Sobre o Carma

“O que o homem semeia, isso mesmo colherá” (Gl 6,7)

 

“Os seres têm como patrimônio o seu Carma; são os herdeiros, os descendentes, os pais, os vassalos do seu Carma. É o Carma que divide os homens em superiores e inferiores” 17:52.

Sidarta Gautama, O BUDA

 

“Enquanto alguém tiver desejos materiais insatisfeitos ou Carma terreno (efeitos ainda não extintos, de ações passadas), deve reencarnar na Terra, para continuar a evolução de volta para Deus”.

Paramahansa Yogananda (1.893-1.952)

 

Carma é a doutrina fundamental da filosofia hindu e budista, que diz que após um ser consciente encarnado morrer, ele reaparecerá em outro nascimento sob condições criadas por ele mesmo, seja nesse mundo ou em outro qualquer. Essas condições criadas geram o Carma, a força ou poder orientador que guiará o renascimento, motivado pelo apego de se continuar vivendo, que é chamado de Trishna (Tanha em páli). O Carma é a lei que determina que cada desejo humano encontre a satisfação final. Desejos não espirituais formam, assim, a corrente que amarra o homem à roda das reencarnações físicas.

Assim, pode-se dizer que Carma é o que um cristão chamaria, em um certo sentido, de Providência Divina ou, em outro sentido, de Destino, ou ainda o que o mulçumano chamaria de Kismet. Carma também seria o Livro de Registros no qual todos os nossos atos são registrados para posterior prestação de contas. É a lei do equilíbrio. Essa prestação de contas seria realizada por uma nova manifestação física de Atma-Buddhi, que se reveste de novos Skandhas os quais são criados e formados a partir de seu último grupo de Skandhas. Isso é Upadana, a consumação daquele desejo de continuar na vida física (Trishna).

Até aqui vimos quem somos, para que existimos e o que devemos fazer. O Carma é a resposta ao por que? Do sânscrito “Karma”, Carma tem o sentido de “ação”, mas pode também significar tarefa ou criação. Trabalhamos e criamos a cada instante e dessa forma geramos Carma a cada momento. Também tem o sentido de uma relação entre causa e efeito e, dessa forma, o homem, mediante o comportamento adotado durante a sua existência física, é brindado com os efeitos de suas ações, gerando-lhe desdita ou felicidade (Ez 18:20). Assim, é o Carma que determina o tipo de renascimento que um indivíduo terá: um Carma bom resulta num renascimento favorável. Tudo o que nos ocorre seria um efeito de alguma causa. No mundo quântico vemos que todas as partículas estão interligadas de uma forma tal, que a alteração em qualquer uma delas determina algum tipo de mudança em todas as outras. Assim vemos que tudo o que acontece está regido por uma espécie de Lei de Causa e Efeito: a Lei do Carma.

A lógica nos leva a ver, então, que todas as nossas ações, que já são efeito de algo, provêm de causas anteriores, que por sua vez vão produzir efeitos futuros, numa reação em cadeia. O Carma é a lei que rege o mundo do pensamento, das sensações e emoções. Carma é a lei que rege os fenômenos da vida, como também a lei que determina e governa, não só a forma física do homem, como também as formas de todos os corpos que compõem o nosso Universo material. Todas essas leis são naturais e inflexíveis.

Infelizmente houve uma degeneração desse termo no ocidente e a cultura popular adotou o termo como castigo, trazendo também a palavra Dharma como mérito. Na verdade, no Oriente utiliza-se o termo Dharma para representar as leis da Natureza e Adharma no sentido do que seja contrário a estas mesmas leis. A palavra Dharma deriva da raiz verbal dhri, que significa “sustentar” ou “manter”. Dharma é aquilo que sustenta ou mantém o Universo, como também o indivíduo. No nível individual, Dharma é a conduta correta, o resultado do verdadeiro conhecimento, nossa meta ou o trabalho que viemos realizar nessa encarnação.

Mas em suas raízes, Carma é apenas uma forma de energia que advém unicamente de nossa ação: se nossa ação estiver de acordo ou não com o nosso Dharma, geraremos um bom ou um mau Carma individual. Cada pensamento, sentimento ou ato nosso, afeta cada um de nossos semelhantes na dependência do grau de proximidade deles da força gerada por nós. Assim, cada uso que fazemos desta força auxilia ou prejudica o conjunto do qual somos uma parte. Como o homem está vinculado à família, à sociedade e à natureza, dizemos que ele possui vários níveis de vínculos cármicos.

A conseqüência pelo dano causado em geral é uma dor. A força que produz tal dor é descarregada de volta no causador, tomado como ponto de apoio, restabelecendo assim o equilíbrio original. Com a boa ação se dá o mesmo, a reação é uma força que ajusta as circunstâncias de maneira a produzir um conforto. Quanto maior o conhecimento do homem sobre o Carma, maior o seu domínio sobre a sucessão de efeitos. A conscientização da existência da lei do Carma faculta-nos a sabedoria, direcionando-nos incessantemente em cada etapa da vida.

