Impactos da Passagem do Milênio (Parte 2)

LIDERANÇA: DO TÉCNICO AO FACILITADOR HOLOCENTRADO

Como falar de liderança sem falar sobre o que é o ser humano? Então, eu me recordo novamente desse Xamã dizendo: 'Primeiro, eu ensino meu povo a escutar', uma escuta ampla, uma escuta bastante. Depois, se você escuta vai perceber que tudo está ligado com tudo. 'Não há como' – diz o poeta e também o físico -, 'arrancar uma flor no seu jardim sem mexer com as estrelas'. Uma borboleta levanta vôo na Austrália e um tufão percorre as costas dos E.U.A.; tudo está ligado com tudo. Com esta consciência, o passo seguinte é óbvio : tudo está em transformação, tudo está em mudança, onde você pisar é ponte, só há mutação; não há o que passa e nem há aquilo que faz passar, só há passagem. Quando você acorda para esta realidade, você não mais se sentirá proprietário de terra alguma. Toca-me muito como algumas sociedades tribais reivindicam a terra: estes sem-terra não reivindicam a terra para que seja deles; eles dizem: 'Nós precisamos da terra por que nós somos da terra. Como nós vamos viver sem a terra se pertencemos a ela?' É uma forma muito diferente!

TRÊS ESTÁGIOS DE LIDERANÇA

Quanto à liderança, creio que há três estágios na nossa evolução natural para realizar a semente da maestria em cada um de nós.

O 1o. estágio: O líder centrado na teoria, na ideologia e na técnica

O primeiro estágio podemos chamar de líder centrado na teoria, na ideologia ou na técnica e eu diria que essa é a infância do nosso processo de amadurecer a própria semente desse potencial humano. Para não partir do ensaio-e-erro precisamos estudar os antigos, os que nos antecederam na busca. Então, nós aprendemos técnicas, teorias e nelas nos centramos, o que nos traz um pouco de segurança nas nossas incertezas. Adotamos verdades que não são nossas e fazemos como aquele boiadeiro, segundo o Dhamapada, que só conta o gado alheio!… Isso é bastante justo quando somos criancinhas; precisamos da mão dos antigos, como aquela pessoa que está caminhando e no seu caminho se depara com um rio. Há uma canoa na sua margem; ele desconhece a profundidade do rio, as suas ondas. O que você acha que é a atitude sensata: ele utilizar a canoa ou arriscar-se nadando? Utilizar a canoa, evidentemente. Não foi ele que a construiu mas ela está ali, disponível. Agora, quando ela termina a travessia do rio de sua própria insegurança e imaturidade, imagine essa pessoa olhando para a canoa e dizendo: 'Sem isto eu não sou ninguém!'; em seguida colocando-a em cima da cabeça e continuando, com este fardo, a sua caminhada. Esta imagem bem pode representar o líder centrado na teoria e na técnica, e é isso que nos traz esse drama da esclerose metodológica e psíquica. Eu venho estudando a muito tempo a esclerose e participando de uma Universidade da Paz, também venho me perguntando há muitos anos: 'o que é paz ?'

Diga-me, então, o que é o oposto à paz? Diga o primeiro pensamento que vem à sua mente? O que vem primeiro é conflito, é guerra. Se você busca a tradição, por exemplo, dos antigos chineses, você então vai se deparar com esse tratado sapiencial – o I Ching – contido em apenas seis riscos, o hexagrama da paz que (…) representa o céu sustentando a terra:

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PAZ

 

O hexagrama oposto da paz (…) representa a terra sustentando o céu, e que os sábios chineses não chamam de guerra e, sim, de estagnação:

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ESTAGNAÇÃO

 

Onde você estiver estagnado no seu corpo, na sua psique, na sua dimensão noética, aí você terá perdido a paz e aí você estará adoecendo. Esta é uma esclerose psíquica que caracteriza um líder centrado, fixado, numa ideologia ou sistema, seja ele qual for. ( …. ) um líder que recita uma ideologia e quer ser fiel apenas a uma ideologia. (….) Ora, quem fez a ideologia? São líderes muito restritos, porque eles ficam seguindo trilhos e perdem as trilhas; morre o criador, vegeta a criatura; não há inovação nem criatividade. Tudo está se transformando e necessitamos um permanente processo de atualização dos conceitos e atitudes. Portanto, a pessoa que permanece nesse estágio inicial, vive aquilo que na mitologia grega é indicado como a cama de Procusto. O Procusto é um personagem muito hospitaleiro porém, o seu hóspede é obrigado a se adaptar à sua cama. Caso seja maior, para se adaptar à cama, Procusto corta suas pernas, naturalmente. Caso seja menor, terá as suas pernas espichadas. E assim são as escolas normóticas, com currículos que são genéricos e rígidos, não centrados no aprendiz. Assim, também, são líderes que tratam os outros como números ou políticos centrados numa técnica ou teoria que tornam-se ultrapassadas. Lembro uma estória antiga, que fala de uma pessoa que procurava um objeto debaixo de um holofote, na rua. Alguém pergunta-lhe: 'É aí que você o perdeu?' E a resposta é: 'Não, eu o perdi lá em casa, mas aqui está mais claro!…' Infelizmente, a maior parte das pessoas fica capturada nesse rede cômoda da mesmice, jamais assumindo a autoria, o lugar do Sujeito da própria existência.

