À Espera da Pandemia

Tratamento: O que Pode Ser Feito Pelos Doentes?

 

Se 2 bilhões de pessoas ficarem doentes, quantas morrerão? Dez milhões? Ou 100 milhões? Os especialistas em saúde pública têm dificuldade para quantificar as baixas que serão causadas por uma futura pandemia. As estimativas variam muito porque, enquanto a pandemia não ocorre, ninguém tem como saber se a cepa será amena, como o vírus  da pandemia de 1968, que alguns pesquisadores classificam como leve; de gravidade moderada, como a de 1957; ou uma mortífera, como a de 1918.

Por enquanto, os planejadores se guiam por princípios básicos: como ninguém terá imunidade à nova variante, acreditam que 50% da população se infectará. Dependendo de sua virulência, entre um e dois terços dos contaminados adoecerão, a um nível de ataque de 15% a 35% de toda a população. Muitas nações, portanto, se preparam para uma estimativa média de que 25% de todos os seus habitantes ficarão doentes.

Não há nenhum governo preparado. Nos EUA, onde os estados são os principais responsáveis pela saúde pública, o Trust for America's Health (TFAH) estima que um vírus pandêmico “severo”, que deixe 25% da população doente, possa se traduzir na hospitalização de 4,7 milhões de americanos. O TFAH lembra que o país tem hoje menos de 1 milhão de leitos hospitalares equipados.

Para os funcionários do setor de saúde que atuarem na linha de frente, a gravidade da pandemia será determinada pelo número de doentes e pelo tipo de mal que tiverem. Esses dois fatores dependerão das propriedades inerentes ao vírus e da suscetibilidade das várias subpopulações a ele.

Normalmente, as pessoas mais atingidas pela gripe anual são aquelas que sofrem de complicações de doenças crônicas – os muito jovens, os muito velhos e aqueles com o sistema imunológico debilitado. A maior causa de mortes relacionadas à gripe sazonal é a pneumonia bacteriana – que invade o corpo quando suas defesas já foram enfraquecidas pela gripe -, e não o vírus em si. Ao simular uma pandemia com características semelhantes, pesquisadores da Agência Nacional de Saúde da Holanda concluíram que o número de hospitalizações pode ser reduzido em 31% apenas pela vacinação preventiva dos grupos de risco para pneumonia.

A variante da pandemia de 1918, ao contrário da gripe sazonal, foi mais letal para os adultos jovens na casa dos 20 ou 30 anos, em parte por causa da força de seus sistemas imunológicos. Pesquisadores que estudam aquele vírus descobriram que ele suprime as reações imunológicas iniciais, como a liberação de interferon pelo corpo, que normalmente ajuda as células a resistir ao ataque. Ao mesmo tempo, o vírus provoca uma fortíssima reação auto-imune, conhecida como “tempestade de citocina”, um ataque maciço do organismo contra os pulmões (citocinas são moléculas sinalizadoras do sistema imunológico).

Os médicos que enfrentaram esse mesmo fenômeno nos pacientes de SARS tentaram conter a tempestade administrando interferon e corticosteróides supressores de citocina. Um médico de Hong Kong relatou que se essa escalada devastadora não fosse contida a tempo, os pulmões do paciente ficavam tão inflamados e necrosados que era necessário realizar uma ventilação pressurizada para levar oxigênio suficiente ao sangue.

Não há nada na forma atual do vírus H5N1 que nos dê esperanças de que produza apenas uma pandemia leve, diz Frederick Hayden, virologista da Universidade da Virgínia, que assessora a OMS. “A menos que o vírus mude drasticamente em sua patogenicidade, enfrentaremos uma variante muito letal”, diz. Muitas das vítimas do H5N1 tiveram pneumonia aguda causada pelo próprio vírus. Em alguns casos, exames de sangue mostraram uma atividade incomum das citocinas. Em alguns pacientes, o vírus pode se multiplicar no intestino, provocando diarréia severa. E, pior, acredita-se que ele tenha infectado o cérebro de duas crianças vietnamitas que morreram de encefalite, sem nenhum sintoma respiratório.

