Caderno de Meditação (Parte 2)

Do livro “A Única Revolução”-Terra sem Caminho, RJ, 2001.

Editado e organizado livremente por Moacir Amaral, novembro de 2008.

11.

Se você deliberadamente assume uma atitude, uma postura, a fim de meditar, essa meditação se torna um divertimento, um brinquedo da mente.

Se você se determina a meditar para se livrar da confusão e da miséria da vida, então isso se torna uma experiência da imaginação – e isso não meditação.

Nem a mente consciente nem a mente inconsciente tomam parte na meditação; nem sequer estão atentas para a vastidão e a beleza da meditação. Se fizessem parte da meditação, então você poderia sair e ler um romance que daria no mesmo.

Na atenção total da meditação, não há conhecer, nem reconhecer, nem a lembrança de alguma coisa que aconteceu. O tempo e o pensamento cessaram completamente, pois eles são o centro que limita sua própria visão.

No momento da luz o pensamento desaparece, e o esforço consciente para experimentar e guardar a lembrança desse momento é a palavra sobre o que já passou.

A palavra nunca é o real.

Naquele momento – que não pertence ao tempo – a realidade final se torna a imediata, mas essa suprema realidade não tem símbolo, não pertence a ninguém, a nenhum Deus.

12.

No fim da tarde e no amanhecer, o sol faz um rastro – de manhã dourado e de tarde prata – de uma à outra margem do rio.

Não admira que os homens venerem os rios; é melhor do que venerar imagens, com rituais e crenças. O rio é vivo, profundo, sempre em movimento; as pequenas poças ao lado das margens estão sempre estagnadas.

Cada ser humano se isola numa pequena poça de água, onde se deteriora; nunca se lança à plena correnteza do rio.

De alguma maneira, aquele rio, tão poluído pelos seres humanos que habitam mais acima, é bem limpo no seu meio, azul-esverdeado, e profundo.

É um rio esplêndido, principalmente de madrugada, antes do nascer do sol; é tão quieto e parado, da cor da prata fundida. E, assim que o sol aparece por sobre as árvores, ele se torna dourado e, depois. novamente uma faixa de prata; assim, suas águas ficam vivas.

13.

Era uma manhã clara de inverno – fria, mas radiante; e não havia uma nuvem no céu. Enquanto se observava a luz do sol nascente refletida no rio, a meditação estava acontecendo.

A própria luz fazia parte da meditação, quando se olhava para a dança das águas brilhantes, na manhã serena – não com a mente traduzindo isso em um certo sentido, porém com olhos que viam a luz e nada mais.

A luz, como o som, é uma coisa extraordinária. Há a luz que os pintores procuram representar na tela; há a luz que as máquinas fotográficas captam; há a luz de uma lamparina, a brilhar sozinha em uma noite escura; a luz que está no semblante de outra pessoa; a luz que está por trás de seus olhos.

A luz que os olhos vêem não é a luz que brilha sobre a água; essa é uma luz tão diferente, tão vasta, que não cabe no estreito campo visual.

Essa luz, como o som, se move infinitamente – para o exterior e para o interior – como o movimento da maré. E, se você continua muito quieto, você vai com ele, não em imaginação ou sensorialmente; você vai com ele, sem o saber, fora da medida do tempo.

A beleza dessa luz, como o amor, não é para ser tocada, não é para ser colocada em palavras. Mas, lá estava ela – na sombra, ao ar livre, na casa, na janela do outro lado do caminho, e na risada daquelas crianças.

Sem essa luz, o que você vê é de ínfima importância, pois a luz é tudo; e a luz da meditação estava na água.

Lá estaria de novo, à tarde, e durante a noite, e quando o sol se erguesse acima das árvores, tornando o rio dourado.

Meditação é essa luz na mente que ilumina o caminho para a ação. Sem essa luz, o amor não existe.

14.

O que é sagrado? A imagem do templo, o símbolo, a palavra?

Onde está o sagrado? Naquela árvore, naquela camponesa que vai levando um pesado fardo?

Você considera sagradas as coisas que, para você, são tidas como veneráveis, preciosas, significativas, não é? Mas, que valor tem a imagem esculpida pela mão ou pela mente?