O 2o. estágio: O líder centrado na pessoa: o facilitador afinado com o processo

Porém, alguns vão contra a correnteza; alguns são teimosos o suficiente. Eis do que necessitamos: teimosia. Um menino conversava com outro e dizia: 'Quando eu crescer serei um profeta e vou falar coisas que ninguém vai querer ouvir'. O outro, intrigado, perguntou: 'Então por que você quer ser um profeta se ninguém vai querer ouvi-lo?' E o primeiro respondeu: 'É que nós, os profetas, somos muito teimosos!' Sem teimosia você jamais virará essa página; é preciso a disciplina da busca. Porém, se você for além, entrará numa outra qualidade de liderança que denomino de líder centrado na pessoa, no problema, no aqui e agora. Esse é um líder que está disposto a jogar fora as suas tecnologias, as suas metodologias na lata de lixo, caso estejam interferindo na sua relação com a realidade viva, que não tem endereço certo, a realidade sempre mutante, o inusitado instante. Para você estar afinado com o processo da realidade, você também precisa ser mutante! Esse líder já ilumina um auditório. Um grande profeta desse tipo de liderança foi Carl Rogers, que partia do princípio que todo ser humano tem uma tendência ao auto-desenvolvimento, auto-realização e auto-regulação, bastando, para isso, que haja um terreno fértil. E é aqui que se coloca uma palavra nova : o facilitador. Você facilita propiciando um terreno fértil, onde cada um possa se tornar aquilo que é, e aqui o líder encontra-se em sua maturidade.

Durante muito tempo postulei essa abordagem humanística como sendo o fim do caminho. Porém, há um momento em que, se você olhar bem para os olhos de um ser humano e se você abrir ainda mais a sua escuta, você vai se dar conta de que o ser humano é mais do que um ser humano. Lembro como me tocou encerrar um congresso recente na Universidade de Lisboa; era um congresso que contava com cientistas como Grof, Sheldrake, Pribran, Amit Goswami, entre outros. Então, lembrei-me de um filósofo espanhol, Uriol Anguera, que foi convidado também para encerrar um congresso de cibernética, depois de uma semana discutindo sobre processos mecânicos, informacionais, sobre toda essa racionalidade da máquina. Então, o filósofo levantou, tomou a palavra e disse: 'Eu vim aqui para falar de uma trindade diabólica: primeiro veio Darwin e nos ligou a um macaco, depois veio Pavlov e nos ligou a um cão; então, veio Freud e nos ligou a um falo. E como os três mosqueteiros eram quatro, veio Norbert Wiener e nos ligou a uma máquina. Eu estou aqui para dizer que pelo menos 1% do homem é Deus!' Este 1% metafórico aponta para o Mistério. Se você olhar bem para o ser humano e se você de fato escutá-lo, em algum momento, você vai se deparar com o Grande Mistério; em algum momento você vai encontrar aquelas palavras de Teilhard de Chardin: 'O ser humano é o sacerdote da Criação. É o espaço onde o próprio Universo pode aprender a se conhecer, pode aprender a se amar'. Portanto, é preciso virar essa página também, e muito se caminhou para chegar aqui; é um itinerário de realização que começa sempre com o primeiro passo: inclinar o coração para aprender.

