordinárias conquistas científicas e, no entanto, continua a existir o sofrimento humano, continuam a existir corações vazios e mentes vazias… Vosso mundo, que sois vós mesmos, é um mundo do intelecto cultivado e do coração vazio… Um coração vazio mais uma mente técnica não fazem um ente humano criador…” F. Capra 7 relata um diálogo em que Krishnamurti complementa: “primeiro você é um ser humano e depois um cientista. Antes você tem de se tornar livre, e essa liberdade não pode ser atingida por meio do pensamento. Ela é atingida pela meditação – a compreensão da totalidade da vida, em que cessam todas as formas de fragmentação”. 

Diante da nossa relativa (in)eficácia no exercicio da medicina, podemos ponderar que ela se deve, pelo menos em parte, à excessiva ênfase que habitualmente dedicamos à doença e relativo descaso para com o doente. Enquanto procuramos conhecer aquela em seus mais íntimos mecanismos, não nos damos conta de que, por trás do órgão doente, existe um ser de altíssima complexidade, possuidor de um cérebro, com sentimento e mente, a qual [mente] está em contato com todo o universo, por ser parte do mesmo. Em suma, somos técnicos que cuidamos do ser humano, mas não nos atemos ao ser em si – ou o fazemos de modo insuficiente, por imposição do método que adotamos. Em verdade, mal o conhecemos. 

 

A Natureza do Ser Humano 

Os livros-textos comumente adotados em escolas médicas tecem escassas considerações sobre a natureza do ser humano; em geral, o tema só é tratado em compêndios de psicologia ou de medicina psicossomática e não costuma fazer parte do currículo das escolas de medicina4. Entretanto, como exercer adequadamente a medicina humana se não conhecemos o homem em sua inteireza? 

Para a Organização Mundial da Saúde, o homem é um ser bio-psico-social (fig. 1); saúde subentende um perfeito equilíbrio entre os três componentes e não simplesmente ausência de sintomas.

Holismo e Medicina

 

Mutatis mutandi, doenças podem ser consideradas, pelo menos as adquiridas, como resultado de desequilíbrio em um ou mais componentes do indivíduo. Em outras palavras, significa uma exteriorização de distúrbios internos na esfera física, psíquica e/ou social da pessoa. Uma perturbação em um dos componentes vai, inevitavelmente, refletir nos outros dois, por serem intimamente relacionados e indissociáveis (indivíduo), gerando então uma seqüência de eventos que, em última análise, se manifestarão como sintomas e sinais de uma doença (fig. 2). 

Holismo e Medicina

As escolas médicas em geral enfatizam a doença, como vimos, em detrimento do doente, e para ela direcionam os procedimentos diagnósticos e terapêuticos; não levam em conta que a doença representa apenas ua manifestação exteriorizada de problemas interiores do ser 4. Ênfase na parte, negligência no todo. Visão mecanicista ou organicista do ser, ausência de avaliação global. É de senso comum que os médicos modernos são mais preparados para ouvir, sentir e perceber melhor os órgãos; ao contrário, os médicos antigos percebiam melhor as pessoas. B. P. Siqueira, ex-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica – ABEM (1991) comenta: “Médicos recém-egressos das escolas médicas tornam-se, na verdade, técnicos equipamentos-dependentes; ou seja, técnicos que fazem e vêem maravilhas com ua máquina qualquer e nada sabem de medicina e muito menos a respeito do homem… Se a escola médica está formando seus alunos com base na aquisição de conhecimento de alta tecnologia apenas, ela não os está formando, e sim deformando-os.” A tecnologia moderna, voltada para o diagnóstico e tratamento das enfermidades, é fria, impessoal, insensível e incapaz de adentrar na alma do paciente. Este não aguarda ansiosamente apenas pela modernidade na condução de seu caso, mas espera encontrar diante de si um técnico competente (médico) que seja também um confessor, um protetor e um amigo. Do técnico, ele espera soluções; ao confessor, revela seus problemas íntimos, às vezes timidamente, mas com coragem; ao protetor, entrega seu destino; e do amigo, espera solidariedade, compreensão e calor humano. Fica então evidente porque o computador não substitui o médico em sua função, que é essencialmente humana, perante o paciente.

