Repensando o Voraz Consumo de Carne

Publicado no New York Times de 27 de Janeiro de 2007

 

Rethinking the Meat-Guzzler

por Mark Bittman

Uma séria mudança no consumo de um recurso que os americanos dão por certo que podem ter em estoque – algo barato, abundante, amplamente apreciado e parte da vida diária. E não se trata de petróleo.

Trata-se de carne.

Os dois produtos compartilham muito em comum: como o petróleo, a carne é subsidiada pelo governo federal. Como o petróleo, a carne se sujeita a aumento de demanda à medida que as nações se tornam mais ricas, e isso, consequentemente, eleva o seu preço. Finalmente – como o petróleo – a carne é algo a que as pessoas são encorajadas a consumirem menos, enquanto que o custo imposto pelos produtores aumenta e se torna cada vez mais perceptível.

A demanda mundial por carne multiplicou nos últimos anos, encorajada pela crescente afluência e nutrida pela proliferação de gigantescas operações para alimentação de animais confinados. Essas amontoadoras fábricas de carne consomem enormes quantidades de energia, poluem as fontes de água, geram significativos gases produtores do efeito estufa e requerem uma quantidade sempre-crescente de milho, soja e outros grãos; uma dependência que leva a destruição de vastas áreas das florestas tropicais de todo o mundo.

Esta semana, o presidente do Brasil anunciou medidas emergenciais para refrear os desmatamentos e queimadas das florestas tropicais do país para plantio e terra de pasto. Apenas nos últimos cinco meses, o governo diz, 2.000 quilômetros quadrados foram perdidos.

O total mundial de fornecimento de carne foi de 71 milhões de toneladas em 1961. Em 2007, estimou-se a produção de 284 milhões de toneladas. O consumo per capita mais do que dobrou desde aquele período. (No mundo em desenvolvimento, isso cresceu duas vezes mais rápido, dobrando nos últimos 20 anos). Espera-se que o consumo mundial de carne dobre novamente até 2050, o que um especialista, Henning Steingield, das Nações Unidas, diz que resultará em um “crescimento implacável da produção de gado”.

Americanos comem aproximadamente a mesma quantia de carne que comíamos há algum tempo, cerca de 230 gramas por dia; cerca de duas vezes mais do que a média global. Nós “processamos” (ou seja, criamos e matamos) aproximadamente 10 bilhões de animais ao ano, mais de 15 porcento do total mundial.

Cultivar carne (é difícil usar a palavra “criar” quando aplicada a animais em fazendas-fábricas) usa tantos recursos que é um desafio enumerar todos. Mas leve em consideração: uma estimativa de 30 porcento do solo livre de gelo da Terra está direta ou indiretamente envolvido com produção de gado, de acordo com a Organização de Agricultura e Alimento das Nações Unidas [United Nations' Food and Agricultural Organization], que também estimam que a produção de gado gera cerca de um quinto dos gases responsáveis pelo efeito estufa do mundo – superando o transporte.

Para colocar a demanda de energia da produção de carne em termos de fácil compreensão, Gidon Eshel, um geofísico do Centro Bard, e Pamela A. Martin, professora de geofísica da Universidade de Chicago, calcularam que, se os americanos reduzissem o consumo de carne em apenas vinte porcento, isso seria como mudar de um Sedan 77 para um Toyota-Prius ultra-eficiente. Similarmente, um estudo feito ano passado pelo Instituto Nacional de Ciências da Criação de Gado e Áreas de Pastagem do Japão [National Institute of Livestock and Grassland Science of Japan] estimou que 1 quilo de carne bovina é responsável pela quantia de dióxido de carbono equivalente a emitida pelo carro popular europeu a cada 250 quilômetros, e queima energia suficiente para manter acessa uma lâmpada de 100 watts por aproximadamente 20 dias.

Grão, carne e até mesmo energia são amarrados de tal maneira que podem trazer resultados desastrosos. Mais carne significa um correspondente aumento de demanda por ração, especialmente milho e soja, que alguns especialistas dizem que irá contribuir para preços mais elevados.

Isso será inconveniente para os cidadãos de nações mais ricas, mas isso pode ter trágicas conseqüências para aquelas mais pobres, especialmente se o aumento dos preços das rações desviar o cultivo de grãos da produção alimentícia que visa o consumo humano. A demanda por etanol já está fazendo com que os preços sofram aumento, e explica, em parte, o aumento de 40 porcento do índice calculado de custo alimentício feito pela Organização de Agricultura e Alimento das Nações Unidas.