O 3o. estágio: O líder holocentrado: o facilitador conectado à tomada universal

O terceiro estágio – e eu vim aqui para trazer essa notícia final, pois essa é a nossa conspiração; por isso estamos aqui; por isso existe a UNIPAZ – o terceiro estágio, que inclui os anteriores, pode ser chamado de excelência: a liderança holocentrada. O líder holocentrado é o que se conectou, se religou à totalidade, dando-se conta de que não está dissociado da sociedade, do ambiente, do universo e do Grande Mistério. É o líder que escuta as sincronicidades: ele volta, à moda dos antigos, a escutar o trovão, a escutar o cochicho dos eventos que se conectam numa unidade, sempre a partir de uma unidade indissociável, isso é que é sincronicidade. É o que Jung juntamente com Pauli, um representante da física quântica, chamava de princípio de conexões acausais, que alguns vão chamar de transcausais. É o domínio das coincidências significativas quando os eventos se conectam pelo significado e não pela causa. Nós existimos numa unidade de eventos; não estamos separados dessas cadeiras, dos seres humanos que nos cercam, das maquininhas e de tudo o que nos envolve. Portanto, quando você faz uma pergunta, você pode acionar uma resposta implícita no mistério da totalidade e isso é sincronicidade, um conceito já clássico, sustentado numa reflexão científica. É um líder que está, numa só palavra, 'ligado': ele está ligado à tomada universal; é um líder que conectou os seus dois hemisférios cerebrais: o hemisfério racional, científico, tecnológico com o hemisfério poético, místico, da comunhão; o hemisfério analítico com o hemisfério sintético; o hemisfério esquerdo, com o hemisfério direito: as duas asas que um pássaro necessita para voar, as duas pernas que um ser humano necessita para empreender uma viagem com coração. Metaforicamente, podemos falar que é um líder centrado no corpo caloso, milhões de neurônios que conectam os dois hemisférios cerebrais, religando-os.

A holística não é nem analítica, nem sintética; a holística não é nem científica, nem espiritual; a holística implica uma comunhão, uma sinergia entre essas duas naturezas e duas formas de apreensão do real. Como diz Capra, 'A ciência não precisa da espiritualidade, pois tem o seu caminho próprio, é o caminho analítico; a espiritualidade não precisa da ciência, pois tem o seu caminho próprio, o sintético, o intuitivo. Mas o ser humano necessita de ambos.' O corpo caloso, que gosto de metaforizar como o chifre do unicórnio, que os antigos denominavam de terceira visão, é o substrato neurológico da liderança holocentrada. Portanto, esse é um líder na sua excelência, é um líder que ousou resgatar as suas asas sem perder as suas raízes, é um líder que pode dizer com o poeta:

'Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti. Não indague se nossas estradas, tempo e vento desabam no abismo. Que sabes tu do fim ? Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. No deslumbramento da ascensão, se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta, canta. Talvez as canções adormeçam a fera que espera devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que o vôo no tempo rumo aos céu? Que importa a rota! Voa e canta enquanto existirem as asas' (Menotti del Picchia).

Portanto, era isso que eu queria trazer como a essência dessa mensagem. Há um líder de todos os líderes, o Grande Gurú, que é a essência. Quando você se deixa guiar por essa essência, é quando você se faz um líder na sua excelência e plenitude. Então você poderá assumir a autoria de seus passos e não será mais uma folha levada pelo vento. Esse é um potencial que todos nós possuímos, e não se trata de desenvolver a espiritualidade, que já está pronta. Trata-se de desenvolver a nossa dimensão corporal, ou seja, escutar, atender o telefone da doença, da crise, que nos convoca. Aprender o sentido dos nossos passos. Trata-se de trabalhar com a psique, introduzindo qualidade em nossa alma e, também, qualidade na dimensão noética. Assim o sol da essência vai se manifestar, naturalmente. Você já deve ter ouvido em certos dias cinzentos a expressão: 'Hoje não tem sol!' É verdade? Haverá um dia em que não há sol? Não, a verdade é que hoje tem nuvens! A nuvem da ignorância existencial é aquela que nos mantêm atados a uma corrente e a uma prisão, aquela que nos tira o sabor da aventura e o gosto da liberdade.

Esse líder se manifesta através da amorosidade. É preciso ousar dizer que o espírito é amor; o espírito se manifesta através do amor. Se não houver amor então, para quê viver? Portanto, o amor está no início, está no meio e está no fim. Nós estamos aqui para aprender a amar – e todo o resto é bobagem. Na medida em que você aprende a amar, você faz doação, você aprende a doar. Alguns dão do que têm, outros dão do que sabem. E há aqueles que dão do que são: são os grandes mestres, são os grandes líderes e a humanidade sempre nos ofereceu o testemunho de seres humanos plenos que nos convocam a subir a nossa própria montanha.

Quero concluir com uma oração criada por um poeta espanhol, Jimenez, quando viveu um tempo muito depressivo e sentiu que sua alma estava sendo roubada. Então ele subiu numa montanha, nos Pirineus, e lá ficou durante um mês em retiro. Quando desceu, ele tinha uma intenção sagrada que passou a ser sua oração e que diz:

'Eu não sou eu, eu sou alguém que caminha ao meu lado. Que permanece em silêncio quando estou falando. Que perdoa e esquece quando estou irado, esbravejando. Que segue sereno quando estou aflito, sofrendo. E que estará de pé quando eu estiver morrendo.'

Eu não sou eu, eu sou alguém que caminha ao meu lado. E por esse Alguém, vale a pena conspirar.

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