Artigo publicado em The Theosophist em outubro de 1881. Os comentários marginais com a letra de K. H., são colocados aqui nos números entre parênteses. As passagens sublinhadas foram assinaladas assim por K. H.
A MORTE é a necessária dissolução das combinações imperfeitas (1). É a reabsorção do esboço grosseiro da vida individual (2) no grande trabalho da vida universal; só o que é perfeito (3) é imortal. Ela é um banho de esquecimento (4). É a fonte da juventude, onde de um lado mergulha a velhice, e de onde, por outro lado, emerge a infância 1.
A morte é a transfiguração do que vive; os cadáveres são apenas as folhas mortas da Árvore da Vida, que ainda tem todas as suas folhas na primavera (5). A ressurreição (6) dos homens se assemelha eternamente a estas folhas. As formas perecíveis são condicionadas por tipos imortais.
Todos que viveram sobre a terra vivem ali, ainda, em novos exemplares dos seus tipos, mas as almas que ultrapassaram o seu tipo recebem em outro lugar uma nova forma baseada em um tipo mais perfeito; à medida que eles sempre sobem pela escada dos mundos; 2 os maus exemplares são quebrados, e a matéria deles retorna à massa geral.3
Nossas almas são como música, da qual nossos corpos são os instrumentos. A música existe sem os instrumentos, mas não pode ser ouvida sem um intermediário material (8); o que é imaterial não pode nem ser concebido nem compreendido. Na sua existência atual, o homem só retém certas predisposições das suas existências prévias (9). Evocações dos mortos são apenas condensações de memória, a coloração imaginária das sombras. Evocar aqueles que não existem mais é apenas fazer com que os seus tipos saiam de novo da imaginação da natureza. 4
Para estar em comunicação direta com a imaginação da natureza, o indivíduo deve estar adormecido, ou intoxicado, em um êxtase, em estado cataléptico ou louco (10). A memória eterna só preserva o que é imperecível; tudo o que passa no Tempo pertence, por direito, ao esquecimento. A preservação de cadáveres é uma violação das leis da natureza; uma afronta contra a modéstia da morte, que oculta os trabalhos de destruição, assim como deveríamos ocultar os de reprodução. Preservar cadáveres é criar fantas-mas na imaginação da terra (11); 5 os espectros do pesadelo, da alucinação e do medo são apenas as fotografias ambulantes de cadáveres preservados (12). São estes cadáveres preservados ou imperfeitamente destruídos que espalham, entre os vivos, as pragas, a cólera, as doenças contagiosas, a tristeza, o ceticismo e a falta de gosto pela vida. 6 A morte é exalada pela morte. Os cemitérios envenenam a atmosfera das cidades, e o miasma dos cadáveres faz mal até mesmo às crianças que estão no colo das suas mães.
Perto de Jerusalém, no Vale de Geena, um fogo perpétuo era mantido para a combustão da sujeira e dos esqueletos dos animais; e é a este fogo eterno que Jesus se referiu quando disse que os maus serão lançados no Geena, significando que as almas mortas serão tratadas como cadáveres. O Talmude diz que as almas daqueles que não acreditam na imortalidade não serão imortais. É apenas a fé que confere imortalidade pessoal (13); 7 a ciência e a razão só podem afirmar que existe a imortalidade geral.
O pecado mortal é o suicídio da alma. Este suicídio ocorreria se o homem se devotasse ao mal com toda a força da sua mente, com perfeito conhecimento do bem e do mal, e inteira liberdade de ação, o que parece impossível na prática, mas que é possível em teoria, porque a essência de uma personalidade independente é uma liberdade incondicionada. A divindade nada impõe ao homem, nem mesmo a sua existência. O homem tem direito de retirar-se até mesmo da bondade divina, e o dogma do inferno eterno é apenas a afirmação do eterno livre-arbítrio.
Deus não lança ninguém no inferno. Os homens é que podem ir para lá livremente, definitivamente e por sua própria escolha. Aqueles que estão no Inferno, isto é, em meio à escuridão do mal 8 e aos sofrimentos do necessário castigo, sem que tenham querido isso absolutamente, são chamados a emergir dele. Este Inferno é para eles apenas um purgatório. O condenado completo, absoluto e sem trégua, é Satã, que não constitui uma existência racional, mas uma hipótese necessária.
