Texto extraído do livro “Em Busca do Eu: Uma Visão Transpessoal
da Psicologia no Yoga Sutra de Patañjali”
“Chegará o dia em que alguém perguntará a Shakespeare,
ou mesmo a Beethoven, 'e isso é tudo?'”
Aldous Huxley
Para que vim à existência? Será que foi apenas para comer, beber e eliminar resíduos? Talvez tenha sido para isso mesmo, ou para apenas respirar e contemplar e mais nada querer. A pergunta vem e a resposta idem, mas essa última é individual e deve ser percebida e compreendida por cada um individualmente. Independentemente de seu objetivo nessa existência, se é que existe algum, o homem é um ser de desejo. Mas sem entrarmos no mérito do certo e do errado quanto à orientação desse desejo, estamos aqui porque desejamos estar. Temos um princípio interno que deseja, e alguns desejos são universais: o desejo de existir, o desejo de conhecer e o desejo de bem-estar. Respiramos porque desejamos, comemos porque desejamos, bebemos porque desejamos, falamos porque desejamos, calamos porque desejamos, deixamos de comer porque desejamos, deixamos de beber porque desejamos, etc.
Desejar nos é inerente. Assim seguimos desejando comida, bebida, ar, saúde, felicidade, bem-estar, etc. e achamos que viemos ao mundo para buscar e possuir essas e outras coisas. É o nosso impulso primordial de fazer: fazemos coisas porque as desejamos. Desejar e fazer nos é inerente e o próprio não-fazer é um fazer: estou escolhendo fazer e praticar o não-fazer.
Desejamos porque sentimos. São nossas sensações, conseqüências do contato das vibrações provenientes do meio “externo” com nossos órgãos físicos dos sentidos, que impulsionam nossos desejos. Mas como? A maioria das vibrações físicas gera sensações neutras, mas algumas delas geram as sensações de “agradável” ou “desagradável”. Ambas geram respostas físicas, emocionais e mentais que, quase sempre, estão associadas com uma percepção, à qual dá-se o nome de “sentimento de prazer”, se for uma sensação agradável, ou “sentimento de dor”, se for desagradável. É o fato de percebermos que nos torna conscientes das sensações.
Essa percepção (sentimentos de dor e de prazer), com a repetição, condiciona o surgimento do desejo de repetir a sensação (apego) e o desejo de não repetir a sensação (repulsa). Assim, os desejos (apego e repulsa) envolvem a utilização e o processamento da memória, em busca de sensações agradáveis e desagradáveis já sentidas.
O apego aos objetos de prazer gera em nós respectivamente dor ou prazer, se os perdemos ou ganhamos. E a repulsa aos objetos de dor gera mais dor ou prazer, se entramos ou não em contato com eles. A possibilidade ou de perder os objetos de prazer e não reavê-los ou de encontrar objetos de dor, leva ao medo, o que, por sua vez, gera raiva.
Já o prazer de ganhar um objeto de apego gera mais prazer e apego e a dor de entrar em contato com objetos de repulsa gera mais dor e repulsa, gerando um ciclo vicioso.
O desejo não é uma energia negativa em si, pois traz consigo o poder de realizar. Quando surge o desejo por algo, nossa mente logo se encarrega de formular estratégias para a sua obtenção, utilizando-se do raciocínio lógico e/ou abstrato. Desse processamento consciente, surgem as emoções e as ações relacionadas de comportamento emocional e social. As emoções são um amálgama das energias sutis dos desejos com o pensamento intelectual, ou seja, a emoção é a conscientização do desejo. As emoções dão cor e intensificam todas as nossas sensações.
E assim seguimos desejando e fazendo (e nos emocionando), guiados pelos prazeres dos sentidos (hedonismo). Mas à medida que experimentamos as sensações decorrentes do fazer (que inclui o não-fazer) desejando e obtendo objetos em quantidade e por tempo suficientes, chega um dia em que vem a pergunta de Huxley: “e isso é tudo?”. Vamos percebendo que algumas coisas que fizemos (ou que não fizemos) não nos inspira mais entusiasmo e deixamos de desejar algumas coisas, pois passam a não ter mais sentido. Cessa de existir o encanto que víamos nelas e nos vemos desejando e procurando outros sentidos para a vida e respostas para a nossa pergunta inicial: para que vim à existência?
Em geral, é após os 30 anos que surge o desejo pelo cumprimento de nossas obrigações para com a família e para com o mundo. Na insuficiência de obtermos significados nas simples posses materiais, nos vêm esses desejos que, na realidade, escondem um desejo por fama, poder e sucesso. E, de novo, quando obtidos em quantidade e tempos suficientes, aquela pergunta ressurge. Vem, então, uma outra fase em que desejamos apenas cumprir o nosso dever, em qualquer lugar em que estejamos: o desejo por reconhecimento e gratidão que não mais necessitam nem ser públicos.
Se for o prazer que você quer, não se reprima, procure-o com sabedoria. Todos os que obtêm o prazer que viam como meta constatam-no como insuficiente para preencher a sua natureza mais íntima. Se o desejo for riqueza, fama, poder e sucesso, procure-o com sabedoria. Enquanto o homem necessitar de prazeres, riqueza, fama, poder e sucesso, ele deverá procurá-lo com moderação e ética, até que surja a verdadeira renúncia pela constatação da insuficiência deles em saciar as ânsias mais íntimas do homem. Pela constatação de que são fúteis, o homem obtém a verdadeira renúncia ao prazer dos sentidos e à busca de poder e sucesso. Renunciar não deveria exigir esforços, mas surgir naturalmente da auto-observação do verdadeiro significado de nossos desejos.
Começa a nascer, então, a verdadeira religião (religare), a transformação consciente da vontade de obter em vontade de dar, da vontade de ser servido e reconhecido em vontade de servir e reconhecer. Nasce uma nova busca, a busca do dever como forma de obter respeito e gratidão dos semelhantes e, principalmente, o respeito próprio pelo dever cumprido. Mas, com o tempo, o homem percebe que ainda isso não é tudo, que até isso é insuficiente e não basta. Percebemos que tudo o que desejamos até então era finito e impermanente e começamos a despertar o nosso desejo pelo infinito em si mesmo.
O homem, então, percebe que, na realidade, ele quer existir, quer conhecer e quer se sentir alegre, mas infinitamente. Só o infinito nos é suficiente agora. Percebemos que ansiamos pelo infinito em nós, ansiamos por nos libertar de todas as finitudes da existência, da consciência e da alegria mundana. Descobrimos que, até então, sempre estivéramos desorientados quanto ao verdadeiro alvo de nosso desejo. Inicia-se o trilhar pela verdadeira busca, a busca da união ou unicidade com o Infinito.
Passa-se, então, a viver com mais tranqüilidade, estudar obras inspiradoras, manter-se atualizado com o progresso nas artes e nas ciências e passar mais tempo introspectivo, sozinho ou na companhia de um (a) companheiro (a). Mas isso é uma longa jornada em que, realmente, o tempo tem menor importância do que o observar a nós mesmos e sentir o que verdadeiramente nos importa no momento presente, no agora.
O homem é um buscador que, na maioria das vezes, pensa que achou o que buscava. Dessa forma, não deveríamos condenar nada que o homem busque em sua evolução, pois todas as metas são apenas etapas que devem ser atingidas para se constatar que não são metas reais.
Nesse mesmo sentido, talvez o aspecto mais importante de todas as tradições sapienciais (Yoga inclusive) seja a busca da nossa essência, algo que nos é infinitamente superior e que nos habita por trás de todos os nossos condicionamentos culturais e sociais. A busca daquilo que nos faz iguais.