À Espera da Pandemia

Vacinas: Quem Vai Ter Acesso? E Quão Rápido?

 

 No passado, pandemias de varíola e pólio aterrorizaram a humanidade, mas a imunização levou essas doenças quase à extinção. Infelizmente, essa estratégia não vai funcionar contra a influenza sem um grande avanço na tecnologia.

Se a pandemia de gripe acontecer em breve, as vacinas contra a variante emergente demorarão demais para chegar, e seu estoque será insuficiente. Pioram o problema a biologia, a economia e a complacência.

Muitas variantes do vírus da influenza circulam ao mesmo tempo, e cada uma delas está em constante evolução. “Quanto maior a compatibilidade entre a vacina e o vírus que causa a doença, maior a eficiência do sistema imunológico contra ele”, explica Gellin. Assim, todo ano os fabricantes criam uma nova vacina contra as três cepas mais ameaçadoras. Primeiro isolam o vírus, e depois o modificam com uma técnica chamada genética reversa, para criar um vírus-semente. Nas fábricas de vacinas, robôs injetam o vírus-semente em ovos de galinhas, e o patógeno se replica em grande quantidade dentro deles.

A vacina para a gripe é feita pela dissecação química do vírus e pela extração de algumas de suas principais proteínas, os antígenos, que estimulam o sistema imunológico humano a criar anticorpos adequados.

Um outro tipo de vacina, para inalação em vez de injeção, usa vírus vivos enfraquecidos (capazes de infectar mas não de causar a doença). O processo requer seis meses para obtenção das primeiras doses de vacina.

Como as pessoas não terão sido nunca expostas a uma cepa pandêmica do vírus influenza, todo mundo precisará de duas doses: uma inicial e uma de reforço quatro semanas depois. Assim, mesmo aqueles que estiverem em primeiro lugar na fila das vacinas só adquirirão imunidade à doença sete ou oito meses depois do início da pandemia.

Certamente haverá filas. A produção mundial de vacinas para a gripe é de cerca de 300 milhões de doses ao ano. A maior parte é fabricada na Europa; apenas duas fábricas operam nos EUA. No Brasil, o Instituto Butantan deve começar a fabricação de uma leva experimental no início de 2006 . No ano passado, quando um problema de contaminação fechou uma fábrica da Chiron na Grã-Bretanha, a Sanofi Pasteur e a MedImmune produziram com força total nos EUA – e obtiveram 61 milhões de doses. O CDC recomenda a imunização anual contra a gripe para grupos de maior risco, os muito jovens, muito velhos e os com o sistema imunológico debilitado.

Hoje, a fábrica da Sanofi funciona o ano todo. Novas instalações em construção na Pensilvânia dobrarão sua produção, mas só em 2009. Mesmo diante de uma emergência, “seria muito difícil acelerar esse cronograma”, diz James Matthews, do grupo de trabalho da Sanofi para o planejamento contra a pandemia. Segundo ele, converter fábricas de outros tipos de imunização em produtoras de vacinas contra a gripe é inviável.

Pascale Wortley, do Programa Nacional de Imunização do CDC, levanta outro problema. As pandemias costumam acontecer durante a temporada normal de gripe, afirma ela, e as fábricas de vacinas só podem produzir uma variante de cada vez. Len Lavenda, representante da Sanofi, concorda que “podemos ter de enfrentar uma 'escolha de Sofia': decidir se interrompemos ou não a produção anual de vacina para dar início à produção da vacina para a pandemia”.

A MedImmune pretende elevar a produção de sua vacina inalável de cerca de 2 milhões de doses ao ano para 40 milhões de doses até 2007. Mas Gellin alerta que pode ser perigoso demais distribuir uma vacina viva derivada de uma variante pandêmica. Há uma pequena possibilidade, diz ele, de que o vírus troque genes com um vírus “normal” de gripe, em um paciente, e dê origem a uma cepa ainda mais perigosa.

Já que a demora na produção e a escassez no número de doses de vacinas contra a pandemia são inevitáveis, uma das funções mais importantes dos planos nacionais de preparação é pressionar os líderes políticos a decidir com antecedência quais grupos serão os primeiros a receber a imunização e como o governo vai garantir seu racionamento. O comitê consultivo sobre vacinação nos EUA recomendou em julho que as primeiras doses sejam aplicadas em líderes do governo, pessoal médico, funcionários que trabalham na fabricação da vacina e em laboratórios farmacêuticos. Também seriam incluídos parte das grávidas, bebês, idosos e doentes que já estão no grupo prioritário para a vacinação anual. No total, os primeiros da fila seriam cerca de 46 milhões de americanos.