Aquela mulher, aquele pássaro, aquela árvore, os seres vivos, só parecem ter para você uma importância passageira. Você divide a vida em sagrado e não sagrado; em moral e imoral. Essa divisão gera aflição e violência. Ou tudo é sagrado, ou nada é sagrado.

O que você diz – suas palavras, seus pensamentos, seus cânticos –, ou são sérios, ou estão aí para seduzir a mente em uma espécie de encantamento, que é uma ilusão e, por conseguinte, não é nada sério.

O sagrado existe, mas não está na palavra, nem na estátua, nem na imagem que o pensamento cria.

15.

O rio, naquela manhã, era cor de prata fosca, porque estava nublado e frio. As folhas estavam cobertas de pó, que estava em toda parte, em uma fina camada – no quarto, na varanda, na cadeira.

Estava esfriando mais; talvez tivesse nevado fortemente nos Himalaias. Podíamos sentir o vento cortante do norte, e também as aves o sentiam. Mas o rio tinha naquela manhã um estranho movimento, não parecia encrespar-se ao sopro do vento; dava a impressão de estar completamente imóvel e tinha aquela qualidade atemporal que todas as águas parecem ter.

Que belo que era! Não admira que o povo o tivesse transformado em um rio sagrado. Podia-se ficar sentado ali, na varanda, a observá-lo meditativamente, infinitamente. E não era devaneio; os pensamentos não estavam se movimentando em nenhuma direção – estavam simplesmente ausentes.

Enquanto se olhava a luz naquele rio, parecia que, de alguma maneira, você desaparecia de si mesmo e, ao fechar os olhos, havia um vazio que estava cheio de bênção. Um estado de bem-aventurança!

16.

Meditação não é o mero experimentar de algo além de nossos habituais pensamentos e sentimentos, nem é busca de visões e deleites.

A mente imatura, insignificante e sórdida pode ter, e com efeito tem, visões procedentes da consciência em expansão, e experiências que reconhece de acordo com o seu próprio condicionamento.

Essa imaturidade pode ser muito bem sucedida neste mundo, e alcançar fama e notoriedade. Os mestres que ela segue são da mesma qualidade e se acham no mesmo estado. A meditação não pertence a nada disso.

Meditação não é para a pessoa que está buscando, porque esta sempre acha o que quer; e o conforto que isso lhe dá é a moralidade de seus próprios medos.

Faça o que fizer, a pessoa dada à crença e ao dogma não pode entrar no campo da meditação. Para meditar, é necessário a liberdade. Não é primeiro a meditação e depois a liberdade.

Liberdade – que é a total negação da moralidade e dos valores sociais – é o primeiro movimento da meditação. Esta não é uma atividade social em que muitos podem participar e fazer juntos suas orações.

Meditação é sempre só, e está além dos limites da conduta social.

A verdade não está nas coisas do pensamento, nem naquilo que o pensamento construiu e chama de “a verdade”.

A completa negação de toda a estrutura do pensamento é a realidade da meditação.

17.

Meditação é um movimento sem fim.

Você nunca pode dizer que está meditando ou reservar um determinado período para a meditação. Meditação não está às suas ordens.

A bênção da meditação não vem a você porque você leva uma vida sistemática, nem porque segue uma certa rotina ou código moral.

Meditação vem somente quando seu coração está realmente aberto.

Não aberto pela chave do pensamento; não assegurado pelo intelecto; mas quando ele está tão aberto quanto o céu sem nenhuma nuvem.

Então ela vem sem você saber, sem você convidar. Mas você nunca pode guardá-la, mantê-la, adorá-la. Se você tenta, ela nunca mais voltará; faça o que fizer, ela o evitará.

Na meditação, você não é importante. Você não tem lugar na meditação. Sua beleza não está em você, mas nela própria. E a isso você não pode acrescentar nada.

Não fique à espreita na janela, esperando pegá-la desprevenida; nem se sente em um quarto escuro à sua espera. Meditação só vem quando você não está presente de jeito nenhum. Sua bem-aventurança não tem continuidade.

18.