Algumas correntes assumem que o indivíduo fica doente porque ele é portador de um terreno propício para instalação e desenvolvimento da doença. O conceito de terreno foi introduzido por Trousseau 9 e significa “o organismo vivo considerado como sistema completo no qual a anatomia, a fisiologia, o psiquismo, os antecedentes hereditários e adquiridos, bem como as interferências do meio, se apresentam como aspectos analíticos de um todo indivisível” 10. Esta abordagem leva em conta os múltiplos aspectos do ser humano (biológico, psicológico e social) e está de acordo com os princípios enunciados anteriormente. Parte do convicção de que o indivíduo aceita a doença porque seu terreno lhe é favorável e conclui que, para evitar ou tratar a doença, deve-se atuar no terreno. Isto é, ênfase no ser. 

Uma outra abordagem do ser humano, mais completa e mais filosófica, visualiza quatro dimensões do mesmo e foram desenvolvidas por Philon de Alexandria e Karlfried Graf Dürckheim 8, e são, respectivamente: soma, psique, nous e pneuma. A figura 3 mostra uma representação gráfica do ser humano com suas quatro dimensões:

Holismo e Medicina
 

  1. A primeira dimensão, soma, se refere ao corpo físico, o qual, filosoficamente, serve de veículo para aperfeiçoamento das dimensões seguintes. Na concepção puramente materialista, seria a única dimensão significativa do homem, então verdadeiramente equivalente a ua máquina, sendo o papel do médico semelhante ao de um mecânico. Esta percepção restringe o pensamento e a mente à atividade neuronal do cérebro, ainda, portanto, dentro da matéria. Grande parte dos médicos atua com esta única visão linear e unidimensional do ser humano, limitando-se à atuação no campo puramente material, utilizando recursos que visem uma maior longevidade do corpo. Uma vez extinto o corpo, extinguir-se-ia o ser.
  2. A segunda dimensão, psique ou alma ou mente (conforme diferentes percepções), deriva de observação do ser humano, não se tratando, portanto, de imaginação apenas, e pertence a várias correntes filosóficas a partir de Aristóteles (384-322 a.C.), passando por Tomás de Aquino (1224-1274), dentre outros. Para os tomistas, a alma ou psique pode ser entendida como o conjunto das faculdades psíquicas, intelectuais e morais que integram os seres animais, particularmente o homem4. Representa uma dimensão hierarquicamente superior ao soma e está dentro da percepção de Descartes com relação ao ser humano, como ser da natureza (res cogitans e res extensa). O médico que aceita esta dimensão bidimensional está, em geral, mais atento aos conflitos de ordem psíquica e às doenças psicossomáticas. 
  3. A terceira dimensão, nous (em grego), pode ser traduzida aproximadamente por consciência (alguns preferem espírito). Segundo Jean-Yves Leloup8 “não se trata somente da inteligência analítica ou da inteligência racional. Não se trata do mundo da emoção e do mundo do sentimento. Trata-se deste tipo de inteligência contemplativa que, na antropologia semita, terá o nome de ‘coração inteligente’. É uma inteligência silenciosa. É a experiência, no homem, de um espaço e de um silêncio além do mental, além das emoções, além das sensações”. Pode ser desenvolvida através da meditação e está, hierarquicamente, além da psique. 
  4. A quarta e última dimensão, representada graficamente por uma seta que aponta para o alto e que une as três dimensões precedentes, sem dúvida é a mais nobre e significa a essência do ser humano (ou pneuma, em grego), traduzido como sopro [da vida]. Alguns a entendem como o verdadeiro espírito imortal e que evolui, segundo as leis do universo, em direção à perfeição. Ela se manifesta no soma, no psique e no nous, unindo-os, aperfeiçoando-os e dirigindo-os para os patamares superiores da existência, em direção ao alto, a Deus. 