N. I. 9 Satã é a última palavra da criação. Ele é o final infinitamente emancipado. Ele quis ser Deus, do qual é o oposto. Deus é a hipótese necessária para a razão, II 10, Satã é a hipótese necessária para a não-razão, que afirma a si mesma como livre-arbítrio. (14)
Para ser imortal (15) no bem, o indivíduo deve identificar-se com Deus; para ser imortal no mal, com Satã. Estes são os dois pólos do mundo das almas; entre estes dois pólos a parte inútil da humanidade vegeta e morre sem lembranças.
II
SATÃ
O SATÃ é apenas um tipo 12, e não um personagem real. Ele é o tipo oposto ao tipo Divino, o necessário fracasso dele em nossa imaginação. É a sombra revoltosa que torna visível para nós a luz infinita do Divino. Se Satã fosse uma personagem real, haveria dois Deuses, e o credo dos maniqueístas seria verdadeiro.
Satã é uma concepção imaginária do absoluto no mal; uma concepção necessária para a completa afirmação da liberdade da vontade humana, que, com ajuda deste absoluto imagi-nário, parece capaz de contrabalançar até mesmo todo o poder de Deus. É o mais audaz, e talvez o mais sublime dos sonhos do orgulho humano.
“Vocês serão como Deuses ao saber do bem e do mal”, diz a serpente alegórica da Bíblia. Realmente, fazer do mal uma ciência é criar um Deus do mal, e se algum espírito puder resistir eternamente a Deus, já não há mais um, mas dois Deuses.
Para resistir ao Infinito, é necessária uma força infinita, e duas forças infinitas opostas uma à outra 13 devem neutralizar-se mutuamente. Se a resistência da parte de Satã é possível, o poder de Deus não existe mais, Deus e o Demônio destroem-se mutuamente, e o homem permanece sozinho; ele fica sozinho com os fantasmas dos seus Deuses, a esfinge híbrida, o touro de asas, que equilibra em sua mão humana uma espada cujos relâmpagos oscilantes levam a imaginação humana de um erro para outro, e do despotismo da luz para o despotismo da escuridão.
A história da miséria do mundo é apenas o romance da guerra dos Deuses, uma guerra ainda não terminada, enquanto o mundo cristão ainda adora um Deus no Demônio, e um Demônio em Deus. O antagonismo de poderes é anarquia no Dogma.
N. I. Assim, à igreja que afirma que o Demônio existe, o mundo responde com uma lógica assustadora: então Deus não existe; e é inútil tentar escapar deste argumento inventando a supremacia de um Deus que permite a um Demônio produzir a condenação dos homens; tal permissão seria uma monstruosidade, e seria equivalente a uma cumplicidade, e o deus que pode ser cúmplice do demônio não pode ser Deus.
O Demônio dos Dogmas é uma personificação do Ateísmo. O Demônio da Filosofia é o ideal exagerado do livre-arbítrio humano. O Demônio real ou físico é o magnetismo do mal. Evocar o Demônio é apenas compreender por um instante esta personalidade imaginária. Isto envolve o exagero, além dos limites, na própria pessoa, da perversidade e da loucura, através dos atos mais criminosos e destituídos de sentido.
O resultado desta operação é a morte da alma através da loucura, e freqüentemente também a morte do corpo, como se fosse atingido por um raio, em uma congestão cerebral. O Demônio sempre perturba, mas nunca dá nada em retribuição. São João o chama de “a Besta” (la Bête) porque sua essência é a loucura humana (la Bêtise humaine).
1 Renascimento do Ego depois da morte. A doutrina oriental, e especialmente budista, do surgimento do novo Ego a partir do velho. (Editora do Theosophist)
2 De um lokka para outro; de um mundo positivo de causas e atividade, para um mundo negativo de efeitos e passividade. Ed. do Theosophist.
3 Para a matéria cósmica, quando eles perdem necessariamente sua autoconsciência ou individualidade (7), ou são aniquilados, como os cabalistas orientais dizem. Ed. do Theosophist.
4 Desejar ardentemente ver uma pessoa morta é evocar a imagem daquela pessoa e chamá-la da luz astral ou éter em que estão fotografadas as imagens do Passado. Isso é o que é feito, em parte, nas salas de sessões espíritas. Os espíritas fazem NECROMANCIA inconscientemente. Ed. do Theosophist.