Meditação é o esvaziar da mente de todo o conhecido. O conhecido é o passado. O esvaziar não acontece depois de muito acumular, mas significa não acumular de forma alguma.

O que foi é esvaziado apenas no presente, não pelo pensamento, mas pela ação, pelo fazer do que é.

O passado é um movimento de conclusão para conclusão, e um julgamento do que é pela conclusão.

Todo julgamento é conclusão, seja do passado ou do presente, e é esta conclusão que impede o constante esvaziar da mente de todo o conhecido; porque o conhecido é sempre uma conclusão, uma delimitação.

O conhecido é a ação da vontade, e a vontade em operação é a continuação do conhecido; assim, a ação da vontade não tem possibilidade de esvaziar a mente.

A mente vazia não pode ser comprada no altar da exigência. Isso vem quando o pensamento está atento às suas próprias atividades – e não pelo fato de o pensador estar cônscio de seus pensamentos.

Meditação é a inocência do presente e, portanto, é sempre só.

A mente totalmente só, não tocada pelo pensamento, cessa de acumular. Assim, o esvaziar da mente está sempre no presente. Para a mente que está só, o futuro – que é o passado projetado – cessa.

Meditação é um movimento, não uma conclusão; não é um fim a ser alcançado.

19.

O sono é tão importante quanto estar acordado, talvez mais ainda. Se durante o dia a mente está vigilante, contida em si mesma, observando o movimento interior e exterior da vida, então, à noite, a meditação virá como uma bênção.

A mente desperta, e das profundezas do silêncio há o encantamento da meditação, que nenhuma imaginação ou vôo da fantasia jamais pode produzir. Ela acontece sem que a mente a convide; nasce da tranqüilidade da consciência – não dentro dela, mas fora dela; não na periferia do pensamento, mas além do alcance do pensamento.

Assim, não há memória da meditação, porque lembrança é sempre do passado, e meditação não é ressurreição do passado.

Meditação acontece a partir da plenitude do coração, e não do brilho e da capacidade intelectual. Pode acontecer noite após noite, mas, cada vez, se você é assim abençoado, ela é nova – não nova por ser diferente do velho, porém nova sem o condicionamento do velho. Nova em sua diversidade e imutável em sua mudança.

Assim, o sono torna-se uma coisa de extraordinária importância; não o sono da exaustão ou o sono provocado por meio de drogas e pela satisfação física, porém um sono que é tão leve e ligeiro como o corpo é sensível. E o corpo se torna sensível ao estar alerta.

Às vezes, a meditação é tão leve como a brisa que passa; outras vezes, sua profundeza está além de todas as medidas. Mas, se a mente se prende a uma ou a outra como uma lembrança para se deliciar, então o êxtase da meditação chega a um fim.

É importante nunca possuir ou desejar possuir. A qualidade da possessividade não faz parte da meditação, porque meditação não tem raiz, nem substancia alguma que a mente possa reter.

20.

Havia chovido bastante durante a noite e, agora, de manhã cedo, ao levantarmo-nos, havia um cheiro forte de sumagre, sálvia, e terra úmida. Era terra vermelha, e a terra vermelha parece ter um cheiro mais intenso do que a terra comum.

Agora o sol estava nas colinas com aquela extraordinária cor avermelhada, e cada árvore e arbusto estava brilhando, bem lavados e limpos pela chuva da noite passada, e tudo estava repleto de alegria.

Não havia chovido durante seis ou oito meses e você pode imaginar o quanto a terra estava se deliciando; e não só a terra, mas tudo nela – as árvores enormes, os eucaliptos, as figueiras e os carvalhos.

Os pássaros pareciam ter um canto diferente naquela manhã e, enquanto se observava as colinas e as distantes montanhas azuis, o observador, de alguma forma, desaparecia. O observador não existia, nem as pessoas ao seu redor. Havia apenas essa beleza, essa imensidão. Só existia a terra, estendendo-se e alargando-se.

Naquela manhã, daquelas colinas que se prolongavam por quilômetros e quilômetros, vinha uma imensa tranqüilidade ao encontro de nossa própria quietude. Era como se a terra e o céu se unissem – e o êxtase desse encontro era uma bênção.

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