A soma de nossas experiências e ações positivas anula, como nas leis da física, as negativas propiciadoras de sofrimento. Como resultado das ações meritórias ou comprometedoras do ser, as leis cármicas geram seus efeitos correspondentes no ciclo evolutivo de cada ser, e, como lei natural, estabelece assim o sentido real da divina justiça, presente em todos os fenômenos da natureza e da criação. Cabe porém explanar que a prática de atitudes dhármicas visando unicamente eliminar os resíduos de nossas ações adhármicas é uma atitude egocêntrica do tipo mercantil, e pode ser considerado algo negativo no tribunal de nossa própria consciência. Assim como Cristo expulsou os mercadores do templo devemos extirpar o mercado de nossa psique, mercado este oriundo de nossos próprios valores negativos. Já uma atitude dhármica visando a realização psico-espiritual do semelhante, sem visar méritos em especial para si, numa verdadeira atitude de Karma-yoga, pode ser considerado algo muito positivo.

Segundo a filosofia oriental, há três tipos básicos de Carma: aquele Carma que estamos colhendo a cada momento (prarabdha karma), o Carma que estamos plantando a cada momento (kriyamana karma) e o que já plantamos e ainda não colhemos (sanchita karma). Dos três o mais importante é o que estamos plantando a cada momento, pois é o único que podemos alterar pelas nossas escolhas. Kriyamana karma, em geral, está relacionado com a forma com que encaramos e reagimos ao prarabdha karma, àqueles fatos, frutos de uma ação anterior, que se nos apresenta no dia-a-dia. Mas prarabdha karma muitas vezes é encarado como o “nosso destino” contra o qual não podemos lutar (Jr 10:23).

Dessa forma Carma não é fatalista nem determinista mas representa a nossa habilidade em reagir ao “nosso destino”, mudando, por que agimos com nosso livre-arbítrio, e criando, por que podemos determinar como e por que agimos. Em nossas mãos se encontra o “nosso destino”. É cômodo cruzar os braços dizendo ser o sofrimento uma necessidade cármica que nós mesmos ou a coletividade tem a passar. Difícil é atuar em infinita compaixão pelos seres sensíveis, inclusive nós mesmo, e mudar.

“As vidas dos homens, em sua maioria, não sendo controladas pela sabedoria que possibilita a autodeterminação, mas por fortes hábitos e tendências de vidas passadas [samskaras em sânscrito], são como  bolas arremessadas ao comando do jogador, a lei de causa e efeito, ou carma. … Os hábitos já formados… dirigem suas vítimas humanas para linhas de ação já marcadas e prefixadas… empurram as almas, quer queiram, quer não, para canais de comportamento predeterminados e predizíveis”  102:151.

Paramahansa Yogananda

Crimes cometidos por avidya (ignorância), como no caso de idiotas, crianças ou selvagens, envolvem responsabilidades físicas, mas não morais. Mas quando se penetra no conhecimento da Verdade e se desperta a sua própria autoconsciência dhármica (nosso princípio chamado de Buddhi – Cf. no Capítulo I), quando se pede à Luz Radiante de nosso Eu Superior para brilhar em cada canto escuro de nosso ser, conscientemente invocamos a Justiça Divina do Carma para anotar nossos motivos, observar nossas ações, e penetrar em tudo o que nos diz respeito. Esse passo é tão irrevogável como aquele tomado pela criança ao nascer. 

Nunca mais se pode forçar a volta à avidya e à irresponsabilidade. Mesmo que se desapareça do convívio humano, se esconda em locais inacessíveis ou se busque o esquecimento se envolvendo em múltiplas atividades pessoais, Buddhi nos achará, escutando cada pensamento, palavra e ato. Mas, por outro lado, cada bom ato, realizado em consonância e comunhão consciente com Buddhi, será amplamente intensificado em seus efeitos. Vinte falhas não são irremediáveis se seguidas pelo mesmo número atos dhármicos. Como no Aikido: pode-se cair centenas de vezes, mas cada queda deverá ser um impulso para se por novamente de pé.

Nosso débito é maior que o crédito. Se ao nascermos, todas as nossas forças cármicas fossem postas em ação, como temos maior bagagem de mal que de bem, nossa existência seria tão cheia de dor e sofrimentos que não suportaríamos tão grandiosa carga. De tal forma, sabiamente nosso carma nos vem em pacotes, vida após vida, para resgatarmos.

“Nunca exigimos de uma alma mais do que pode… Nunca impomos a alma alguma carga superior às suas forças”.

Alcorão 6:152 e 7:42

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