Para Jean-Yves Leloup, a partir desta antropologia, de modo consciente ou inconsciente, pode-se definir se o ser humano é sadio ou doente8

 

Medicina e Holismo 

Esta conceituação antropológica serve para introduzir o médico na percepção holística do ser humano e pretende servir de base para uma nova racionalidade, ao fixar o homem em íntima conexão com seu interior e exterior (universo), considerando-o como parte indissociável do mesmo e inevitavelmente ligado ao seu destino. Holismo (de holos: todo) representa um sistema que vem sendo cogitado desde Heráclito, na antiguidade grega, mas que passou a ser mais sistematizado a partir da publicação do livro Holism and Evolution por Jan Smuts em 1921. Procura ser um modelo científico baseado na interrelação dos fenômenos, onde tudo tem a ver com tudo, não só no ser humano, mas em todo universo, num entrelaçamento que une tudo a tudo. Carl Gustav Jung (1875-1961), considerado um dos criadores do pensamento sintético ou conclusivo, criou a expressão sincronicidade para descrever a “simultaneidade, coincidência significativa ou princípio de conexões acausais” 2, com ênfase nas interconexões dos fatos. Jung, inicialmente considerado o seguidor natural de Freud, afinal divergiu fundamentalmente de seu ex-mestre e salientou que “…a análise, na medida em que se restringe à decomposição, deve ser necessariamente seguida por uma síntese.”11 Leonardo Boff 12 explica que “o holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade.” 

A percepção do ser humano em sua totalidade adota este sistema de síntese ou agregação dos componentes do ser, ao contrário do método cartesiano analítico, reducionista, fragmentário ou dissociativo. Procura juntar para conhecer. Enfatiza o físico, mas intimamente interrelacionado com a mente, a consciência, o espírito e com as energias do universo. Considera a doença adquirida não como causa, mas como conseqüência do distúrbio interior do ser e admite que o tratamento limitado a ela, doença, é muitas vezes insuficiente para alcançar a cura definitiva (fig. 4). E as doenças teriam, necessariamente, um fundamento muito além da nossa percepção atual e, com certeza, passariam pelas diferentes dimensões do ser até se manifestarem no corpo, etapa mais evidente deste processo. Em nosso estágio evolutivo atual, estamos longe de entender com clareza os íntimos fenômenos da natureza, seja no macro (universo), seja no microcosmos (ser). Assim, não temos resposta ainda para as inúmeras perguntas que surgem. 

Holismo e Medicina

A boa prática médica atual exige, no entanto, que se entenda o doente para explicar sua doença. Esta nova realidade poderá vir a se constituir em um novo paradigma, o holístico, que, acredita-se, deverá complementar o antigo paradigma cartesiano-newtoniano e engrandecer o conhecimento do todo. Sob este novo paradigma, espera-se que o médico se volte mais para o ser humano, utilizando meios existentes – ou ainda por existir – que verdadeiramente possam favorecer seu equilíbrio pleno, fazendo com que a essência do ser – pneuma – atinja seu destino de evolução, qual seja, a perfeição em Deus. É preciso ousar para progredir, com consciência de que nosso destino está além do que conhecemos hoje. As modalidades terapêuticas filosoficamente mais voltadas para o ser, como homeopatia e acupuntura, em que pesem as incertezas a respeito, aliadas à psicologia transpessoal com abordagem transdisciplinar e complementadas pela ação medicamentosa efetiva na doença, poderão significar um modelo de conduta integral frente ao ser doente, resultando em benefício mais nítido ao mesmo.
 
  Hélio Teixeira 
Professor Titular e Livre-Docente do Departamento de Clínica Médica 
Universidade Federal de Uberlândia, MG. 

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