5 É intensificar estas imagens na luz astral ou sideral. Ed. do Theosophist.
7 Fé e força-de-vontade. A imortalidade é condicional, como sempre temos afirmado. Ela é a recompensa dos bons e puros. O homem mau, o sensualista material, apenas sobrevive. Aquele que aprecia apenas prazeres materiais não viverá, e não pode viver depois como uma entidade autoconsciente. Ed do Theosophist.
8 Isto é, eles renascem em um “mundo inferior” que não é nem “inferno” nem qualquer outro purgatório teológico, mas um mundo de matéria quase absoluta, e um mundo que precede o último no “círculo da necessidade”, do qual “não há redenção, porque aí reina, absoluta, a escuridão espiritual” (“Livro de Kiu-te”). Ed. do Theosophist.
9 Veja a sinalização correspondente na parte II des-te texto. (N. da 1ª ed.)
10 Veja a sinalização correspondente na parte II des-te texto. (N. da 1ª ed.)
11 Bolotas – acorns em inglês – são os frutos do carvalho. (N. ed. bras.)
12 Tipo: hoje diríamos um arquétipo. (N. ed. bras.)
13 E se o mal é infinito e eterno, porque é contem-porâneo da matéria, a conseqüência lógica seria que não há nem Deus nem Demônio – como Entidades pessoais, apenas Um Princípio ou Lei, Não-Criado, Infinito, Imutável e Absoluto: MAL ou DEMÔNIO – quanto mais profundamente ele cai na matéria; o BEM ou DEUS, assim que ele é purificado desta última e se torna novamente puro e imaculado Espírito, ou o ABSOLUTO em sua Subjetividade eterna, imutável. (27) – Ed. do Theos.
Comentários marginais com a letra de K. H.
(1) Dos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º.
(2) A personalidade ou Eu pessoal.
(3) O 6º e 7º princípios.
(4) Até a hora da lembrança.
(5) Na linguagem do cabalista, “primavera” significa o começo daquele esta-do em que o Ego atinge sua onisciência.
(6) A “ressurreição em vida eterna” dos caldeus, adotada por empréstimo pelos cristãos, significa ressurreição no Nirvana.
(8) Por isso um espírito não pode comunicar-se.
(9) Carma.
(10) E para estar em comunicação direta com a inteligência da Natureza o indivíduo deve tornar-se um Adepto.
(11) Nós nunca enter-ramos nossos mortos. Eles são incinerados ou deixados sobre a terra.
(12) Seus reflexos na luz astral.
(13) No Deva-Chan o Ego vê e sente apenas aqui-lo a que aspirava. Aquele que não busca uma continuação de uma vida pessoal sensível depois da morte física não a terá. Ele renas-cerá permanecendo inconsciente como na transição.
(14) O que marquei com lápis vermelho parecem ser contradições, mas não são.
(15) Em geral os hermetistas, quando usam a palavra “imortalidade”, limitam a sua duração do início ao final do ciclo menor. As deficiências das suas respectivas línguas não podem ser atribuídas a eles. Não se pode falar propriamente de uma semi-imortalidade. Os antigos a chamavam de “eternidade paneônica”, a partir das palavras – tudo, ou natureza, e , um perío-do de tempo que não tinha limite definido exceto para os iniciados. Veja nos dicio-nários como eon é o período de tempo durante o qual uma pessoa vive, o período durante o qual o universo dura, e também, eternidade. Esta era uma “palavra de mistério” e ficava propositalmente velada.
(16) Ocidental.
(17) Capítulo III.
(18) Esta frase se refere aos dois tipos de iniciados – os adeptos e os feiticeiros.
(19) Um dos costumeiros exageros dela.
(20) Duas palavras inúteis.
(21) Carma.
(22) Através de médiuns que têm existido em todas as partes e em todas as épocas.
(23) Não durante o eon, bastando para isso que eles saibam como forçá-la. Mas é uma vida de torturas e eterno ódio. Se você acredita em nós, como pode descrer deles?
(24) São os Irmãos da sombra.
(25) A maior parte tem de sair fora deste planeta no oitavo, como ela diz. Mas os mais elevados viverão até o próprio limiar do Nirvana final.
(26) Normais.
(27) É verdade.