Embora aproximadamente 800 milhões de pessoas no planeta sofram de fome ou desnutrição, a maior parte do milho e da soja plantados no mundo alimenta o gado, porcos e galinhas. Isso apesar da inerente ineficiência: cerca de duas ou cinco vezes mais grãos são necessário para produzir a mesma quantidade de calorias através da criação de gado do que através do consumo direto de grãos, de acordo com Rosamond Naylor, professora de Economia da Universidade Stanford. É preciso dez vezes mais grãos no caso dos animais de corte alimentados por grãos nos Estados Unidos.

O impacto ambiental de se produzir tanto grão para alimentar animais é profundo. A agricultura nos Estados Unidos – muita da qual serve agora a demanda por carne – contribui para quase três quartos de todos os problemas da qualidade de água dos rios e riachos nacionais, de acordo com a Agência de Proteção Ambiental [Environmental Protection Agency].

Porque o estômago do gado é próprio para digerir capim, e não grãos, o gado criado industrialmente cresce apenas no sentido de ganhar peso rapidamente. Essa dieta torna possível remover o gado de seu meio natural e aumenta a eficiência do confinamento e abatimento em massa. Mas isso causa tantos problemas de saúde que a ministração de antibióticos é rotineira, em quantidade tamanha que pode resultar em bactérias resistentes a antibióticos que desafiarão a eficácia dos medicamentos para humanos.

Estes animais alimentados com grão, por sua vez, estão contribuindo para problemas de saúde entre os cidadãos mais ricos do mundo – problemas de coração, alguns tipo de câncer, diabetes. O argumento de que a carne provê proteínas úteis é válido, se a quantidade for pequena. Mas o “você tem que comer carne” entre em colapso em muitos níveis americanos. Mesmo se a quantia de carne que comemos não for nociva, necessária ela não é.

Americanos estão aproximando seu consumo per capita de carne bovina, de aves e de peixe (laticínios e ovos são à parte, e quase insignificantes) a quase 90 quilos ao ano, um aumento de 22 quilos por pessoa nos últimos 50 anos. Cada um de nós consome algo como 110 gramas de proteína ao dia, cerca de o dobro da cota recomendada pelo governo federal; disso, aproximadamente 75 gramas vêm de proteína animal. (Mesmo o nível recomendado é considerado por muitos especialistas em nutrição como sendo superior ao necessário). Parece que a maior parte de nós ficaria satisfeita com ao redor de 30 gramas de proteína ao dia, toda essa quantia obtida de fontes vegetais praticamente.

O que pode ser feito? Não há uma resposta simples. Melhor administração dos refugos, para alguns. Eliminar subsídios também poderia ajudar; as Nações Unidas estimam que eles representam 31 porcento do renda agrária mundial. Práticas agrárias aprimoradas ajudariam também. Mark W. Rosegrant, diretor de tecnologia de meio-ambiente e produção do Instituto Internacional de Pesquisa de Política Alimentar [International Food Policy Research Institute] sem fins lucrativos, diz: “Deveria haver investimento na reprodução e administração da criação bovina para reduzir o impacto necessário na produção de qualquer quantia de carne”.

Há tecnologia, portanto. Israel e Coréia estão entre os países que experimentam usar os refugos animais para a obtenção de eletricidade. Uma das maiores operações referentes à suinocultura está em andamento nos Estados Unidos, com algum sucesso, com o fim de transformar esterco em combustível.

A longo prazo, não parece mais loucura acreditar na possibilidade de “carne sem alimentação” – carne produzida in vitro, criando células animais em um ambiente super-nutrido antes de ser possível a manufatura manipulada de hambúrgueres e bifes.

Outra sugestão é o retorno à carne de gado de pasto, uma alternativa bem realista se você aceita a psicologicamente difícil e politicamente impopular noção de se comer menos carne. Isso porque a criação pastoril jamais produziria tantas cabeças de gado quanto as fazendas-fábricas produzem. Ainda assim, disse Michael Pollan, autor do recente livro In Defensa of Food [sem tradução para o português]: “Em locais onde você não possa cultivar grãos, engordar vacas com capim sempre fará mais sentido”.

Mas porcos e galinhas, que convertem grãos em carne com maior eficiência do que o gado, são a carne cada vez mais escolhida por produtores, somando 70 porcento do total de carne produzida, com sistemas industrializados produzindo metade da carne suína e três quartos da galinácea.