Para os planejadores do CDC, diz Wortley, “há uma forte sensação de que devíamos dizer, rapidamente, que o governo vai comprar uma determinada quantidade de vacina para garantir uma distribuição igualitária”. Austrália, Grã-Bretanha, França e outros países estão fazendo contratos com produtores de vacina para dar essa garantia.

Os governos poderiam, em tese, evitar as dificuldades estocando vacinas. Mas teriam de atualizar constantemente os estoques, conforme novas cepas de influenza ameaçarem ter uma ação global; e, mesmo que fizessem isso, as reservas sempre estariam um ou dois passos atrás da doença. De qualquer forma, diz Wortley, “faz sentido manter a vacina para a H5N1 à mão, porque, mesmo que não haja uma compatibilidade exata, ela provavelmente garantirá alguma proteção” se essa cepa evoluir e causar uma pandemia.

Com esse objetivo, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (NIAID) distribuiu no ano passado um vírus-semente do H5N1, criado a partir de uma vítima do Vietnã. O Departamento de Saúde então encomendou à Sanofi 2 milhões de doses de vacina contra aquela variante. Os ensaios clínicos em seres humanos começaram em março, e “os resultados preliminares indicam que a vacina oferecerá proteção”, diz Anthony Fauci, diretor do NIAID. “O secretário da Saúde, Michael Leavitt, está tentando negociar para chegar até 20 milhões de doses”, afirma.

(Leavitt anunciou em setembro que o Departamento de Saúde havia aumentado a encomenda de vacina contra a H5N1 em US$ 100 milhões.) Segundo Gellin, os atuais produtores da vacina poderão contribuir para o estoque dos EUA com no máximo de 15 milhões a 20 milhões de doses por ano.

É bem provável, no entanto, que esses números sejam otimistas demais. Foram testadas quatro concentrações diferentes de antígeno. Uma vacina anual comum contra a gripe tem 45 microgramas de proteína e cobre três variantes de influenza. As autoridades acreditavam que 30 microgramas do antígeno da H5N1 – duas vacinas, cada uma com 15 microgramas – seriam suficientes para induzir a imunidade. Mas os resultados preliminares dos ensaios indicam que são necessários 180 microgramas.

A encomenda de 20 milhões de doses convencionais deve, portanto, dar para vacinar apenas 3,3 milhões de pessoas contra a H5N1. O número final pode ser ainda menor, já que as variantes H5 não se multiplicam bem em ovos, portanto cada remessa produz menos antígeno ativo que o normal. Esse cenário pessimista pode se tornar um pouco mais animador, porém, quando o NIAID analisar os resultados finais do ensaio clínico.

Também há a possibilidade de ampliar o suprimento de vacinas com o uso de adjuvantes (substâncias que potencializam a resposta imunológica das vacinas) ou com novas estratégias de imunização.

Embora não seja impossível, armazenar grandes quantidades de vacina pré-pandemia é um desafio enorme. As vacinas expiram em poucos anos. Ao ritmo de produção atual, um estoque jamais chegaria aos 228 milhões de doses necessárias para cobrir os três grupos prioritários, e nem de longe aos cerca de 600 milhões de doses que seriam necessárias para vacinar todo mundo nos EUA. Outros países enfrentam limitações semelhantes.

O principal motivo de uma produção tão escassa, explica Matthews, é o fato de os fabricantes de vacinas pensarem apenas na demanda anual quando tomam decisões estratégicas. “Não vemos a pandemia em si como uma oportunidade de mercado”, diz.

Para aumentar o interesse dos fabricantes, “temos de oferecer incentivos, desde seguro contra terceiros até uma margem de lucro maior, passando por garantias de compra”, admite Fauci. As soluções de longo prazo, prevê Gellin, podem vir das novas tecnologias que permitam uma produção mais eficiente, mais rápida, com vacinas eficazes, com doses menores e que talvez funcionem para todas as variantes do influenza.

 

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