O melhor tratamento são drogas antivirais que combatam o próprio vírus, mas muitas vítimas da H5N1 já chegaram às mãos dos médicos tarde demais para que os remédios fizessem efeito. A cepa que infectou a maioria das vítimas  humanas também é resistente a uma classe mais antiga de antivirais, a amantadina, possivelmente em decorrência do fato de essas drogas terem sido usadas em frangos de granjas asiáticas.

Experiências in vitro indicam que o H5N1 ainda pode ser suscetível a uma classe moderna de antivirais, os inibidores de neuraminidase, que inclui dois produtos, o oseltamivir e o zanamivir, comercializados sob os nomes Tamiflu e Relenza. O primeiro é um comprimido; o segundo, um pó para  inalação. Contra gripe comum, ambos têm de ser administrados até 48 horas depois do início dos sintomas.

Os únicos testes formais de medicamentos contra a infecção pela H5N1, no entanto, foram feitos em roedores. Robert Webster, do Hospital Infantil St. Jude, afirmou em julho que, em camundongos, uma dose proporcional à de dois comprimidos ao dia em humanos controlou o vírus, mas os animais precisaram de tratamento por oito dias, em vez dos cinco de costume. A OMS prepara estudos com vítimas futuras do H5N1 para definir a quantidade ideal em humanos.

Mesmo considerando a dose padrão, tratar 25% da população dos EUA exigiria bem mais Tamiflu que os 22 milhões de kits de tratamento (cem pílulas cada) que o Departamento de Saúde dos EUA pretende estocar. Um comitê consultivo já sugeriu que o país possua um estoque mínimo de 40 milhões de kits. Noventa milhões de tratamentos completos seriam suficientes para um terço da população dos EUA, e 130 milhões permitiriam que as drogas fossem usadas também para proteger funcionários do setor de saúde e outros grupos essenciais de mão-de-obra, concluiu o comitê.

Hayden espera que, antes que a pandemia aconteça, um terceiro inibidor de neuraminidase, chamado peramivir, tenha sido aprovado para uso intravenoso. Inibidores de neuraminidase de ação prolongada poderiam ser muito práticos, porque uma dose única seria suficiente para o tratamento ou para garantir uma semana de profilaxia.

Essas novas drogas, ainda precisam passar por testes antes que possamos contar com elas no caso de uma pandemia. Cientistas também buscam outro tipo de tratamento que regule diretamente a reação imunológica das vítimas da doença. Tudo pode ajudar se o inimigo pandêmico for tão mortal quanto o H5N1.

A taxa de mortalidade nas vítimas diagnosticadas da H5N1 está em cerca de 50%. O vírus, porém, pode trocar sua agressividade pela capacidade de pular de pessoa para pessoa, explica Hayden. Mas mesmo que a taxa de mortalidade caia para 5%, já seria o dobro da taxa de morte de 1918, apesar das tecnologias modernas como antibióticos e respiradores. “Estamos bem atrasados em termos de planejamento e de disponibilidade das intervenções”, diz.

Nunca o mundo viu uma pandemia de gripe se aproximar munido de tantos instrumentos em potencial para minimizar seu impacto. Alguns mistérios permanecem, já que os cientistas observam a evolução de um possível vírus pandêmico pela primeira vez, mas a história torna uma coisa certa: mesmo que o temível H5N1 nunca se transforme em uma variante altamente contagiosa, algum outro vírus da gripe o fará. Quanto mais fortes forem nossas defesas, melhor enfrentaremos a tempestade quando ela chegar. “Nosso único inimigo é a complacência”, diz Gerberging, diretora do CDC.

Por W. Wayt Gibbs e Christine Soares*
Scientific American Brasil

Ed. 43 – dezembro de 2005

 

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