Uma vez, esses animais foram criados localmente (muitos Nova Iorquinos se lembram dos porcos de Secaucus), reduzindo custos de transporte e permitindo que seus refugos fossem dispersados em terrenos próximos. Agora, as instalações para produção de suínos, que se assemelham mais a prisões do que a fazendas, ficam a centenas de quilômetros da maior parte dos centros demográficos, e seus “lagos” de excremento poluem riachos e água subterrânea. (Somente em Iowa, instalações e fazendas de suinocultura produzem mais de 50 milhões de toneladas de excremento anualmente).

Esses problemas nasceram aqui, mas não se restringem mais aos Estados Unidos. Enquanto que a demanda doméstica por carne se estabilizou, a produção industrial de criação de gado está crescendo mais do que duas vezes mais rápido do que a produção por métodos tradicionais, de acordo com as Nações Unidas.

Talvez a maior esperança de mudança resida nos consumidores se tornarem conscientes dos verdadeiros custos da produção industrial de carne. “Quando você volta a sua atenção para os problemas ambientais dos Estados Unidos”, diz o professor Eshel, “quase todos eles têm sua origem na produção alimentícia, especialmente na produção de carne. E as fazendas-fábricas só são uma 'otimização' enquanto a poluição das reservas de água é permitida. Se largar toda essa estrutura é algo dispendioso – mesmo ela carregando uma etiqueta de preço apenas um pouco superior a zero – toda a estrutura de produção alimentícia irá mudar drasticamente”.

O bem-estar dos animais pode ainda não ser uma grande preocupação, mas, à medida que a criação de carne em confinamento se torna conhecida, mais pessoas que amam os animais podem passar a reagir. E o mundo não seria um local melhor se direcionássemos parte dos grãos que usamos para produzir carne para os nossos seres humanos semelhantes?

O preço real da carne bovina, de porco e de aves domésticas mostra-se estável, talvez tendo até decrescido, nos últimos 40 anos ou mais (em parte devido aos subsídios de grãos), embora comecemos a vê-lo crescer agora. Mas muitos especialistas, incluindo Tyles Cowen, professor de Economia da Universidade George Mason, diz que eles não acreditam que o preço da carne irá crescer o bastante para afetar a demanda dos Estados Unidos.

“Eu simplesmente não acredito que podemos contar com o preço nos mercados para reduzir o nosso consumo de carne”, ele disse. “Talvez os preços sofram alta temporariamente, mas isso será quase que certamente neutralizado posteriormente. Mas se toda a culpa for colocada nos consumidores, não será um caso tão trágico”.

Se as altas de preço não mudam hábitos alimentares, talvez a combinação de desflorestamento, poluição, mudança climática, aumento da fome, problemas de coração e crueldade contra os animais gradualmente encoraje o ato diário simples de comer mais plantas e menos animais.

O Sr. Rosegrant do Instituto de Pesquisa de Política Alimentar diz prever “uma forte campanha política para a redução do consumo de carne – como as campanhas ao redor do tabagismo – enfatizando saúde pessoal, compaixão pelos animais e compaixão pelos pobres e pelo planeta”.

Não seria surpreendente para o professor Eshel se tudo isso tivesse um impacto verdadeiro. “O bem dos corpos das pessoas e o bem do planeta estão mais ou menos perfeitamente alinhados”, ele disse.

A Organização de Agricultura e Alimento das Nações Unidas, em seu detalhado estudo sobre o impacto do consumo de carne do planeta feito em 2007, The livestock's Long Shadow – Environmental Issues and Options [sem tradução para o português], apresenta um ponto similar: “Há razões para otimismo, pois as conflitantes demandas por produtos animais e serviços ambientais podem ser reconciliadas. Ambas as demandas são envidadas pelo mesmo grupo de pessoas […] a classe média-alta relativamente influente, que não mais está restrita a países industrializados. […] Esse grupo de consumidores provavelmente está pronto para usar sua crescente voz para exigir mudança e talvez esteja inclinado a absorver os inevitáveis aumentos de preço”.

De fato, os americanos já estão optando por comprar produtos mais amigos do meio-ambiente, escolhendo carnes, ovos e laticínios produzidos de forma mais sustentável. O número de mercados de fazendeiros mais do que dobrou nos últimos 10 anos, e não foge de ninguém o fato de que o mercado de alimentos orgânicos vem crescendo rapidamente. Tudo isso representa produtos que são mais caros, mas de maior qualidade.

Se as tendências continuarem, a carne talvez se torne um prato para dias excepcionais ao invés de um prato rotineiro. Isso não será incomum, senão que, tão certamente como a industria automotiva irá ceder ao híbrido, a era dos 230 gramas de carne ao dia irá ter fim.Talvez isso não seja lá um problema. “Quem disse que as pessoas precisam comer carne três vezes ano dia?”.

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